segunda-feira, 14 de março de 2022

Minha primeira crônica futebolística

 

“Como assim você nunca foi a um estádio?” Assim começou o questionamento que me levou a uma das mais sensacionais aventuras da minha vida. Devo estar exagerando. Com certeza estou.

Mas não preciso exagerar nas sensações que levaram meu coração de zero a cem em noventa minutos.

Explico: dois amigos torcedores de determinado time da capital paulista, time que nunca torci, não por falta de empatia, simplesmente por nunca ter pensado no assunto. Nunca nutri paixão clubista, sempre interessado em outros expedientes, minha diversão no que se refere a futebol se resumia a assistir aos jogos da Seleção Brasileira a cada quatro anos, me frustrar, mas não muito, me alegrar, mas nunca tanto. Até que o Vinícius, esse o nome de um dos amigos, se exasperou comigo pelo fato de eu ser do país do futebol e nunca ter sequer entrado num estádio, numa arena futebolística como diria Nelson Rodrigues.

Desafiado pelo Rodrigo, o outro amigo, aceitei o convite e numa noite de quarta-feira adentrei o estádio, o grandioso estádio esperando que tudo se revelasse e que daquele momento em diante minha vida fosse tocada pelos deuses do futebol.

Não foi bem assim. Não no primeiro momento. Longe de ser um amor à primeira vista.

Moramos muito longe do local da partida, trânsito complicado, congestionamento, fila para comprar o ingresso, preço absurdo, multidão, cavalos da polícia, tudo observado por mim com espanto e nenhuma admiração. Aquilo tudo parecia um ambiente um tanto quanto hostil, algo me dizia que eu não deveria estar ali e muito, no entanto, eu estava e ainda sem paixão clubista alguma fui levado para um ponto da arquibancada extremamente distante do campo de jogo.

Lembrei-me neste momento de quando meu pai saia para jogar futebol num campinho na beira da rodovia e se juntavam famílias e mais famílias para assistirem a tudo, minha mãe incentivando meu pai – goleiro do famosíssimo time Cuca Fresca, ultra campeão da várzea de Guarulhos. Ali, naquele estádio, tudo tão distante e frio. Onde escuto o narrador? Como saber se o jogo estava bom ou ruim?

Comecei a me orientar quanto à qualidade da partida pelas reações de meus dois amigos, pelos seus palavrões e pelos dos demais torcedores que não polpavam a nenhum dos jogadores de seu próprio time de paixão. Muitos gritos, todos incomodados com o fraco desempenho do elenco, forçando um fraco e apático zero a zero como diria qualquer outro cronista mais esportivo do que eu.

Percebi que aquele lugar não fora feito para mim, um bocejo veio à minha boca. Pensei em sentar e descansar minhas pernas. A exaustão do dia, lembra? Trânsito, congestionamento, multidão, cavalos da polícia, gritos e cantorias, tudo aquilo me cansava muito. Comecei a me arrepender de estar ali. Mas como fui, decidi ficar em pé uma última vez na arquibancada e esticar o olhar para dar uma última olhada no passeio que jamais faria novamente na vida.

Então aconteceu. Simples. Aconteceu. O que aconteceu? Um gol. Simples assim. Um gol. Sem narrador. Sem locução. Sem ninguém me dizendo que era momento de pular e abraçar o coleguinha do lado eu pulei e abracei o coleguinha do lado. Muitos colegas. Pessoas que nunca vi e nunca voltaria a ver. Senti naquele instante um fulgor tomando conta de mim. Uma alegria envolvendo minha mente. Talvez meu coração.

Tudo começou a fazer sentido: a distância, o congestionamento, o preço do estacionamento, a bebida quente que deveria ser servida gelada e pela metade do preço e tivemos que pagar porque era a única opção, ou isso ou a desidratação. O gol de canela marcado pelo zagueiro trouxe sentido para tudo aquilo.

Descobri a magia do futebol no final dos noventa minutos. Um gol marcado. Apenas um. Sem graça. Feio. Que não ficará na memória de ninguém se não na minha. Por um motivo que não este: a minha primeira vez num estádio. A primeira vez que celebrei um gol dentro de um templo elaborado para o futebol.

Por Mauro Marcel

sexta-feira, 11 de março de 2022

Rei Lear, e eu com isso?

              Li muito, desde a infância, uma das minhas críticas: empurrar obras pra lá de maduras que exigem certa maturidade de leitura e de vida a adolescentes e crianças. Então forçam Machado de Assis, Clarice Lispector, Guimarães Rosa, ouvi que os jovens da Rússia leem “Crime e Castigo” na oitava série. Quem me contou, contou com lágrimas nos olhos, alegria impossível de segurar, alegria que transborda. Mas não compartilho deste sentimento e isto não é o motivo desta crônica, mas não pude me furtar ao comentário, já de início, no primeiro parágrafo. Obrigar crianças a lerem obras desse porte em tão tenra idade é uma violência ao leitor e à obra. Não digo que também seja ao finado escritor porque este já tenha, como direi, morrido. Mas é um ataque a sua obra. (Incentivos e aproximações são sempre bem-vindos. Como a leitura de um conto, um capítulo, um debate, uma roda de conversa. Um livro deixado estrategicamente numa estante de destaque na biblioteca). Dito isto. Vamos para o primeiro parágrafo, aquele em que eu conto o motivo do título desta crônica.

              Rei Lear. Este é o motivo. Acabei de relê-lo e ao fim da leitura me deparei com um livro que não havia encontrado na adolescência. Lia sem critério, apenas devorando, engolindo sem saborear. Dessa vez pude fazer associações, relacioná-lo com a vida real, com o mundo que me cerca e que o cerca também, você que agora lê esta crônica e é leitor de Shakespeare, você que nem sabe do que estou falando.

              Lear é um rei idoso que decide dividir seu reino em partes iguais entre as três filhas. Para tal organiza uma cerimônia em que pede para cada uma dizer o quanto o ama. A filha mais velha diz que o ama mais que a tudo no mundo, seguida pela do meio que diz amá-lo ainda mais que a mais velha. A mais jovem, Cordélia, diz que o ama apenas como pai, com o dever de filha, nem mais nem menos. Quando questionada duramente pelo rei sobre a dureza de suas palavras a moça diz que ainda não se casou e que ao se casar teria de dividir o amor que sente pelo pai com seu marido, não era como as irmãs que já eram casadas e diziam amar o pai acima de tudo, inclusive de seus próprios maridos, talvez filhos. O rei, pai de Cordélia, faz o que se espera de um rei, ou de um pai, ou de um ser humano qualquer ao ouvir tanta verdade: expulsa a filha de sua vida.

              Este é o motivo da tragédia shakespeariana, apenas a primeira cena e me deterei nisso nesta crônica.

              Muitas outras interpretações podem ser feitas da obra, deste início de obra e acreditem, muitas interpretações foram feitas. Muitas ainda serão. Contribuo com a minha, que nem deve ser original:

              Rei Lear representa qualquer um de nós, todos nós. Cordélia também nos representa. Todos somos Lear e Cordélia e explico de forma muito objetiva utilizando exemplos da nossa sociedade, como sei que o mesmo se aplicava à época de Shakespeare, daí sua grandiosidade.

              Lear conhece o poder, sabe da ambição que desperta em todos. Não está, portanto, interessado em verdades. Está interessado em lisonja, em bajulação. Organiza para tal uma celebração em que todos vestem máscaras, todos têm de atuar segundo suas regras. Quando digo suas, digo “as regras do rei”.

Você quer o benefício do estado? Precisa dizer o que eu quero ouvir. Quer ser cuidado por mim? Me agrade. Pareça uma pessoa boa. (Para mim – que tenho poder sobre você).

Não importam suas atitudes, o que importa é o que você diz, como você finge iludir as pessoas que o cerca.

Qual o erro de Cordélia? Romper com o teatrinho social organizado por Lear. Por isso Lear somos nós, impossíveis de ouvir as verdades, acreditando mais nas palavras que nas ações das pessoas. Difícil encontrar uma Cordélia no mundo e quando a encontramos a defenestramos de imediato. Me diz, por que eu quereria alguém ao meu lado dizendo verdades atrás de verdades, mesmo que tivesse dela o mais puro amor que alguém poderia ter por mim?

Na esfera social percebo muita gente defendendo minorias, camadas sociais desfavorecidas, pessoas em situação de insegurança alimentar etc., falando o que é certo porque é o que é certo falar. Não falam com o coração porque na primeira oportunidade que tiverem de mostrar ao mundo o que habita seus corações, acredite: mostrarão.

Nesse sentido também somos Cordélias. Minto, na verdade o nosso desejo é o de ser Cordélia, mas estamos todos muito mais para Goneri e Regan, as filhas mais velhas do rei.

Cada vez que agimos como Cordélias afastamos mais e mais pessoas. Aprendemos isso na primeira infância e repetimos a lição vida afora. Construindo ao nosso redor o que a cientista política Elisabeth Noelle-Neumann chama de “espiral do silêncio”. Mas não apenas isso.

É emblemático ver Rei Lear dividindo seu reino entre as filhas, me faz pensar no Estado, esse com “E” maiúsculo, financiando eventos culturais, projetos acadêmicos, contratando empresas. Penso também no que precisamos falar para receber nosso pedacinho deste reino e no que acontece com quem “cordeleia”. (O editor de texto grifou a palavra, acho que inventei o termo, mais provável que não).

Também penso nas pessoas com os discursos prontos, discursos preparados para parecer um cidadão probo, defensor dos fracos e oprimidos e pensando nisso penso no que habita o coração de todos que assim agem, ou seja, todas as pessoas do mundo, e como ser mais íntegro de fato. Sendo honesto comigo e com todos e conseguindo conviver em uma sociedade acostumada a isso.

Talvez a resposta seja continuar a peça até que o pano caia, ou, e isso precisa mesmo de maturidade, conhecer as pessoas certas e os lugares adequados em que podemos ser nós mesmos, sem máscaras, sem medo de dizer o quanto amamos e odiamos tudo nesse mundo lindo, feio, lúcido e louco. Sem medo de parecer estúpido ou horrível. Sem medo de ser estúpido e horrível. Porque a verdade, quando acompanhada de gente leal e verdadeira não nos enfeia, nos revela.

Talvez se alguém tivesse conversado comigo sobre Rei Lear e Shakespeare e tal eu fosse um ser humano melhor. Talvez por isso obriguem os jovens a lerem os clássicos.

Esqueçam o primeiro parágrafo. Vou lutar por uma lei que obrigue a todos em qualquer parte a lerem tudo o que é bom segundo os meus critérios. É isso.

Até a próxima crônica!

Por Mauro Marcel

mauromarcel@gmail.com