Vinha pela rua ontem à noite — bairro boêmio,
tradicional, onde já se ouviu muito samba, muito rock, muito grito apaixonado
vindo de alguma mesa de bar — e o que encontrei foi silêncio. Um silêncio que
não era paz, era ausência. Ausência de vida noturna, de vozes trocando segredos
bêbados, de fila na porta da balada, de taxista com o braço pendurado no vidro
esperando a próxima corrida.
A noite, pelo menos essa que a gente romantizava (eu
romantizava), essa noite morreu.
Sumiram os bares cheios de gente rindo alto. Sumiram
as boates (palavra de velho como eu, palavra já velha no meu tempo),
retornando: boates com cheiro de suor e desejo.
Sumiram os DJs, os garçons estressados, as mulheres
com salto na mão às quatro da manhã, os homens trôpegos procurando o número do
Uber.
O noturno virou diurno — controlado, higienizado,
domesticado. E sem aviso prévio. Acabou de uma hora pra outra, quase foi
possível ver o esvanecer entre fumaça.
A culpa é do celular, talvez. Ou da exposição.
Antigamente (outra palavra de velho), antigamente, a noite era o espaço da
liberdade com prazo de validade: o que acontecia nela morria ali mesmo,
enterrado ao nascer do sol. A balada era confessionário sem padre. Agora, há
sempre alguém gravando. A dança virou performance, o beijo conteúdo, o deslize
virou escândalo.
Não se vive a noite: se transmite. A transmissão mata
a experiência. E querem que eu seja visto justo quando eu mais quero sumir?
Além disso, há o "esquenta", um ritual
moderno de economia e de improviso. Fruto de um outro momento histórico. Sem
magia ou poesia. Sem encanto.
Beber no posto, na frente da adega, no estacionamento
do mercado. A balada como etapa opcional. A festa começando e terminando no
asfalto.
As casas noturnas perderam receita, perderam público,
perderam sentido. A entrada não paga a luz, o som, o segurança, o DJ. E então
elas fecharam. Uma a uma. Como velhas senhoras cansadas de esperar por visitas
que não vêm mais.
Nas periferias, a madrugada ainda barulha — mas não como
uma celebração à vida, meio que uma ocupação forçada do espaço público.
Os "fluxos" tomam praças, avenidas, postos
de gasolina, não como festas espontâneas, mas como eventos que muitas vezes têm
por trás o financiamento do tráfico, a ausência do Estado e o abandono das
políticas públicas.
O funk alto não embala sonhos, abafa o descanso dos
trabalhadores. O litrão não celebra a juventude, embriaga a falta de
perspectiva.
Longe de ser a noite romântica dos poetas e boêmios. É
a noite do improviso imposto, do barulho sem limites, da infância exposta à
violência e da adolescência entregue ao risco. E quem reclama é acusado de
elitismo, moralismo — como se desejar silêncio, segurança e dignidade fosse um
privilégio.
Talvez a noite não tenha mudado de endereço. Talvez
ela tenha sido corrompida, sequestrada. Nos bairros centrais, foi domesticada.
Nas bordas, foi desvirtuada. A boemia que conhecíamos está em coma, sim — mas o
que nasceu em seu lugar, nas periferias, está longe de ser uma alternativa
saudável. É uma noite que adoece, que esgota, que espalha medo em vez de
encontro.
A verdadeira noite, aquela que instiga, que pulsa com
arte, que convida ao improviso sem violência, morreu. E, nesse vazio, cada
madrugada parece um grito sem escuta.
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