quarta-feira, 7 de maio de 2025

Transamazônica, Noruega e cicatriz.

 

A Transamazônica foi anunciada com pompa e ufanismo em 1970. Um rasgo de asfalto que cortaria o coração verde do país, ligando o nada a lugar nenhum. A estrada que levaria o Brasil ao futuro. Só esqueceram de dizer que esse futuro era de barro. Que, em época de chuva, os carros afundariam até a cintura. E que, em tempo seco, a poeira encobriria qualquer sinal de civilização.

A Transamazônica nunca foi concluída. Ficou pelo caminho, como tudo por aqui. Mais que uma rodovia, ela é uma metáfora asfaltada do país. Um Brasil que começa tudo com discurso, faixa de inauguração e helicóptero sobrevoando obra inacabada — e termina nada. Não é descaso. É projeto. O Brasil não dá errado por acidente. O Brasil é um plano muito bem executado. Só que não é pra todo mundo.

Porque alguém lucrou com cada metro daquela estrada malfeita. Cada curva mal calculada deu lucro pra alguém. Cada ponte que ruiu antes de ficar pronta alimentou a conta bancária de algum empreiteiro com sobrenome de tradição. E enquanto isso, o povo — esse bicho resistente — ia atravessando de jegue os trechos que não foram asfaltados. Carregando esperança no lombo, como sempre.

A história do Brasil é isso: uma Transamazônica permanente. Um país que jura que vai, mas nunca chega. Que começa do zero a cada quatro anos. Ou a cada golpe. Ou a cada escândalo. A cada perdão de dívida. A cada mutirão de regularização de algo que nunca deveria ter sido irregular.

Olhe para trás. Quantas vezes o Brasil se prometeu a si mesmo? Já fomos o celeiro do mundo, o país do futuro, a potência verde, o campeão da democracia racial, o rei do pré-sal, o vencedor do BRICS, o líder da terceira via, a próxima China, a nova Noruega. Somos o eterno “quase”. Um museu de intenções. Um projeto-piloto de país real.

E aí dizem que o problema do Brasil é que falta planejamento. Não falta. O problema é que o planejamento é outro. O planejamento é manter a Transamazônica pela metade. Porque estrada que termina atrai gente. E gente exige escola, hospital, título de terra, internet, justiça. Melhor manter tudo no barro. Melhor deixar o povo atolado. Gente atolada não anda. E quem não anda, não protesta.

A história do Brasil é escrita por aqueles que garantem que ela não mude. Por isso ela se repete. Não como farsa nem como tragédia. Mas como uma planilha que se renova a cada orçamento público. A cada comissão aprovada na calada da noite. A cada emenda que troca voto por verba. A Transamazônica virou símbolo não da falência, mas do sucesso de um país que só falha para os de baixo.

Dizem que a história é feita por vencedores. Aqui, ela é feita por sobreviventes. Os que resistem nos trechos intransitáveis do país. Os que aprendem a andar com o barro até o joelho e o estômago vazio. Os que plantam mandioca onde deveria haver escola. Os que constroem casa com resto de obra pública. Os que fazem da gambiarra uma tecnologia nacional.

E ainda assim, nos dizem que precisamos de esperança. Que temos que acreditar num Brasil que ainda vai acontecer. Mas que Brasil é esse que está sempre no futuro, sempre adiando sua própria existência? Um país onde o passado é suprimido, o presente é improvisado e o amanhã é sempre uma promessa feita por quem nunca vai cumpri-la.

A Transamazônica continua lá. Meio estrada, meio cicatriz. Um traço no mapa e um rasgo na alma. O Brasil, assim como ela, não está inacabado. Está exatamente como quem manda quer que esteja.

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