Era uma vez um país onde as aulas de literatura sumiram da sala como quem esquece um guarda-chuva no banco do ônibus: de repente, e só se dá conta quando a tempestade cai.
O Brasil fala em inteligência artificial, ensino por competências, pensamento computacional, e esquece que antes de pensar, é preciso sentir. E antes de sentir, é preciso saber nomear o que se sente. E isso, meu caro, só a literatura ensina. Matemática te diz quantas lágrimas caíram. Literatura te diz por que elas caíram. E às vezes até te faz gostar da chuva.
As escolas, coitadas, andam ensinando leitura como quem ensina a montar móveis da IKEA: siga o passo a passo, encaixe aqui, use a chave Allen e não questione nada. Resultado? Um país que lê a bula como se fosse poesia, interpreta ironia como ofensa, e acha que o narrador de um conto é o autor em carne, osso e CPF.
As redes sociais viraram ringue de gladiadores analfabetos emocionais. Cada post, uma faísca. Cada comentário, um incêndio. Mas ninguém sabe distinguir se o texto é informativo, opinativo, poético ou apenas uma piada ruim. Vivemos uma era em que as pessoas leem um meme como se fosse um mandamento. E discutem como se estivessem num tribunal divino. Faltou aula. Faltou leitura. Faltou Machado de Assis explicando que até o defunto pode narrar. Faltou Capitu e seus olhos de ressaca para ensinar que nem tudo é o que parece. Faltou o vilão de Dostoiévski dizendo que o mal também tem suas razões. Faltou ambiguidade.
É que a literatura sempre teve essa gentileza brutal de nos apresentar o outro lado — o lado que a gente não queria ouvir, mas precisava. Em um romance, o antagonista tem tempo de fala. No poema, a angústia vira beleza. No conto, o absurdo ganha endereço.
Mas nas escolas de hoje, quando há “leitura”, é uma leitura escoltada, fiscalizada, higienizada — como quem cheira o leite para ver se ainda está bom antes de oferecer a uma criança. Lê-se por obrigação, nunca por paixão. Os professores, os poucos que ainda resistem com alma de Dom Quixote, pedem: “leiam esse trecho”. E os alunos, com olhos de quem olha brócolis, perguntam: “vai cair na prova?”
Aí está o problema. Pedir que leiam é o mesmo que mandar comer brócolis porque “faz bem”. Ninguém se apaixona por um vegetal. Mas muita gente lembra da primeira vez que cozinhou com a avó. Porque o que falta é isso: cozinhar junto. Ler junto. Criar momentos onde a leitura seja partilhada como pão quente na mesa. Onde a literatura seja a conversa, não a obrigação. Onde o pai leia com a filha, o professor com a turma, o amigo com o amigo.
Porque a gente não aprende a ler sozinho. Aprendemos ouvindo vozes. A do narrador, a da mãe, a do professor, a da personagem que pensa diferente de nós. E é ouvindo vozes que, talvez um dia, aprendamos a não gritar tanto.
Literatura é o único lugar onde o contraditório tem microfone. E talvez seja por isso que tanta gente anda lendo errado: porque nunca aprendeu que ouvir o outro é parte do texto.
Se é pra salvar alguma coisa neste mundo, que se salve pelo menos uma roda de leitura. Uma história contada em voz alta. Uma página lida de mãos dadas. Um momento em que o silêncio entre as palavras diga tudo. E que, pela primeira vez em muito tempo, alguém sinta vontade de continuar lendo — não porque é saudável. Mas porque é humano.