segunda-feira, 19 de maio de 2025

Titanic, Wi-Fi e selfies.

 

Lembro-me de quando ouvia falar em melancolia como quem escutava histórias sobre lobisomens — criaturas das trevas, mitos noturnos, assombrações de tempos antigos. A melancolia, diziam, era própria dos poetas, dos artistas, dos sensíveis demais para este mundo bruto. Hoje tem um novo nome, uma nova roupa e um novo cheiro: depressão. E não habita apenas os porões da alma artística;  caminha pelas ruas como um zumbi engravatado, embriagado de notificações e batizado pela luz azul dos gadgets.

A depressão tornou-se a epidemia elegante do século XXI. Não se trata de perder o sentido após um amor não correspondido ou após a leitura de “Werther”. Não. A nova tristeza não grita, não sangra poesia, não dorme em caixões ou chora à beira de sepulturas. A nova tristeza apenas silencia — diante de telas, diante de algoritmos, diante de uma humanidade que esqueceu como olhar nos olhos.

Vivemos plugados, mas desligados. Milhares de conexões por segundo, nenhuma conexão verdadeira por década. Estamos todos dentro de uma gigantesca prisão digital, onde as grades são feitas de Wi-Fi e os carcereiros atendem por nomes suaves como Instagram, TikTok, LinkedIn. Somos pássaros enjaulados com acesso irrestrito ao céu — desde que nunca se atrevam a voar de verdade.

A depressão moderna é uma flor que brota no concreto da produtividade. Ela nasce quando se troca o tempo do sol pelo tempo do despertador, o ritmo das marés pelo compasso histérico dos e-mails. O corpo quer dormir com a lua, mas é acordado por alarmes que soam como gritos de guerra. Quer andar descalço na terra, mas tropeça em calendários. E assim, as horas não são mais sentidas: são medidas, vendidas e descartadas como se o tempo fosse lixo reciclável.

A vida natural morreu. Foi sepultada entre o vibrar de uma notificação e o próximo update do sistema operacional. O homem, essa criatura que um dia assava peixe à beira do rio e contava histórias ao redor do fogo, agora se alimenta de pixels e conversa com assistentes virtuais. Sua alma se tornou uma planilha. Sua infância virou um backup. Sua tristeza, uma falha no sistema.

E as relações humanas? Ah, essas... foram vendidas em pacotes de dados. Transformadas em emojis, likes e mensagens automáticas. O "bom dia" virou corrente de WhatsApp, o "eu te amo" resposta de reação. Nada mais é profundo. Tudo é performance. A amizade é um follow. O amor, um “match”. A empatia, um filtro. Vivemos cercados de rostos, mas sozinhos como náufragos em um mar de selfies.

A família? Essa entidade mística do passado foi desmontada como um velho brinquedo. O pai virou um código QR na porta da geladeira. A mãe, um número bloqueado nos momentos de crise. As refeições familiares, agora são coletâneas de silêncio acompanhadas por reality shows. Cada um em seu quarto, cada quarto um reino. Cada reino, uma prisão dourada. A casa virou hotel. O lar senha de Wi-Fi.

E quando tudo falha — como sempre falha — nos perguntamos o que está errado conosco. Por que a alegria não vem? Por que a angústia pesa como chumbo nas manhãs de segunda-feira? Mas é claro. Como poderíamos ser felizes num mundo onde ser humano virou defeito de fábrica?

A depressão é o bilhete de entrada para esse circo de horrores moderno. Ela chega sem batidas na porta, sem lenço nem documento. Traz nos olhos o reflexo das telas que nos sequestraram. Nos lábios, o gosto amargo do tempo que não vivemos. E no peito, o silêncio ensurdecedor de não saber mais por que se acorda.

Não, não é só "falta de Deus". Nem apenas um "desequilíbrio químico". A depressão é o nome clínico de um luto coletivo: o luto por tudo que perdemos sem perceber. Perdemos a pausa. Perdemos a contemplação. Perdemos o outro. E, por fim, perdemos a nós mesmos — pixel por pixel.

Por isso, se você perguntar qual é a causa da depressão, respondo com a sinceridade de quem desistiu de fingir otimismo: é o mundo. O mundo é depressivo. E nós somos seus reféns, tentando sorrir para a câmera enquanto afundamos lentamente como o Titanic — sem banda e acordes finais, mas com Wi-Fi conectado.

Nenhum comentário:

Postar um comentário