terça-feira, 12 de novembro de 2024

A poética, de Aristóteles (aula)


    Hoje, tenho o prazer de falar sobre uma das obras mais influentes da teoria literária: a “Poética” de Aristóteles. Escrita por volta de 335 a.C., esta obra não só lançou as bases para a análise literária, mas também continua a ser uma referência essencial para estudiosos e amantes da literatura até os dias de hoje.

Aristóteles, em sua “Poética”, nos oferece uma visão profunda sobre a natureza da poesia e da tragédia, definindo-as como formas de imitação da vida e das ações humanas. Ele nos ensina que a tragédia, em particular, é uma imitação de uma ação séria e completa, destinada a provocar uma catarse, ou purificação emocional, nos espectadores.

    Durante esta palestra, exploraremos os principais conceitos apresentados por Aristóteles, incluindo os seis elementos essenciais da tragédia: enredo, caráter, pensamento, dicção, melodia e espetáculo. Também discutiremos a comparação que ele faz entre a tragédia e a poesia épica, destacando a importância e a superioridade da tragédia em evocar emoções intensas e imediatas.

    Espero que esta jornada pela “Poética” de Aristóteles não só enriqueça nosso entendimento sobre a literatura, mas também nos inspire a apreciar ainda mais a arte da narrativa e da representação dramática.

Vamos começar!

    A “Poética” de Aristóteles é uma obra fundamental para a compreensão da teoria literária e da crítica. Escrita por volta de 335 a.C., essa obra se destaca por sua análise detalhada da poesia e, em particular, da tragédia. Aristóteles inicia sua obra definindo a poesia como uma forma de imitação, ou mimesis, da vida e das ações humanas. Ele argumenta que a poesia, assim como outras formas de arte, imita a realidade, mas de uma maneira que pode ser mais universal e significativa do que a própria realidade.

A Tragédia e Seus Elementos

    Aristóteles dedica grande parte da “Poética” à tragédia, que ele considera a forma mais elevada de poesia. Segundo ele, a tragédia é uma imitação de uma ação séria e completa, que possui uma certa magnitude. A tragédia deve provocar a catarse, ou purificação emocional, nos espectadores, através de emoções como a piedade e o medo.

Aristóteles identifica seis elementos essenciais da tragédia:

  1. Enredo (Mythos): O enredo é a estrutura da história e é considerado o elemento mais importante da tragédia. Um bom enredo deve ter uma unidade de ação, com um começo, meio e fim claros. Aristóteles destaca a importância da complexidade do enredo, que deve incluir reviravoltas e reconhecimentos que surpreendam e emocionem o público.

  2. Caráter (Ethos): Os personagens devem ser bem desenvolvidos e possuir qualidades morais que os tornem críveis e identificáveis. O protagonista, em particular, deve ser uma figura nobre que, apesar de suas boas intenções, comete um erro trágico (hamartia) que leva à sua queda.

  3. Pensamento (Dianoia): Refere-se às ideias e temas expressos na tragédia. O pensamento é transmitido através dos discursos dos personagens e deve refletir a sabedoria e a moralidade da obra.

  4. Dicção (Lexis): A dicção é a escolha das palavras e a forma como são usadas. Aristóteles valoriza a clareza e a adequação da linguagem ao caráter dos personagens e à situação dramática.

  5. Melodia (Melos): A melodia inclui todos os elementos musicais da tragédia, como o coro. A música deve complementar e intensificar as emoções da peça.

  6. Espetáculo (Opsis): O espetáculo refere-se aos aspectos visuais da produção, como cenários, figurinos e efeitos especiais. Embora Aristóteles considere o espetáculo menos importante que os outros elementos, ele reconhece seu papel em tornar a tragédia mais impactante.

Catarse

    Um dos conceitos mais famosos da “Poética” é o de catarse. Aristóteles argumenta que a tragédia deve provocar uma purificação emocional nos espectadores, permitindo-lhes experimentar e liberar emoções intensas de maneira segura e controlada. A catarse é alcançada através da piedade e do medo, que são despertados pela identificação com o protagonista e pela compreensão de seu destino trágico.

Comparação com a Poesia Épica

    Aristóteles também compara a tragédia com a poesia épica, destacando as diferenças e semelhanças entre as duas formas. Enquanto a poesia épica, como a “Ilíada” e a “Odisseia” de Homero, narra eventos grandiosos e heroicos em verso, a tragédia se concentra em ações mais compactas e intensas, representadas no palco. Aristóteles argumenta que a tragédia é superior à épica porque é mais concentrada e capaz de provocar uma resposta emocional mais imediata e intensa no público.

Influência e Relevância da “Poética”

    A “Poética” de Aristóteles teve uma influência duradoura na teoria literária e na crítica ao longo dos séculos. Suas ideias sobre a estrutura do enredo, o desenvolvimento de personagens e a importância da catarse continuam a ser estudadas e aplicadas na análise de obras literárias e dramáticas. Além disso, a “Poética” inspirou muitos dramaturgos e escritores, desde os antigos gregos até os autores contemporâneos.


Exemplo prático

    Vamos analisar a tragédia “Hamlet” de William Shakespeare à luz dos conceitos apresentados por Aristóteles em sua “Poética”. Essa abordagem nos permitirá entender como os elementos aristotélicos se manifestam em uma das obras mais famosas da literatura ocidental.

Enredo (Mythos)

    Aristóteles considera o enredo o elemento mais importante da tragédia. Em “Hamlet”, o enredo é complexo e cheio de reviravoltas, o que se alinha com a preferência de Aristóteles por enredos que incluem peripécias (mudanças de sorte) e anagnórises (reconhecimentos). A história de Hamlet envolve a busca por vingança após o assassinato de seu pai, o rei, por seu tio Cláudio. A trama é rica em eventos inesperados e revelações, mantendo o público constantemente envolvido.

Caráter (Ethos)

    Os personagens em “Hamlet” são bem desenvolvidos e possuem profundidade moral, o que é essencial segundo Aristóteles. Hamlet, o protagonista, é um príncipe nobre que enfrenta um dilema moral e psicológico. Sua hesitação e introspecção refletem a complexidade do caráter humano. Outros personagens, como Cláudio, Gertrudes e Ofélia, também possuem características bem definidas que contribuem para a riqueza da narrativa.

Pensamento (Dianoia)

    O pensamento em “Hamlet” é expresso através dos diálogos e monólogos, especialmente os famosos solilóquios de Hamlet, como “Ser ou não ser”. Esses discursos revelam os temas centrais da peça, como a mortalidade, a corrupção e a vingança. Aristóteles valoriza a capacidade da tragédia de transmitir ideias profundas e universais, algo que “Hamlet” faz de maneira exemplar.

Dicção (Lexis)

    A dicção em “Hamlet” é marcada pela linguagem poética e pelo uso habilidoso das palavras. Shakespeare é conhecido por sua maestria na escolha de palavras e na construção de frases que ressoam emocionalmente com o público. A clareza e a beleza da linguagem são aspectos que Aristóteles considera importantes para a eficácia da tragédia.

Melodia (Melos)

    Embora “Hamlet” não seja uma peça musical, a melodia pode ser entendida como o ritmo e a sonoridade da linguagem. Os versos de Shakespeare possuem um ritmo natural que contribui para a atmosfera da peça. Além disso, a presença de canções e música incidental na produção teatral pode intensificar as emoções, alinhando-se com a ideia aristotélica de melodia.

Espetáculo (Opsis)

    O espetáculo em “Hamlet” inclui os elementos visuais da produção, como cenários, figurinos e efeitos especiais. Embora Aristóteles considere o espetáculo o menos importante dos elementos, ele reconhece seu papel em tornar a tragédia mais impactante. Em “Hamlet”, o uso de elementos visuais, como o fantasma do rei e as cenas de duelo, contribui para a intensidade dramática da peça.

Catarse

    A catarse é um dos conceitos centrais da “Poética” de Aristóteles. Em “Hamlet”, o público experimenta uma purificação emocional através das emoções de piedade e medo. A tragédia de Hamlet, sua luta interna e seu destino trágico provocam uma resposta emocional profunda no público, permitindo-lhes experimentar e liberar essas emoções de maneira segura.

    Analisar “Hamlet” à luz da “Poética” de Aristóteles revela como Shakespeare incorpora os elementos essenciais da tragédia aristotélica em sua obra. O enredo complexo, os personagens profundos, os temas universais, a linguagem poética, o ritmo natural e os elementos visuais contribuem para a criação de uma tragédia que continua a ressoar com o público séculos após sua criação. Através dessa análise, podemos apreciar ainda mais a genialidade de Shakespeare e a relevância duradoura dos princípios estabelecidos por Aristóteles.



    

segunda-feira, 15 de abril de 2024

Foi quase

E foi quase milagre

Quase toque, quase rock

Quase amor

 

Por pouco foi tão perto e tão longe (morena flor)

 

Foi deserto e poente

Quase milagre e Oriente

 

Foi você em um beijo

E quase vejo

 

Foi paixão num quase e não nos temos

E te encontrar num quase e quase plenos

 

Foi no escuro, e claro, nos perdemos

Na lembrança do beijo (que vivemos)

Ao ver seu corpo (lábios, pele, pelos, seios)

e implorar por calma

Estar dentro de ti, fora de mim

Em fa, em ré, em si

 

Te amar Morena Flor

Morena cor

Morena amor

Provar tua alma

segunda-feira, 14 de março de 2022

Minha primeira crônica futebolística

 

“Como assim você nunca foi a um estádio?” Assim começou o questionamento que me levou a uma das mais sensacionais aventuras da minha vida. Devo estar exagerando. Com certeza estou.

Mas não preciso exagerar nas sensações que levaram meu coração de zero a cem em noventa minutos.

Explico: dois amigos torcedores de determinado time da capital paulista, time que nunca torci, não por falta de empatia, simplesmente por nunca ter pensado no assunto. Nunca nutri paixão clubista, sempre interessado em outros expedientes, minha diversão no que se refere a futebol se resumia a assistir aos jogos da Seleção Brasileira a cada quatro anos, me frustrar, mas não muito, me alegrar, mas nunca tanto. Até que o Vinícius, esse o nome de um dos amigos, se exasperou comigo pelo fato de eu ser do país do futebol e nunca ter sequer entrado num estádio, numa arena futebolística como diria Nelson Rodrigues.

Desafiado pelo Rodrigo, o outro amigo, aceitei o convite e numa noite de quarta-feira adentrei o estádio, o grandioso estádio esperando que tudo se revelasse e que daquele momento em diante minha vida fosse tocada pelos deuses do futebol.

Não foi bem assim. Não no primeiro momento. Longe de ser um amor à primeira vista.

Moramos muito longe do local da partida, trânsito complicado, congestionamento, fila para comprar o ingresso, preço absurdo, multidão, cavalos da polícia, tudo observado por mim com espanto e nenhuma admiração. Aquilo tudo parecia um ambiente um tanto quanto hostil, algo me dizia que eu não deveria estar ali e muito, no entanto, eu estava e ainda sem paixão clubista alguma fui levado para um ponto da arquibancada extremamente distante do campo de jogo.

Lembrei-me neste momento de quando meu pai saia para jogar futebol num campinho na beira da rodovia e se juntavam famílias e mais famílias para assistirem a tudo, minha mãe incentivando meu pai – goleiro do famosíssimo time Cuca Fresca, ultra campeão da várzea de Guarulhos. Ali, naquele estádio, tudo tão distante e frio. Onde escuto o narrador? Como saber se o jogo estava bom ou ruim?

Comecei a me orientar quanto à qualidade da partida pelas reações de meus dois amigos, pelos seus palavrões e pelos dos demais torcedores que não polpavam a nenhum dos jogadores de seu próprio time de paixão. Muitos gritos, todos incomodados com o fraco desempenho do elenco, forçando um fraco e apático zero a zero como diria qualquer outro cronista mais esportivo do que eu.

Percebi que aquele lugar não fora feito para mim, um bocejo veio à minha boca. Pensei em sentar e descansar minhas pernas. A exaustão do dia, lembra? Trânsito, congestionamento, multidão, cavalos da polícia, gritos e cantorias, tudo aquilo me cansava muito. Comecei a me arrepender de estar ali. Mas como fui, decidi ficar em pé uma última vez na arquibancada e esticar o olhar para dar uma última olhada no passeio que jamais faria novamente na vida.

Então aconteceu. Simples. Aconteceu. O que aconteceu? Um gol. Simples assim. Um gol. Sem narrador. Sem locução. Sem ninguém me dizendo que era momento de pular e abraçar o coleguinha do lado eu pulei e abracei o coleguinha do lado. Muitos colegas. Pessoas que nunca vi e nunca voltaria a ver. Senti naquele instante um fulgor tomando conta de mim. Uma alegria envolvendo minha mente. Talvez meu coração.

Tudo começou a fazer sentido: a distância, o congestionamento, o preço do estacionamento, a bebida quente que deveria ser servida gelada e pela metade do preço e tivemos que pagar porque era a única opção, ou isso ou a desidratação. O gol de canela marcado pelo zagueiro trouxe sentido para tudo aquilo.

Descobri a magia do futebol no final dos noventa minutos. Um gol marcado. Apenas um. Sem graça. Feio. Que não ficará na memória de ninguém se não na minha. Por um motivo que não este: a minha primeira vez num estádio. A primeira vez que celebrei um gol dentro de um templo elaborado para o futebol.

Por Mauro Marcel

sexta-feira, 11 de março de 2022

Rei Lear, e eu com isso?

              Li muito, desde a infância, uma das minhas críticas: empurrar obras pra lá de maduras que exigem certa maturidade de leitura e de vida a adolescentes e crianças. Então forçam Machado de Assis, Clarice Lispector, Guimarães Rosa, ouvi que os jovens da Rússia leem “Crime e Castigo” na oitava série. Quem me contou, contou com lágrimas nos olhos, alegria impossível de segurar, alegria que transborda. Mas não compartilho deste sentimento e isto não é o motivo desta crônica, mas não pude me furtar ao comentário, já de início, no primeiro parágrafo. Obrigar crianças a lerem obras desse porte em tão tenra idade é uma violência ao leitor e à obra. Não digo que também seja ao finado escritor porque este já tenha, como direi, morrido. Mas é um ataque a sua obra. (Incentivos e aproximações são sempre bem-vindos. Como a leitura de um conto, um capítulo, um debate, uma roda de conversa. Um livro deixado estrategicamente numa estante de destaque na biblioteca). Dito isto. Vamos para o primeiro parágrafo, aquele em que eu conto o motivo do título desta crônica.

              Rei Lear. Este é o motivo. Acabei de relê-lo e ao fim da leitura me deparei com um livro que não havia encontrado na adolescência. Lia sem critério, apenas devorando, engolindo sem saborear. Dessa vez pude fazer associações, relacioná-lo com a vida real, com o mundo que me cerca e que o cerca também, você que agora lê esta crônica e é leitor de Shakespeare, você que nem sabe do que estou falando.

              Lear é um rei idoso que decide dividir seu reino em partes iguais entre as três filhas. Para tal organiza uma cerimônia em que pede para cada uma dizer o quanto o ama. A filha mais velha diz que o ama mais que a tudo no mundo, seguida pela do meio que diz amá-lo ainda mais que a mais velha. A mais jovem, Cordélia, diz que o ama apenas como pai, com o dever de filha, nem mais nem menos. Quando questionada duramente pelo rei sobre a dureza de suas palavras a moça diz que ainda não se casou e que ao se casar teria de dividir o amor que sente pelo pai com seu marido, não era como as irmãs que já eram casadas e diziam amar o pai acima de tudo, inclusive de seus próprios maridos, talvez filhos. O rei, pai de Cordélia, faz o que se espera de um rei, ou de um pai, ou de um ser humano qualquer ao ouvir tanta verdade: expulsa a filha de sua vida.

              Este é o motivo da tragédia shakespeariana, apenas a primeira cena e me deterei nisso nesta crônica.

              Muitas outras interpretações podem ser feitas da obra, deste início de obra e acreditem, muitas interpretações foram feitas. Muitas ainda serão. Contribuo com a minha, que nem deve ser original:

              Rei Lear representa qualquer um de nós, todos nós. Cordélia também nos representa. Todos somos Lear e Cordélia e explico de forma muito objetiva utilizando exemplos da nossa sociedade, como sei que o mesmo se aplicava à época de Shakespeare, daí sua grandiosidade.

              Lear conhece o poder, sabe da ambição que desperta em todos. Não está, portanto, interessado em verdades. Está interessado em lisonja, em bajulação. Organiza para tal uma celebração em que todos vestem máscaras, todos têm de atuar segundo suas regras. Quando digo suas, digo “as regras do rei”.

Você quer o benefício do estado? Precisa dizer o que eu quero ouvir. Quer ser cuidado por mim? Me agrade. Pareça uma pessoa boa. (Para mim – que tenho poder sobre você).

Não importam suas atitudes, o que importa é o que você diz, como você finge iludir as pessoas que o cerca.

Qual o erro de Cordélia? Romper com o teatrinho social organizado por Lear. Por isso Lear somos nós, impossíveis de ouvir as verdades, acreditando mais nas palavras que nas ações das pessoas. Difícil encontrar uma Cordélia no mundo e quando a encontramos a defenestramos de imediato. Me diz, por que eu quereria alguém ao meu lado dizendo verdades atrás de verdades, mesmo que tivesse dela o mais puro amor que alguém poderia ter por mim?

Na esfera social percebo muita gente defendendo minorias, camadas sociais desfavorecidas, pessoas em situação de insegurança alimentar etc., falando o que é certo porque é o que é certo falar. Não falam com o coração porque na primeira oportunidade que tiverem de mostrar ao mundo o que habita seus corações, acredite: mostrarão.

Nesse sentido também somos Cordélias. Minto, na verdade o nosso desejo é o de ser Cordélia, mas estamos todos muito mais para Goneri e Regan, as filhas mais velhas do rei.

Cada vez que agimos como Cordélias afastamos mais e mais pessoas. Aprendemos isso na primeira infância e repetimos a lição vida afora. Construindo ao nosso redor o que a cientista política Elisabeth Noelle-Neumann chama de “espiral do silêncio”. Mas não apenas isso.

É emblemático ver Rei Lear dividindo seu reino entre as filhas, me faz pensar no Estado, esse com “E” maiúsculo, financiando eventos culturais, projetos acadêmicos, contratando empresas. Penso também no que precisamos falar para receber nosso pedacinho deste reino e no que acontece com quem “cordeleia”. (O editor de texto grifou a palavra, acho que inventei o termo, mais provável que não).

Também penso nas pessoas com os discursos prontos, discursos preparados para parecer um cidadão probo, defensor dos fracos e oprimidos e pensando nisso penso no que habita o coração de todos que assim agem, ou seja, todas as pessoas do mundo, e como ser mais íntegro de fato. Sendo honesto comigo e com todos e conseguindo conviver em uma sociedade acostumada a isso.

Talvez a resposta seja continuar a peça até que o pano caia, ou, e isso precisa mesmo de maturidade, conhecer as pessoas certas e os lugares adequados em que podemos ser nós mesmos, sem máscaras, sem medo de dizer o quanto amamos e odiamos tudo nesse mundo lindo, feio, lúcido e louco. Sem medo de parecer estúpido ou horrível. Sem medo de ser estúpido e horrível. Porque a verdade, quando acompanhada de gente leal e verdadeira não nos enfeia, nos revela.

Talvez se alguém tivesse conversado comigo sobre Rei Lear e Shakespeare e tal eu fosse um ser humano melhor. Talvez por isso obriguem os jovens a lerem os clássicos.

Esqueçam o primeiro parágrafo. Vou lutar por uma lei que obrigue a todos em qualquer parte a lerem tudo o que é bom segundo os meus critérios. É isso.

Até a próxima crônica!

Por Mauro Marcel

mauromarcel@gmail.com

quarta-feira, 18 de agosto de 2021

Por que extinguiram o trem de Guarulhos?

             

        Lembro com saudade do professor Eugênio. Nunca fui seu aluno, nunca tivemos uma conversa a sós (além da que motivou esta crônica, obviamente), não o recebi em casa, nem fui visitá-lo quando soube de sua internação pelo câncer que já atingia seus ossos.

              Na última vez que o vi tinha um olhar sereno: “eu cheguei antes do câncer, tenho mais direito de estar aqui do que ele”, mas partiu. Já era um senhorzinho grisalho, simpático lorde de fala calma, daqueles homens raros inclusive nos velhos tempos, dos que não precisam pedir silêncio para falar, porque ao dizer, o que quer que fosse, todos dão atenção.

              Não sou de entrar em rodas de conversa iniciadas sem mim, tímido ao extremo, por vezes sofro pela minha falta de tato social, mas naquela roda estava o professor Eugênio e sempre gostei de sua conversa, verdadeiras aulas, aquela já havia se iniciado há algum tempo. Alguns minutos depois me vi sozinho com o professor e não sei quem havia iniciado o novo assunto, ou sei, foi eu... Desta forma: estava muito revoltado com alguns estudantes da Universidade Federal de São Paulo, na época eu fazia o curso de História da Arte e me relacionava (pessimamente) com os mestres e, ainda pior, com os meus colegas de curso.

              Contei ao professor da minha dificuldade em conversar com os alunos que, oriundos de outras cidades, sem entender nada da nossa realidade guarulhense, passavam todo o tempo falando mal do campus. De fato, a Unifesp ao se instalar em Guarulhos teve sérias privações, os estudantes, professores, funcionários etc. Todos passaram por dificuldades, porém o que me revoltava é que num campus com cursos, em sua maioria, da área de humanas, havia tão pouco da chamada consciência social nos envolvidos no processo de instalação da universidade na região periférica de uma cidade também periférica de São Paulo.

              Não sei por quanto tempo o professor Eugênio ficou me escutando falar do que ouvia antes, durante e após as aulas: “essa universidade posta aqui pra desprestigiar os cursos de humanas”, “bastava um trem, nada mais que um trem para este inferno de cidade, nem isso aqui”, “que gente feia essa”, “por que os pais levam as crianças para o mercado? Qual a graça disso?...

              E muito mais que não me atrevo a dizer, pois pareceria inventado ou preconceituoso, antes: estar falando mal da Universidade Federal de São Paulo, o que nunca farei.

              Foi esta a conversa com o professor, fiz parte do movimento pela implantação de uma universidade pública em Guarulhos, tê-la instalada na região mais carente e populosa da cidade um motivo de orgulho, principalmente por ser onde ainda habito.

Retrucando a um dos idiotas aleatórios sobre a precariedade do bairro: há poucos anos por aqui não havia mercado, posto de vacinação, hospital, linhas regulares de ônibus, ruas asfaltadas, segurança pública, saneamento básico, esgoto, coleta regular de lixo...

              Escutei-o dizer: “então não tinha nada...”

              Pois é... “Não tem pra você que cresceu com acesso precário a tudo, mas ainda algum acesso”.

Nós da região do Pimentas fomos inseridos pelas circunstâncias em um bairro que de tão pobre não possuía nada, verdadeiramente nada. Nem mesmo condições precárias de sobrevivência.  

              Tão precária a condição que um dos únicos momentos de lazer eram as compras no supermercado, daí as crianças serem levadas pelos pais, algo que obviamente irritava alguns dos novos frequentadores do bairro.

              O professor Eugênio escutou a tudo com uma placidez tão terna que por um momento me senti compreendido, o que realmente fui.

             Sua resposta a minha revolta foi uma pequena aula da história de Guarulhos: “sabe o trem das 11 da canção do Adoniran Barbosa? Sabe por que ele era o último e saía às 11? Porque era o trem que vinha pra Guarulhos. O trem da Cantareira.

              Ele saía do Pari e vinha pra cá, distante demais. Tão distante e precarizado, era uma linha às beiras do abandono. O fim deste ramal era a Base Aérea de São Paulo, mas todos desciam antes ou eram obrigados a desembarcar na região central da cidade. Um terminal triste e sem nenhum brilho. Quer dizer, Guarulhos era tão longe nos dizeres da canção que ficava mais longe que o Jaçanã.

         Sabe por que Guarulhos não tem linha de trem? Porque o prefeito da época se elegeu com a promessa de resolver os problemas do transporte público da cidade. Muitas pessoas morriam caindo dos trens que vinham lotados, com pessoas penduradas nas portas e em cima dos vagões. Era uma luta cotidiana contra a morte, todos os dias havia casos de gente perdendo braços, pernas, mãos, cabeça, a vida na linha que servia os bairros mais distantes da distante Nossa Senhora da Conceição.

              Havia a estação Leprosário (na verdade Gopouva), hoje hospital padre Bento, no caminho para o centro, agora o Anel Viário. É perceptível nas duas mãos de tráfego de automóveis que há realmente espaço para um trem na rua que vai para o centro e outro que voltaria para a estação da Luz. Várias pessoas morreram nesse caminho. Muitos decepados sem ajuda alguma, nenhuma assistência do poder público.

              Foi compreensível quando o prefeito teve o total apoio da população para que os trens fossem retirados e em seu lugar “modernos” ônibus coletivos na recém instalada rodovia presidente Dutra. Muito mais segura e rápida. Numa época de ufanismos e construção de Brasília, totalmente compreensível.

Na mente daquelas pobres almas o trem representava o passado, o ônibus, o automóvel, o futuro. Quem tenta entrar ou sair de Guarulhos sabe muito bem quais as consequências dessa escolha numa cidade cortada por três das principais rodovias do país, muitas transportadoras, um aeroporto, uma base aérea e muito pouca mobilidade urbana.

              Indo para Itanhaém pela rodovia padre Manuel da Nóbrega quase um retorno por quilômetro e mesmo assim vários pontos de congestionamento, em Guarulhos são três os retornos na principal rodovia, a Presidente Dutra, na rodovia Ayrton Senna apenas dois.  

              Se na cidade de São Paulo ocorreu um complexo desenvolvimento que gerou as desigualdades sociais que ora vemos na presença de favelas, enchentes, cracolândias, violência urbana, moradores em situação de rua; pense em Guarulhos que recebia levas de pessoas buscando morar em lugares menos caros, cada vez podendo pagar menos, esses lugares muito distantes das capitais, como é comum em qualquer lugar do Brasil.

              Agora imagine várias empresas se instalando às margens da rodovia Presidente Dutra e as pessoas, sem possibilidade de financiar, comprar ou alugar suas casas tendo que construir barracos de madeira para morarem com suas famílias ao lado do emprego porque os salários são tão baixos durante o período militar que não possibilitava a ninguém nada além do mínimo, de menos que o básico.

              Junte a isso mais pessoas chegando das diversas regiões do Brasil, em especial do Nordeste. Você sabia que as pessoas que moravam na região dos Pimentas, onde hoje está localizada a Universidade Federal de São Paulo não se consideravam moradores de Guarulhos? Tanto que ao se deslocarem para o Centro do município diziam estar indo para Guarulhos e isto só começou a mudar com a chegada da Unifesp? Sabia também que ao se dirigir a São Paulo diziam estar indo para “a cidade”? Ou seja, Guarulhos não era cidade, era considerada pelos seus moradores o interior, não como Campinas, Rio Preto ou São José dos Campos, por serem cidades do interior do estado, mas por ser atrasada como nos contos de Monteiro Lobato protagonizados pela personagem Jeca Tatu.

              Guarulhos era o “quarto de despejo” de São Paulo, para chegar lá era preciso cruzar o Rio Tietê, um lixão que ficava em Santana onde hoje é o shopping Center Norte, a favela do Canindé (a do livro da Carolina Maria de Jesus). O bairro dos Pimentas o “quarto de despejo” de Guarulhos.

              E voltando para o trem que deixou de existir. Sabe quem era o dono da empresa de ônibus que ocupou o lugar dos trens? Sim. O prefeito que retirou o transporte ferroviário.

Sabe qual foi o seu maior legado para cidade? Asfaltar as ruas. Claro! Para que seus ônibus trafegassem.

Mas passou encanamento de esgoto e levou água tratada? Não.

Por isso que para o paulistano menino acessar a universidade pública em Guarulhos ele precisa enfrentar ruas com o asfalto decadente, porque primeiro asfaltaram a cidade, depois cavaram o asfalto para passar encanamentos. Muito inteligente, não acha?

E o bairro do Pimentas, jogado num dos pontos mais distantes da cidade, tão distante que nem merecia receber o nome da cidade segundo seus próprios habitantes. Compreendo seu desgosto pelo modo como falam da sua cidade, mas recomendo que você converse com seus colegas de faculdade sobre o impacto que uma universidade pública causa na região que está localizada. Na forma como é uma conquista e não um favor e na responsabilidade que vocês, estudantes da Unifesp, têm para com o Brasil e mais objetivamente com a comunidade que os acolheu.

Outros problemas surgem, surgiram e surgirão e o que temos de fazer é conviver com as escolhas de nossos antepassados. Temos que lembrar delas. Lembrar dos motivos que nos levaram a tais escolhas. Consertar os equívocos, aprimorar os acertos e nunca deixar de procurar pelo bem comum. Porque o mínimo que podemos fazer é deixar o local que vivemos um pouco melhor que quando chegamos, passar pela vida das pessoas e deixar algo bom para ser lembrado.”

Disse isso e saiu pra tomar um café. Não nos despedimos naquele dia. Pouco tempo depois iniciou a luta contra o câncer que o matou.

Muito da memória que tenho daquela conversa e que trouxe a público nesta crônica não ocorreu da forma que narro. Mas foi a lembrança de uma explicação sobre o trem de Guarulhos, uma explicação tão apaixonada que me fez tolerar a ignorância dos meus colegas de faculdade e tentar mudar aos poucos a imagem que eu tenho em mim sobre a cidade que moro há quase quarenta anos. Aceitando meu amor pelo meu ponto de vista, a minha cidade, o meu ponto de vista em relação ao mundo, posso buscar melhorar a mim e o meu lugar.

Assim como o professor Eugênio, que deixou esta e outras excelentes lembranças. Toda vez ao passar pelo Anel Viário lembro da nossa conversa e de como Guarulhos é complicada, mas caminhando a passos lentos, já bem melhor do que foi nos anos 1960 com a extinção do trem da Cantareira.

Há inclusive um outro trem, em outro ponto, uma nova linha ligando o aeroporto ao extremo leste, um expresso até a Luz, Guarulhos se conectando novamente a São Paulo via trilhos. Quem sabe algum dia até o Pimentas.



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sexta-feira, 13 de agosto de 2021

Borba Gato permanece ereto

Eu acredito no poder transformador e revolucionário da educação. Ou simplesmente: eu acredito no poder da educação. Ou mais simples ainda: eu acredito na educação. Dito isso, posso começar a desenvolver o argumento sobre o tema que me traz à pena.

              Sim. À pena, e a duras penas venho escrever sobre a derrubada (na verdade a tentativa de derrubada) da estátua do bandeirante Borba Gato.

              Vamos à opinião: eu acredito na educação, em seu poder transformador e acredito que os professores são fundamentais para uma sociedade saudável, consciente e justa.

              Ou em busca de.

              Quem foi Borba Gato? Pouco importa. Verdade. Pouco importa ao debate. Mas como sempre fico me adiantando, me achando um Brás Cubas indo e vindo com meu texto. Vou do começo. Se for indicar esta leitura a um amigo, peça que inicie pelo próximo parágrafo, nada de interessante foi dito nos anteriores.

              No dia 24 de julho de 2021 um grupo decidiu incendiar uma estátua que fica em São Paulo na avenida Santo Amaro. A personagem retratada na figura é a do bandeirante Borba Gato. Esta é a notícia principal que completo com a informação que a escultura não veio abaixo, resistiu firme, com diversas avarias, é claro, e prejuízo aos cofres públicos que terão de arcar com o conserto causado pelo ataque.

              Conversei com muita gente sobre o ocorrido, muita pessoa inteligente, muito historiador, alguns livros, vídeos sobre a história dos bandeirantes.

Escrevo quase um mês após o ocorrido, a estátua ainda chamuscada e em pé, não caída como a dos Budas destruídos pelo Taliban, nem perdida como os livros incendiados da biblioteca de Alexandria.

              Deste modo: muitos já destruíram muita coisa em defesa de verdades e muitos também destruíram em defesa de mentiras, quem sou eu pra julgar? Falo de orelhada. Sou um simples professor de educação básica. Um simples amante de arte e a estátua nem era, como direi, assim tão artística. Sou um aficionado por história do Brasil e do mundo, Borba Gato nem é alguém tão relevante. Quem sou eu na fila da pamonha? Quem sou eu ao relacionar de algum modo um bandido (bandeirante) com elementos culturais reconhecidos como excepcionais mundo afora.

Lá vem ele comparar o assassino bandeirante com Rodin, Brecheret, o nariz da esfinge, o olhar da Gioconda...

              Isso mesmo. Vamos pôr fogo nas estatuas, vamos queimar e sem deixar traços para as próximas gerações não permitiremos que nossos netos, bisnetos e tataranetos compreendam o mundo que habitam com a devida perspectiva histórica.

              Esqueçam o Borba Gato, esqueçam de quem se trata.

Vamos começar por este parágrafo. Aqui começa a crônica. Deleta o que foi anteriormente escrito. Incendeie!

Estamos num Brasil que queima estátua em praça pública.

Por hora vou chamar de vândalo a quem incendeia o patrimônio histórico independentemente do juízo de valor que possa dele (o patrimônio histórico) independentemente do juízo de valor que possa dele ser feito.

              Nos últimos anos houve incêndios devastadores no Memorial da América Latina, Museu da Língua Portuguesa, Museu Nacional, depósito da Cinemateca Brasileira, esqueci algum? Ah é... A estátua do Borba Gato. Tudo devastado pela ação ou omissão de vândalos. Sem falar do alagamento que destruiu a cidade de São Luiz do Paraitinga no Vale do Paraíba, o deslizamento de rejeitos de mineração em Mariana, incêndio em igreja histórica em Ouro Preto... o Brasil não é para amadores.

              A partir do momento que é retirado das pessoas o acesso à perspectiva histórica só possível pela educação e contato com sua trajetória humana e pessoal, legamos às futuras gerações a eterna repetição de modelos fracassados de poder e sociedade.

Legamos fracasso e mais fracasso, uma sociedade sem memória, sem passado, sonegada da possibilidade de julgar os erros de seus antepassados e aprimorar, mudar. E como? Com educação. Sabe por quê? Porque eu acredito na educação. Eu acredito no poder transformador e revolucionário da educação e por isso sou contra a queima do nosso patrimônio histórico.

No livro “Terra sonâmbula” Mia Couto levanta o debate sobre uma sociedade sem passado, fruto de uma guerra civil que matou os pais e os avós, deixando as crianças soltas no mundo, vagando sem história, retirantes de lugar nenhum, sem saber de onde vieram, como saber para onde irão?

No caso de Moçambique a crítica é direta às consequências da guerra civil pós processo de independência. No Brasil há um processo outro. Um processo que nos leva a cada dia, a cada instante, a cada novo incêndio, alagamento, fechamento de museu, cortes em orçamento, vandalismo em prédios tombados pelo patrimônio, destruição de estátuas, elevação de ícones da cultura pop a intelectuais respeitadíssimos nas discussões acadêmicas, exclusão de clássicos das bibliotecas, aulas e debates.

Se fizerem uma fogueira e queimarem os livros, talvez um dos que exaltam a destruição das estátuas se erga contra os que assim agem. Mas não acredito, o mais provável é que festejem a destruição de todo e qualquer contraditório que percebem como inimigos e adversários e não como o que de fato são: diferentes.

Até onde me lembro, pensar diferente deixou de ser crime desde a Declaração dos direitos do homem e do cidadão em 1789.

Mas há pessoas que não leram nada a respeito. Não leram e nunca lerão. E o que é pior: se recusam a permitir que outros tenham acesso ao mundo diferente do que entendem como o ideal.

Eu sei no que isso transformou o mundo num passado não tão distante. E num distante também. É a história se repetindo ad infinitum como farsa após farsa. Incêndio após incêndio.


Por Mauro Marcel

quinta-feira, 10 de junho de 2021

Homeschooling, ou sobre os sonhos que não são meus, ou o porquê de você deixar de respeitar minha opinião embora muito embasada em argumentos e dados empíricos.

 


            Você já pensou em como as escolas surgiram?

Não a escola do seu bairro construída no início dos anos 1980 pouco antes ou depois, ou a dos grandes centros na primeira metade do século XX.

Não quando, mas como?

              Em torno de qual ideia se estrutura o conceito de escola num Brasil de Paulo Freire e Anísio Teixeira?

E não cito os teóricos como posicionamento ideológico, mas para dizer que antes dos mesmos já havia quem pensasse um lugar onde as crianças ficam o dia todo distantes do seio familiar e próximas a outras influências: Estado, Mercado, esportes, religiões, grupos, paixões, ideias preconcebidas, ideias, etc. etc.   

              Ensinar não é algo novo e ensinar em casa muito menos. Um agricultor tinha muitos filhos porque muitas pessoas significava muita mão de obra na lavoura.

O ensino doméstico nasceu com a própria ideia de estabelecer-se em determinado lugar e plantar e colher e plantar novamente e colher novamente com mais ou menos ajuda, com mais e menos sucesso...

Agora, depois de escrito e relendo fico pensando que antes já havia a ideia de ensinar a caçar, a coletar, a preparar o alimento retirando as impurezas, e antes a ideia de construir ferramentas das mais primitivas às ainda primitivas porém mais elaboradas, a cuidar do fogo, manejá-lo e não deixar o acampamento incendiar-se.

              Um João de barro pai não ensina ao João de barro filho como construir uma casa, o instinto de preservação está em seus genes, por instinto um passarinho voa, por instinto um camaleão se protege, por instinto uma leoa caça uma gazela na savana e cruza e procria, sem aquilo que chamamos de comunicação complexa.

O que quero dizer é que há sim um nível de passagem de bastão de seres que não nós na natureza, seres que não conseguem enviar um homem para a Lua e nem pensar em como colonizar outros planetas.

              A diferença entre uma barata e um homem é que para o inseto tudo é presente, um eterno e contínuo agora, enquanto que para nós, para você que lê o que escrevo, há também um passado carregando sua consciência de remorsos ou nostalgia, e um futuro carregando sua mente de ansiedade ou sonhos.

              Os seres humanos precisam de escola porque tem passado, presente, futuro e porque se afastou da vida simples dos instintos.

Eis os motivos de haver escola: é muita coisa para administrar.

Difícil essa vida, é mais fácil ser bactéria que não planeja, não se frustra, não decepciona os pais ao escolher a profissão errada, não decepciona a si mesmo escolhendo o caminho tortuoso das drogas, não sente vergonha quando faz cocô na roupa ao passar mal na sala de aula da quinta série (acho que fui muito específico). Não aprende e não modifica por livre arbítrio a própria realidade.

Neste momento percebo que me distancio do que me trouxe ao texto, mas vou fundo pelo caminho que me direcionei, se conseguir, retorno, se não, deixo a cargo do leitor seguir, ou não, comigo até a última linha.  

Pois bem, ao falar de educação é preciso diferenciar bem o que é escola do que seja ensino. Ensinar e aprender são processos ininterruptos que devem nos acompanhar por toda a vida.

Uma pessoa que não aprende, sabemos como chamar.

Também sabemos como chamar uma pessoa que se recusa a ensinar o que sabe.

A escola, em minha humilde opinião tem que ser pensada em separado do ensinar e aprender, principalmente num século XXI de acesso instantâneo a vídeos com tutoriais, aulas com professores amadores que não são professores, são curiosos sobre determinado assunto, mas que ensinam também e faz parte da universalização do acesso ao conhecimento tão sonhado por pessoas ilustradas de distintas épocas da humanidade.



E quero que discordem de mim. Mas também que alguém concorde. Repito o que para mim nem é tão polêmico: a escola deve ser pensada em separado do processo ensino/aprendizagem.

Longe de romantizar o debate, é sabido que o Estado (todos eles) utilizam o dinheiro dos impostos para gerar benefícios para a população (ou deveria), a educação escolar é um serviço que é um benefício que deve gerar outros como professores, pessoas mais conscientes que poluem menos, mão de obra qualificada, pensadores, construtores, policiais, exército, artistas, médicos...

Em períodos de guerra a escola serviu para disciplinar (há ideias difíceis de morrer e pessoas que ainda creem que na escola sempre é tempo de guerra, um lugar de extrema disciplina, “o professor bom é aquele que consegue controlar a sala” e tome blá blá blá...).

Jurei para mim em nome de vários santos que não escreveria mais crônicas tão longas, ou ensaios, ou o que for este texto até o final, mas é que sou professor há quase vinte anos e apaixonado pelo assunto. Lembro de como imaginava a escola que trabalharia enquanto cursava letras: sonhava com os estudantes lendo os clássicos da literatura, todos libertos dos grilhões da obediência cega, e nunca me flagrei imaginando uma aula em que perguntava o que eles desejavam ser, fazer, sonhar...

Sempre mais importante na escola dos meus sonhos o meu grandiosos sonho, corretíssimo e asséptico  e, bem diminuto quase um detalhe, os desejos dos alunos.

Quem eram eles para saber o que era melhor para si?

E demorou para mudar, mas mudou. (em mim ao menos)

Se uma época é mais industrial, é legítimo formar mão de obra para a indústria. Se é uma escola inserida numa comunidade agrária também é legítimo formar pessoas que se ocupem das atividades campesinas, o que não impede alguém do campo em sonhar viver do ramo fabril e vice versa.

Alguém aí pensou em equidade? Isso mesmo. Acho que estamos na mesma página, se não, tudo bem, ainda estou aprendendo.  

É legítimo aos pais influenciarem nas decisões de vida dos filhos e os filhos desobedecerem aos pais. A vida é dinâmica e não adianta escrever roteiros e buscar segui-los, talvez sirva para uma meia dúzia de pessoas, mas na escola do início do século XXI a complexidade, os debates, o aprender, o ensinar, tudo é muito mais complexo que no fim do século XX. E muitos professores estavam e ainda estão por lá ensinando em 2021 como se ensinava em 1995 e isto é um dos maiores tabus da educação, entre os diversos que existem.

O caso é que vivemos numa época em que as informações não são obtidas apenas pelos antigos e (dizem alguns) ultrapassados canais oficiais. A informação e o conhecimento vêm de todas as partes numa enxurrada descontrolada, e é papel, hoje, da escola ensinar a selecionar o que é relevante do que não é, assim como a colaborar nessa nevasca de informação: tudo misturado: textos, imagens, infográficos, memes, vídeos, podcasts, aplicativos, redes sociais e o que mais surgir e surge.

Dentro disso, é importante saber que aprender é também entender o que merece nossa atenção. Ao longo do dia milhares de pessoas vão lutar para obter sua, vão querer te vender serviços, mercadorias e ideias.

Porque escrevo este texto, por exemplo. Quais as minhas intenções? Talvez eu queira convencer de alguma coisa não tão boa, mas como saber?

Neste imbróglio é importante pensar que a sociedade enfrenta desafios diferentes dos da mesma população de há quinze anos e enfrentará novos em cinco, dez, vinte; os problemas se renovam antes de serem resolvidos e se avolumam.

A escola de hoje precisa se comprometer com a formação do socioemocional muito mais do que a aquisição de meros conhecimentos enciclopédicos. Sempre haverá um aparelho eletrônico por perto para buscar a capital da Austrália que não é Sidney, a raiz quadrada de um número negativo que não existe ou o que for, a fórmula de bhaskara, a lista de verbos irregulares. E se não houver um aparelho por perto para buscar a informação? Faça o mesmo de quando quer escrever e não encontra a caneta. Admirável mundo novo, muito a aprender, muito a ensinar.

O homeschooling, termo em inglês que significa em tradução livre “ensino doméstico”, deve ser uma opção não apenas para o período escolar, mas para toda a vida. A internet nos aproxima do conhecimento. Ponto. Não há o que discutir. Mas também nos aproxima das maiores bizarrices e imbecilidades inventadas pelo homem.



              Aprender na escola significa, agora em plena década de vinte do vigésimo primeiro século, se relacionar com outros indivíduos e superar desafios de maneira saudável e equilibrada e isto não se aprende longe das pessoas. O ser humano se faz humano no convívio e convivência se aprende e se pratica. De frente para o computador? Um tanto. Porém muito mais no olhar, compartilhando espaços e rotinas com pessoas de diferentes faixas etárias e culturas. A internet otimiza isso, mas nunca substituirá a prática: conviver com as frustrações, por exemplo, se abrir para o novo. São habilidades que a escola tem que desenvolver nos estudantes desde crianças até a adolescência, para que o adulto acrescente vida à própria vida, qualidade aos próprios sonhos, realizações para seus ideais e autonomia aos próprios passos.

                                                                    Mauro Marcel


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