Sempre tive desconfiança de quem tenta deixar tudo
mais bonito do que é. Já viu isso? Agora é tudo "resignificado", tudo
"resgatado", tudo "empoderado". Não se pode mais dizer
“faxineira”, tem que ser “técnica de higienização ambiental”. Mendigo? Deus me
livre. Pessoa em situação de rua, como se a rua fosse um estado passageiro,
tipo gripe. Agora cismaram com o 1º de maio. Querem que a gente diga “Dia do
Trabalhador”. E não é que seja errado, veja bem, mas é pouco. É bem pouco.
O dia é do trabalho, e é exatamente por isso que
incomoda tanto.
Falar em “trabalhador” é suavizar a pedrada. A palavra
“trabalho” carrega o peso do sangue, do corpo moído, da exaustão que a gente
empurra com café. É suja, é dura. Vem do latim tripalium, um instrumento de
tortura. Tinha que ser mesmo. Porque é disso que estamos falando: da vida que
escapa pelos dedos entre um ponto e outro do cartão.
Você fala “trabalhador” e parece que todo mundo virou
gente importante. Mas não é bem assim. Eu já vi trabalhador que não tem nem
onde sentar no almoço. Já vi entregador tomando chuva com a comida do patrão na
mochila. Vi pedreiro morrendo de calor no alto do prédio e ganhando menos que o
gerente do banco que emprestou o dinheiro para a obra. Vi professora de escola
pública ser agredida por aluno e ainda ser culpada por não ter “autoridade em
sala”. Vi gente que trabalha em hospital e morre na fila do SUS. Já vi. Você
também já viu. E se não viu, é porque não quer.
O “Dia do Trabalhador” parece homenagem. Sabe,
daquelas com flor de plástico e discurso do vereador. O “Dia do Trabalho” é
memória. É lembrar que já morreu gente lutando por 8 horas de jornada. Que
sindicalista apanhou, sumiu, foi preso, torturado, chamado de comunista como se
isso fosse pior que ser explorado. Que o povo teve que gritar muito pra poder
sentar no domingo e comer com a família. Gritar. Morrer. Ninguém deu nada. Foi
tudo arrancado no grito.
Hoje querem que a gente esqueça. Que comemore sem
lembrar o motivo. Querem que a gente celebre o emprego como se ele fosse
presente divino, não obrigação de um Estado que não cumpre nem metade da sua
função. Querem que o feriado sirva só pra lotar estrada e vender cerveja no
supermercado. Ninguém quer que você pense sobre o que está comemorando. Pensar
dá trabalho, e trabalho... bem, ninguém quer falar dele.
Aliás, que ironia. Nunca se falou tanto em
“empreender”. Em “ser dono de si”. O novo trabalhador é um exército de MEIs que
não tem férias, não tem 13º, não tem nem o nome na porta da firma que ele mesmo
inventou. A romantização do autônomo. É bonito dizer que você é seu próprio
chefe. Só não conta que às vezes você também é seu próprio carrasco.
Enquanto isso, os mesmos que aplaudem a “liberdade de
empreender” são os que batem palma para a reforma trabalhista. Para o fim dos
direitos. Para o Uber que não é obrigado a registrar motorista. Para o patrão
que pode “negociar” o que bem entender com um funcionário com fome. E aí quando
alguém fala em greve, em sindicato, em direito, dizem que é coisa de vagabundo.
Vagabundo é quem não trabalha, dizem. Mas o Brasil é o
país onde quem mais trabalha é quem menos ganha. Onde médico ganha aplauso, mas
professora ganha tapa. Onde trabalhador da cultura é tratado como parasita, e o
banqueiro como herói da produtividade. Onde quem não tem carteira assinada é
“empreendedor informal”, e não trabalhador sem direitos.
Por isso, insisto: o dia é do trabalho. E não adianta
querer dourar a pílula. Não é feriado pra churrasco, é pra lembrar da carne
queimada no sol. Não é só pra descansar, é pra lembrar que a gente só descansa
porque alguém brigou pra isso ser lei. É pra homenagear o suor, sim. Mas também
pra perguntar: até quando ele vai escorrer sem recompensa?
Enquanto o 1º de maio for só um respiro antes da
próxima segunda-feira, ainda estamos longe do que merecemos. Por isso, guardem
o "trabalhador" pro discurso da firma. O dia é do trabalho — esse
mesmo que esmaga, que exaure, que constrói o país, tijolo por tijolo, e segue
invisível.
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