Vivemos num tempo de manchetes, não de margens. Um
tempo onde tudo precisa ser urgente, categórico, viral. Um tempo que exige
posturas claras, respostas prontas, posicionamentos sólidos, emojis precisos.
Um tempo onde qualquer coisa que não grite é considerada irrelevante. E talvez
por isso, a crônica — essa forma pequena, lenta e profundamente humana de se
pensar o mundo — esteja morrendo. E junto com ela, morrem os cronistas.
Mas o que é um cronista, afinal?
É aquele que caminha pelas beiradas. Que olha o que
ninguém olha. Que se detém onde todos passam correndo. Que transforma um
domingo nublado num tratado sobre a solidão. Que vê no canto de uma sala a
metáfora de um país inteiro. O cronista não quer convencer. Quer compartilhar.
Não quer gritar. Quer sussurrar — e isso é quase um crime num tempo de
microfones e megafones.
Rubem Alves, por exemplo, escrevia crônicas como quem
escreve cartas para um amigo íntimo. Ele falava de jardins, de filhos, de
saudade e morte — e, de alguma forma, nos fazia pensar sobre Deus, política e
educação sem levantar um dedo. Rubem era mestre em fazer a alma respirar sem
precisar levantar bandeira. Hoje, ninguém mais quer respirar. Querem vencer.
Nelson Rodrigues, outro cronista dos grandes, nos
mostrou que o cotidiano é uma ópera grotesca. Suas crônicas pareciam pequenos
espelhos rachados, mostrando o ridículo da nossa moral e o absurdo dos nossos
vícios. Falava de adultérios, de futebol, de traições de bairro como quem
desvela os bastidores de uma tragédia grega encenada na Zona Sul do Rio. Nelson
sabia que a crônica, mesmo quando fala de um jogo do Fluminense, está falando
do abismo.
Drummond, por sua vez, levava a crônica para o campo
da delicadeza. Um cronista-poeta. Viu na fila do banco uma pequena epifania,
num carteiro uma metáfora da espera, numa carta amassada a história de um país.
Sua crônica era feita de silêncios e pontuações. De espaço em branco. De
hesitação. Coisa que hoje é confundida com fraqueza — mas que, de fato, é
sensibilidade.
E o mundo, este nosso mundo de agora, não precisa de
mais certezas. Precisa de hesitação. De dúvida. De espaço. De crônica.
A crônica é o único gênero literário que não exige
enredo, clímax, desfecho. Não exige sequer que se fale de algo importante. Pode
ser sobre uma xícara, uma vizinha, um homem que espera um ônibus. E é
exatamente aí que mora sua força: na capacidade de dar sentido àquilo que, no
noticiário ou nas redes sociais, seria descartado como insignificante.
Crônicas não mudam o mundo com discursos. Mudam com
olhares.
E por isso fazem tanta falta.
Vivemos hoje mergulhados numa avalanche de opiniões.
Todo mundo quer ser analista político, jurado do Big Brother, especialista em
guerras internacionais e em crises existenciais. Todo mundo quer estar certo.
Todo mundo quer ser ouvido. Mas quase ninguém quer escutar. Quase ninguém quer
observar.
E o cronista é, acima de tudo, um observador.
Ele anota o que escorre pelas frestas. Ele percebe o
que está morrendo devagar — não em explosões, mas em silêncios. Ele escreve
sobre o avô que não sabe usar o WhatsApp, sobre a moça que chorou no ônibus,
sobre o cheiro de bolo que invadiu a rua e trouxe uma lembrança da infância. E
nesse gesto aparentemente pequeno, ele nos salva um pouco.
Porque num mundo tão cheio de fatos, às vezes o que mais
falta é justamente isso: sentimento.
O cronista não resolve o mundo. Mas revela. Ilumina. E
às vezes isso basta.
Num tempo em que todos querem ser influencers, talvez
o que precisemos mesmo é de cronistas. De gente disposta a perder tempo
escrevendo sobre o tempo que se perdeu. De gente disposta a ver o lado de
dentro. A dar voz ao que não aparece. A registrar, com o toque de quem ama, as
dores e as doçuras de ser humano.
Porque o mundo continua a gritar. E quem não tiver uma
crônica para respirar, vai se afogar nesse barulho.
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