Lembro-me de quando ouvia falar em melancolia como
quem escutava histórias sobre lobisomens — criaturas das trevas, mitos
noturnos, assombrações de tempos antigos. A melancolia, diziam, era própria dos
poetas, dos artistas, dos sensíveis demais para este mundo bruto. Hoje tem um
novo nome, uma nova roupa e um novo cheiro: depressão. E não habita apenas os
porões da alma artística; caminha pelas
ruas como um zumbi engravatado, embriagado de notificações e batizado pela luz
azul dos gadgets.
A depressão tornou-se a epidemia elegante do século
XXI. Não se trata de perder o sentido após um amor não correspondido ou após a
leitura de “Werther”. Não. A nova tristeza não grita, não sangra poesia, não
dorme em caixões ou chora à beira de sepulturas. A nova tristeza apenas
silencia — diante de telas, diante de algoritmos, diante de uma humanidade que
esqueceu como olhar nos olhos.
Vivemos plugados, mas desligados. Milhares de conexões
por segundo, nenhuma conexão verdadeira por década. Estamos todos dentro de uma
gigantesca prisão digital, onde as grades são feitas de Wi-Fi e os carcereiros
atendem por nomes suaves como Instagram, TikTok, LinkedIn. Somos pássaros
enjaulados com acesso irrestrito ao céu — desde que nunca se atrevam a voar de
verdade.
A depressão moderna é uma flor que brota no concreto
da produtividade. Ela nasce quando se troca o tempo do sol pelo tempo do
despertador, o ritmo das marés pelo compasso histérico dos e-mails. O corpo
quer dormir com a lua, mas é acordado por alarmes que soam como gritos de
guerra. Quer andar descalço na terra, mas tropeça em calendários. E assim, as
horas não são mais sentidas: são medidas, vendidas e descartadas como se o
tempo fosse lixo reciclável.
A vida natural morreu. Foi sepultada entre o vibrar de
uma notificação e o próximo update do sistema operacional. O homem, essa
criatura que um dia assava peixe à beira do rio e contava histórias ao redor do
fogo, agora se alimenta de pixels e conversa com assistentes virtuais. Sua alma
se tornou uma planilha. Sua infância virou um backup. Sua tristeza, uma falha
no sistema.
E as relações humanas? Ah, essas... foram vendidas em
pacotes de dados. Transformadas em emojis, likes e mensagens automáticas. O
"bom dia" virou corrente de WhatsApp, o "eu te amo"
resposta de reação. Nada mais é profundo. Tudo é performance. A amizade é um
follow. O amor, um “match”. A empatia, um filtro. Vivemos cercados de rostos,
mas sozinhos como náufragos em um mar de selfies.
A família? Essa entidade mística do passado foi
desmontada como um velho brinquedo. O pai virou um código QR na porta da
geladeira. A mãe, um número bloqueado nos momentos de crise. As refeições familiares,
agora são coletâneas de silêncio acompanhadas por reality shows. Cada um em seu
quarto, cada quarto um reino. Cada reino, uma prisão dourada. A casa virou
hotel. O lar senha de Wi-Fi.
E quando tudo falha — como sempre falha — nos
perguntamos o que está errado conosco. Por que a alegria não vem? Por que a
angústia pesa como chumbo nas manhãs de segunda-feira? Mas é claro. Como
poderíamos ser felizes num mundo onde ser humano virou defeito de fábrica?
A depressão é o bilhete de entrada para esse circo de
horrores moderno. Ela chega sem batidas na porta, sem lenço nem documento. Traz
nos olhos o reflexo das telas que nos sequestraram. Nos lábios, o gosto amargo
do tempo que não vivemos. E no peito, o silêncio ensurdecedor de não saber mais
por que se acorda.
Não, não é só "falta de Deus". Nem apenas um
"desequilíbrio químico". A depressão é o nome clínico de um luto
coletivo: o luto por tudo que perdemos sem perceber. Perdemos a pausa. Perdemos
a contemplação. Perdemos o outro. E, por fim, perdemos a nós mesmos — pixel por
pixel.
Por isso, se você perguntar qual é a causa da
depressão, respondo com a sinceridade de quem desistiu de fingir otimismo: é o
mundo. O mundo é depressivo. E nós somos seus reféns, tentando sorrir para a
câmera enquanto afundamos lentamente como o Titanic — sem banda e acordes
finais, mas com Wi-Fi conectado.
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