quinta-feira, 15 de maio de 2025

Universidades, Paulo Freire e projeto civilizatório.

 

Gosto da ideia de universidade. Gosto mesmo. Do conceito, da utopia, daquelas imagens de jovens embaixo de árvores lendo Foucault, dos cafés filosóficos, do grêmio estudantil barulhento, das calouradas que ainda sonham com revoluções. É bonito. Um sonho quase francês, quase sessentista, quase filme do Godard. Mas... também gosto da realidade. Gosto daquilo que funciona. Daquilo que entrega. Daquilo que, mesmo sem tanta poesia, faz diferença. Talvez por isso mesmo — por já ter acreditado em toda essa aura mágica — hoje eu defenda, com veemência e até um certo gosto azedo de escândalo, a privatização das universidades públicas. Sim. Eu disse isso. Pode parar de esticar o “chaaaaaato”.

Pois bem, privatize-se.

Falo assim mesmo, com essa ousadia provocadora de quem já viu muita tese, muita assembleia estudantil e pouca aula. Muita greve, pouco resultado. Muita ideologia, pouca inovação. E vejam bem, não sou contra a universidade pública por birra, por recalque ou por trauma de vestibular. Muito pelo contrário. Fiz pública. Fui lá, bati ponto, li Bakhtin, Marx e até Paulo Freire com certa empolgação. Comi no bandejão, me perdi nos corredores da Letras, da História, da Sociologia. E me encontrei também. Só que depois de um tempo, comecei a perguntar: pra quem mesmo é esse sonho? Quantos cabem nele?

A resposta: muito poucos.

A universidade pública no Brasil é um privilégio travestido de direito. Um luxo subsidiado por todos, mas acessado por uma elite que fez cursinho caro, teve bons professores desde a infância e aprendeu francês no ensino médio. A meritocracia do vestibular público é uma grande piada. Um vestibular democrático só é democrático quando parte de condições mínimas iguais — o que, sejamos honestos, é uma grande mentira por aqui.

Então vem o argumento do acesso universal ao ensino superior. Mas como? Com orçamento estagnado, prédios caindo aos pedaços e professores exauridos por anos de concursos mal pagos e políticas pedagógicas retrógradas? Não dá. O modelo atual é um Titanic bonito, afundando com elegância.

Agora imagina um sistema onde universidades públicas virem fundações autônomas, que cobrem de quem pode e isentam quem precisa. Que competem entre si pela qualidade do ensino, que atraem investimento privado, que se abrem para o mundo como Harvard, Oxford, qualquer coisa com “x” e “v” no nome que já deu certo em outros lugares. Onde o ensino superior não seja privilégio de quem nasceu no CEP certo, mas direito de quem quer e pode, com múltiplas portas de entrada, presenciais, híbridas, online, o raio que o parta.

Ah, mas aí vem o hipster acadêmico defender a universidade pública com unhas, dentes e palavras como “projeto civilizatório”. Uma beleza. Quase poético. Mas quem sustenta o sonho? O pedreiro que mal terminou o fundamental e paga imposto igualzinho? O camelô que nunca entrou num campus mas financia esse romance elitista travestido de justiça social?

Vamos parar de fingir. Privatizar não é vender. É repensar. É dar autonomia, responsabilidade e alternativas. É fazer caber mais gente, mais diversidade, mais escolha. É deixar de ser feudo ideológico para virar espaço plural, eficiente, justo.

Enfim, defendo a privatização como defendo meu direito de dizer que Bacurau é ruim sem ser chamado de fascista. Porque viver numa democracia é isso: reconhecer que a utopia é linda, mas não paga boleto. E que talvez o caminho para a justiça passe justamente por tirar o manto sagrado daquilo que virou clube exclusivo travestido de bem comum.

Dito isso, sigo acreditando na educação. Mas na real. Sem glamour, sem bandeira, sem autoengano.

Só a educação salva. Mas tem que funcionar.

terça-feira, 13 de maio de 2025

Noite adentro, pessoa afora.


Noite. Avenida. Néon. Asfalto. Passos. Passos. Passos. Espera. Sede. Fome. Vontade. Corpo. Vontade. Desejo. Rua. Gente. Música. Grave. Gritaria. Riso. Perfume. Olhar. Brilho. Gole. Copo. Outro gole. Vodca. Limão. Garganta. Ardência. Riso. Vontade. Esperança. Dança. Contato. Atrito. Mão. Quadril. Corpo. Pele. Cheiro. Palavra. Mentira. Beijo. Beijo. Beijo. Desvio. Celular. Sumiço. Barulho. Multidão. Luz. Copo. Gole. Tentativa. Erro. Recomeço. Olhar. Promessa. Gargalhada. Interesse. Copo. Gole. Intenção. Cigarro. Cinza. Tédio. Música. Grito. Ombro. Toque. Beijo. Beijo. Fim. Desculpa. Desculpa. Sumiu.

Copo. Gole. Copo. Gole. Copo. Gole. Passos. Rodopio. Queda. Riso. Gole. Náusea. Banheiro. Espelho. Boca borrada. Olheira. Rímel. Máscara. Farsa. Vontade. Solidão. Mais uma chance. Outro olhar. Outro copo. Outra pista. Outra pessoa. Mais promessas. Mais mentiras. Mais vontade. Mais cansaço. Mais álcool. Gole. Garganta. Coração. Esperança. Frustração. Sumiço. Vazio. Vazio. Vazio.

Chão. Piso. Sapato. Dor. Pé. Cansaço. Enjoo. Garganta. Vontade. Choro. Choro. Choro. Máscara. Riso falso. Voz. Palavras soltas. Nomes esquecidos. Tatuagem. História. Mentira. Copo. Gole. Luz. Flash. Música. Corpo. Calor. Tédio. Raiva. Saudade. De quê? De quem? Memória. Escuro. Banheiro. Azulejo. Respiração. Suor. Falta.

Porta. Ar. Frio. Silêncio. Madrugada. Esquina. Solidão. Mensagem. Lida. Ignorada. Espera. Espera. Espera. Nada. Ninguém. Metrô. Posto. Café. Sombra. Corpo. Tremor. Gole. Fim. Fim. Fim. Coração. Fissura. Ruína. Madrugada. Silêncio. Ruído. Cigarro. Cinza. Pulso. Vontade. Sede. Fim.

Caminho. Retorno. Amanhecer. Cinza. Rua vazia. Vitrine. Reflexo. Espelho. Cansaço. Olho. Vazio. Vazio. Vazio.

segunda-feira, 12 de maio de 2025

Silêncio, casas noturnas e garçons estressados.

 

Vinha pela rua ontem à noite — bairro boêmio, tradicional, onde já se ouviu muito samba, muito rock, muito grito apaixonado vindo de alguma mesa de bar — e o que encontrei foi silêncio. Um silêncio que não era paz, era ausência. Ausência de vida noturna, de vozes trocando segredos bêbados, de fila na porta da balada, de taxista com o braço pendurado no vidro esperando a próxima corrida.

A noite, pelo menos essa que a gente romantizava (eu romantizava), essa noite morreu.

Sumiram os bares cheios de gente rindo alto. Sumiram as boates (palavra de velho como eu, palavra já velha no meu tempo), retornando: boates com cheiro de suor e desejo.

Sumiram os DJs, os garçons estressados, as mulheres com salto na mão às quatro da manhã, os homens trôpegos procurando o número do Uber.

O noturno virou diurno — controlado, higienizado, domesticado. E sem aviso prévio. Acabou de uma hora pra outra, quase foi possível ver o esvanecer entre fumaça.

A culpa é do celular, talvez. Ou da exposição. Antigamente (outra palavra de velho), antigamente, a noite era o espaço da liberdade com prazo de validade: o que acontecia nela morria ali mesmo, enterrado ao nascer do sol. A balada era confessionário sem padre. Agora, há sempre alguém gravando. A dança virou performance, o beijo conteúdo, o deslize virou escândalo.

Não se vive a noite: se transmite. A transmissão mata a experiência. E querem que eu seja visto justo quando eu mais quero sumir?

Além disso, há o "esquenta", um ritual moderno de economia e de improviso. Fruto de um outro momento histórico. Sem magia ou poesia. Sem encanto.

Beber no posto, na frente da adega, no estacionamento do mercado. A balada como etapa opcional. A festa começando e terminando no asfalto.

As casas noturnas perderam receita, perderam público, perderam sentido. A entrada não paga a luz, o som, o segurança, o DJ. E então elas fecharam. Uma a uma. Como velhas senhoras cansadas de esperar por visitas que não vêm mais.

Nas periferias, a madrugada ainda barulha — mas não como uma celebração à vida, meio que uma ocupação forçada do espaço público.

Os "fluxos" tomam praças, avenidas, postos de gasolina, não como festas espontâneas, mas como eventos que muitas vezes têm por trás o financiamento do tráfico, a ausência do Estado e o abandono das políticas públicas.

O funk alto não embala sonhos, abafa o descanso dos trabalhadores. O litrão não celebra a juventude, embriaga a falta de perspectiva.

Longe de ser a noite romântica dos poetas e boêmios. É a noite do improviso imposto, do barulho sem limites, da infância exposta à violência e da adolescência entregue ao risco. E quem reclama é acusado de elitismo, moralismo — como se desejar silêncio, segurança e dignidade fosse um privilégio.

Talvez a noite não tenha mudado de endereço. Talvez ela tenha sido corrompida, sequestrada. Nos bairros centrais, foi domesticada. Nas bordas, foi desvirtuada. A boemia que conhecíamos está em coma, sim — mas o que nasceu em seu lugar, nas periferias, está longe de ser uma alternativa saudável. É uma noite que adoece, que esgota, que espalha medo em vez de encontro.

A verdadeira noite, aquela que instiga, que pulsa com arte, que convida ao improviso sem violência, morreu. E, nesse vazio, cada madrugada parece um grito sem escuta.

sábado, 10 de maio de 2025

A menina, a praça, o banco...

 

Vinha pela rua e vi uma adolescente sozinha, chorando num banco de praça.

Quase não acreditei no que via. Pensei até que fosse uma performance artística, uma encenação para TikTok, algum protesto silencioso contra o aquecimento global ou o preço do sorvete. Mas não: era só tristeza mesmo. Aquela coisa antiga, sem patrocínio, sem wi-fi e sem filtro.

O curioso é que o que me chamou a atenção não foi o choro. Foi o contexto. Uma adolescente. Um banco de praça. O choro. Três coisas que eu não via havia muito tempo. Achei que tinham sido extintas — ou, na melhor das hipóteses, privatizadas.

Hoje em dia adolescente não chora em praça, chora no story. E banco de praça virou coisa de arquivo público, item de museu. Adolescente moderno tem ansiedade, mas não tem tempo. Tem depressão, mas não tem sossego. Quando muito, manda uma indireta no Twitter e vai dormir com fone de ouvido. Chorar em praça pública, às quatro da tarde, é quase um escândalo. Uma imoralidade. Como diria Nelson Rodrigues, é coisa de gente que perdeu a compostura. E quem perde a compostura em 2025, num mundo regido por algoritmos e remédios tarja preta, vira ameaça à ordem pública.

Fiquei ali, olhando de longe, meio constrangido com a honestidade daquela dor. Uma dor sem explicação, sem legenda, sem hashtags. Uma dor nua. Que não pedia curtida, não chamava atenção. Que apenas existia, desprotegida, no meio da cidade.

A menina devia ter uns quinze anos, talvez menos. Usava mochila, coturno, cabelo tingido. Tinha o rosto afundado nas mãos. Chorava com o corpo inteiro, daquele jeito que só os adolescentes e os poetas sabem. Com toda a intensidade de quem ainda não aprendeu a se proteger do mundo.

Pensei em me aproximar. Dizer qualquer coisa. “Vai passar”, talvez. Mas não fui. Não por covardia — embora também —, mas por respeito. Porque aquele choro não era meu. Era dela. E há dores que não se compartilham. Só se testemunham.

Fui embora com uma estranha esperança no peito.

Porque se ainda existem adolescentes que choram em bancos de praça, talvez ainda haja salvação para o mundo. Talvez nem tudo tenha sido engolido pelo cinismo, pela pressa, pela conveniência. Talvez, em algum canto, ainda exista espaço para o escândalo do sentimento. Para a vergonha de existir.

E, pensando bem, talvez seja isso que está nos faltando: gente que chore na rua. Que se exponha. Que se entregue. Que transforme a praça em palco de humanidade crua. Porque esse mundo de emojis tristes e sorrisos em aplicativo está cada vez mais insuportável de tão controlado. De tão irreal.

Fiquei imaginando quantas vezes eu mesmo já quis sentar num banco e desabar. Quantas vezes precisei me esconder no banheiro do trabalho, no carro, no travesseiro. Por medo. Por vergonha. Por costume. E aquela menina, sem saber, me lembrou que sentir ainda é permitido. Que sofrer ainda é humano. Que chorar ainda é uma forma de resistência.

Não sei por que ela chorava. Talvez por amor. Talvez por medo. Talvez por nada. Adolescente chora por um olhar torto, por uma mensagem não respondida, por um pai ausente, por um futuro incerto. E quem somos nós para julgar? Se eu, com todos os meus boletos pagos e crises de meia-idade bem ensaiadas, ainda choro escondido de vez em quando?

Aquela menina, sem saber, escreveu uma crônica. Não com palavras — com lágrimas. E eu, leitor distraído, fui privilegiado por tê-la lido ao vivo.

E voltei pra casa com vontade de escrever. Porque às vezes tudo o que a crônica precisa é de um banco, uma tarde qualquer e uma alma à flor da pele. O resto, o resto é só o mundo tentando parecer forte.

sexta-feira, 9 de maio de 2025

Crônicas, gritos e influencers.

 

Vivemos num tempo de manchetes, não de margens. Um tempo onde tudo precisa ser urgente, categórico, viral. Um tempo que exige posturas claras, respostas prontas, posicionamentos sólidos, emojis precisos. Um tempo onde qualquer coisa que não grite é considerada irrelevante. E talvez por isso, a crônica — essa forma pequena, lenta e profundamente humana de se pensar o mundo — esteja morrendo. E junto com ela, morrem os cronistas.

Mas o que é um cronista, afinal?

É aquele que caminha pelas beiradas. Que olha o que ninguém olha. Que se detém onde todos passam correndo. Que transforma um domingo nublado num tratado sobre a solidão. Que vê no canto de uma sala a metáfora de um país inteiro. O cronista não quer convencer. Quer compartilhar. Não quer gritar. Quer sussurrar — e isso é quase um crime num tempo de microfones e megafones.

Rubem Alves, por exemplo, escrevia crônicas como quem escreve cartas para um amigo íntimo. Ele falava de jardins, de filhos, de saudade e morte — e, de alguma forma, nos fazia pensar sobre Deus, política e educação sem levantar um dedo. Rubem era mestre em fazer a alma respirar sem precisar levantar bandeira. Hoje, ninguém mais quer respirar. Querem vencer.

Nelson Rodrigues, outro cronista dos grandes, nos mostrou que o cotidiano é uma ópera grotesca. Suas crônicas pareciam pequenos espelhos rachados, mostrando o ridículo da nossa moral e o absurdo dos nossos vícios. Falava de adultérios, de futebol, de traições de bairro como quem desvela os bastidores de uma tragédia grega encenada na Zona Sul do Rio. Nelson sabia que a crônica, mesmo quando fala de um jogo do Fluminense, está falando do abismo.

Drummond, por sua vez, levava a crônica para o campo da delicadeza. Um cronista-poeta. Viu na fila do banco uma pequena epifania, num carteiro uma metáfora da espera, numa carta amassada a história de um país. Sua crônica era feita de silêncios e pontuações. De espaço em branco. De hesitação. Coisa que hoje é confundida com fraqueza — mas que, de fato, é sensibilidade.

E o mundo, este nosso mundo de agora, não precisa de mais certezas. Precisa de hesitação. De dúvida. De espaço. De crônica.

A crônica é o único gênero literário que não exige enredo, clímax, desfecho. Não exige sequer que se fale de algo importante. Pode ser sobre uma xícara, uma vizinha, um homem que espera um ônibus. E é exatamente aí que mora sua força: na capacidade de dar sentido àquilo que, no noticiário ou nas redes sociais, seria descartado como insignificante.

Crônicas não mudam o mundo com discursos. Mudam com olhares.

E por isso fazem tanta falta.

Vivemos hoje mergulhados numa avalanche de opiniões. Todo mundo quer ser analista político, jurado do Big Brother, especialista em guerras internacionais e em crises existenciais. Todo mundo quer estar certo. Todo mundo quer ser ouvido. Mas quase ninguém quer escutar. Quase ninguém quer observar.

E o cronista é, acima de tudo, um observador.

Ele anota o que escorre pelas frestas. Ele percebe o que está morrendo devagar — não em explosões, mas em silêncios. Ele escreve sobre o avô que não sabe usar o WhatsApp, sobre a moça que chorou no ônibus, sobre o cheiro de bolo que invadiu a rua e trouxe uma lembrança da infância. E nesse gesto aparentemente pequeno, ele nos salva um pouco.

Porque num mundo tão cheio de fatos, às vezes o que mais falta é justamente isso: sentimento.

O cronista não resolve o mundo. Mas revela. Ilumina. E às vezes isso basta.

Num tempo em que todos querem ser influencers, talvez o que precisemos mesmo é de cronistas. De gente disposta a perder tempo escrevendo sobre o tempo que se perdeu. De gente disposta a ver o lado de dentro. A dar voz ao que não aparece. A registrar, com o toque de quem ama, as dores e as doçuras de ser humano.

Porque o mundo continua a gritar. E quem não tiver uma crônica para respirar, vai se afogar nesse barulho.

quinta-feira, 8 de maio de 2025

Rótulo, promessa e reprise.

 

Sou um brasileiro cansado. Exausto. E, como todo brasileiro cansado, carrego em mim uma contradição desconfortável: não suporto Lula, mas também não suporto Bolsonaro. E me dói dizer isso em voz alta porque, no Brasil de agora, recusar essas duas biscas é automaticamente se alistar no exército do inimigo imaginário. Ou se é gado ou comunista. Ou ladrão ou genocida. Ou vermelho ou verde.

A neutralidade é um crime. O pensamento complexo, traição. E o silêncio, covardia.

Permaneço aqui, no limbo. Entre um poste e um porrete. Entre o sindicalista e o capitão. Entre o cor-de-rosa e o verde-oliva. Como num episódio ruim de “Game of Thrones”, torcendo para que todos morram, enquanto o reino ferve e o povo queima vivo entre os escombros.

E me pergunto: como que a política de um país se transforma em teatro? Como que aceitar a dúvida se transforma em motivo de apedrejamento?

O pensamento crítico é doloroso. Pensar faz com que você seja rejeitado pelas duas torcidas. Pensar é ser punido por ter memória. A memória, no Brasil, é subversiva.

Lembro que Lula esteve no poder por mais de uma década. Nesse tempo, as empreiteiras nadaram em dinheiro, os banqueiros riram alto, e toma-lhe mensalão, petrolão, e os pobres... continuaram esperando.

Lembro que Bolsonaro flertou com o autoritarismo, debochou da morte, preferiu defender os filhos a dar seguimento à Operação Lava jato e vendeu a esperança a gritos histéricos.

 E, ainda assim, nos dizem que temos que escolher: É Lula!!!! Grito imitando a voz rouca o Alckmista... ou mito! Mito! Mito! Grito repetindo a turba. Como se a democracia fosse um jogo de dois botões.

Não é.

O Brasil não é uma democracia — é um acampamento, um fazenda cercada por água e gente falando espanhol. É uma arquibancada. Um estádio lotado onde todos berram e ninguém escuta. Onde a política virou reality show, e o voto, um emoji. A guerra ideológica o novo pão e circo. E o povo, coitado, ainda acredita que está jogando, quando na verdade é quem paga o ingresso.

E essa polarização não é acidente. É projeto. Funciona. Divide-se para reinar. Enquanto a esquerda e a direita gritam, o ovo, o café, o tomate, a sardinha, o filé, o arroz seguem caros, o salário segue indigno, a escola caindo aos pedaços.

Enquanto discutimos se um presidiário pode ser presidente ou se um militar pode ser messias, o país afunda como uma jangada furada em mar revolto.

É a velha história da Transamazônica: uma estrada que começa, mas nunca termina. Assim é o Brasil. Um país que não finaliza nada, nada além de sua própria desgraça — e isso não é por acaso. O inacabado é útil. É funcional. O Brasil é um projeto que deu certo para quem deseja que ele nunca dê certo.

A Transamazônica virou símbolo de promessa que não chega. De desenvolvimento que nunca desembarca. De progresso que anda em marcha lenta, atolado na lama. E não pensem que é incompetência, é estratégia. O inacabado serve bem. Um país onde nada se conclui é perfeito para quem vive de administrar o caos.

Nietzsche alertava: “quem luta com monstros deve cuidar para não se tornar um.” E aqui estamos, monstros de todos os lados. Espelhados no ódio que fingimos combater. A esquerda transformou-se em paródia da própria imbecilidade enquanto a direita picha estátua com batom após conversar discos voadores. E o centro... o centro virou um fiapo de esperança que ninguém mais enxerga sem binóculo.

Não se trata de ser isentão. Esse rótulo é só uma forma preguiçosa de invalidar quem não aceita jogar esse jogo viciado. Se trata de entender que estamos discutindo a moldura enquanto o quadro está em chamas. Se trata de reconhecer que estamos presos num looping histórico que repete 1889, 1964, 1989, 2002, 2018... e agora 2026 se aproxima como uma reprise de tudo.

É como assistir ao mesmo filme ruim várias vezes esperando que, desta vez, o final mude.

Mas não muda.

Porque o Brasil não quer mudar. Quer repetir. Quer berrar. Quer revanche. E, acima de tudo, quer manter intacto o velho teatro onde todos atuam, mas ninguém governa.

Nem Lula. Nem Bolsonaro. Nem final feliz.

Apenas mais um capítulo da tragédia cíclica chamada Brasil.

quarta-feira, 7 de maio de 2025

Transamazônica, Noruega e cicatriz.

 

A Transamazônica foi anunciada com pompa e ufanismo em 1970. Um rasgo de asfalto que cortaria o coração verde do país, ligando o nada a lugar nenhum. A estrada que levaria o Brasil ao futuro. Só esqueceram de dizer que esse futuro era de barro. Que, em época de chuva, os carros afundariam até a cintura. E que, em tempo seco, a poeira encobriria qualquer sinal de civilização.

A Transamazônica nunca foi concluída. Ficou pelo caminho, como tudo por aqui. Mais que uma rodovia, ela é uma metáfora asfaltada do país. Um Brasil que começa tudo com discurso, faixa de inauguração e helicóptero sobrevoando obra inacabada — e termina nada. Não é descaso. É projeto. O Brasil não dá errado por acidente. O Brasil é um plano muito bem executado. Só que não é pra todo mundo.

Porque alguém lucrou com cada metro daquela estrada malfeita. Cada curva mal calculada deu lucro pra alguém. Cada ponte que ruiu antes de ficar pronta alimentou a conta bancária de algum empreiteiro com sobrenome de tradição. E enquanto isso, o povo — esse bicho resistente — ia atravessando de jegue os trechos que não foram asfaltados. Carregando esperança no lombo, como sempre.

A história do Brasil é isso: uma Transamazônica permanente. Um país que jura que vai, mas nunca chega. Que começa do zero a cada quatro anos. Ou a cada golpe. Ou a cada escândalo. A cada perdão de dívida. A cada mutirão de regularização de algo que nunca deveria ter sido irregular.

Olhe para trás. Quantas vezes o Brasil se prometeu a si mesmo? Já fomos o celeiro do mundo, o país do futuro, a potência verde, o campeão da democracia racial, o rei do pré-sal, o vencedor do BRICS, o líder da terceira via, a próxima China, a nova Noruega. Somos o eterno “quase”. Um museu de intenções. Um projeto-piloto de país real.

E aí dizem que o problema do Brasil é que falta planejamento. Não falta. O problema é que o planejamento é outro. O planejamento é manter a Transamazônica pela metade. Porque estrada que termina atrai gente. E gente exige escola, hospital, título de terra, internet, justiça. Melhor manter tudo no barro. Melhor deixar o povo atolado. Gente atolada não anda. E quem não anda, não protesta.

A história do Brasil é escrita por aqueles que garantem que ela não mude. Por isso ela se repete. Não como farsa nem como tragédia. Mas como uma planilha que se renova a cada orçamento público. A cada comissão aprovada na calada da noite. A cada emenda que troca voto por verba. A Transamazônica virou símbolo não da falência, mas do sucesso de um país que só falha para os de baixo.

Dizem que a história é feita por vencedores. Aqui, ela é feita por sobreviventes. Os que resistem nos trechos intransitáveis do país. Os que aprendem a andar com o barro até o joelho e o estômago vazio. Os que plantam mandioca onde deveria haver escola. Os que constroem casa com resto de obra pública. Os que fazem da gambiarra uma tecnologia nacional.

E ainda assim, nos dizem que precisamos de esperança. Que temos que acreditar num Brasil que ainda vai acontecer. Mas que Brasil é esse que está sempre no futuro, sempre adiando sua própria existência? Um país onde o passado é suprimido, o presente é improvisado e o amanhã é sempre uma promessa feita por quem nunca vai cumpri-la.

A Transamazônica continua lá. Meio estrada, meio cicatriz. Um traço no mapa e um rasgo na alma. O Brasil, assim como ela, não está inacabado. Está exatamente como quem manda quer que esteja.

terça-feira, 6 de maio de 2025

Orkut, Europa e depressão.

De tempos em tempos, algum especialista aparece na TV, no podcast, na timeline do Instagram, com um ar de cientista social iluminado, tentando me enfiar num rótulo: “Você é da geração X, viu?”, ou então, “os millennials são muito imediatistas, por isso não compram casa própria”. E eu fico olhando. Sem saber se rio ou choro. Porque aqui, no Brasil, geração não é uma coisa que se herda. É uma coisa que se sobrevive.

Lá fora — na Europa, nos Estados Unidos — esse papo de gerações pode até fazer algum sentido. Elas foram moldadas por guerras mundiais, revoluções culturais, ascensões tecnológicas e colapsos econômicos. Eles tiveram Beatles e bombas atômicas. Tiveram protestos com flores nas armas, internet discada que virou banda larga, crise de 2008 e recuperação com investimento público. Aqui, a gente teve o Plano Collor, o Real, o caos, a esperança breve e a recaída eterna. Gente que perdeu tudo sem nunca ter tido nada.

Dizer que o jovem brasileiro dos anos 1990 é da mesma “geração Y” que o jovem londrino da mesma década é o mesmo que dizer que um carro sem motor é igual a um foguete porque ambos têm rodas.

Aqui, a juventude não foi moldada por tendências globais, mas por gambiarras domésticas. Enquanto lá fora os adolescentes aprendiam a usar a internet em casa, nós aprendíamos a usar o jeitinho para acessar o Orkut de madrugado pagando um único pulso telefônico, ou no computador da lan house, torcendo para que ninguém puxasse o cabo.

Falam que a geração Z é nativa digital. No Brasil, o que a gente tem é o analógico remendado com fita isolante. O menino do interior que sabe mexer no TikTok, ao redor de vizinhos sem café da manhã, almoço ou janta. A menina da periferia que grava vídeos com filtro de Paris, mas nunca saiu do bairro, literalmente. Adolescentes com celulares de última geração e contas de luz cortadas. Conectados ao mundo e desconectados da própria dignidade.

Aqui não há geração Alpha, há geração Aspirina: cresce com dor de cabeça. Tem dez anos e já conhece palavras como “boletim de ocorrência”, “despejo”, “depressão”. Em vez de crescerem com medo de provas escolares, crescem com medo de bala perdida. Em vez de pensarem na faculdade, pensam se vai dar pra levar a marmita da mãe até o trabalho porque o bilhete único não cobre a volta. Essas crianças não são o futuro. São o atraso do passado que nunca passa.

E quando alguém fala que os boomers têm valores rígidos e os millennials são flexíveis, eu me pergunto: que valores são esses que atravessaram o Atlântico com tanto zelo, mas esqueceram de passar pelo Brasil? Aqui, os pais queriam um futuro melhor para os filhos, mas acabaram ensinando a sobreviver ao presente. Aqui, o futuro não chega. Ele encosta, pensa melhor e dá meia-volta.

É curioso: dizem que cada geração tem uma missão. Mas a única missão que nos deram foi aguentar. Aguentar o sucateamento da escola, a fila do posto de saúde, o transporte lotado, o salário-mínimo, o assédio no trabalho, a boca de fumo esquina, a promessa que não se cumpre. (Chamar ponto de venda de droga de boca de fumo é coisa de qual geração? Pouco importa...).

Somos uma geração de resistência, mas sem o romantismo da luta. Resistência por inércia, não por escolha.

A gente não é geração X, Y ou Z. A gente é geração “se der”. Se der, estuda. Se der, trabalha. Se der, come. Se der, sonha. Mas quase nunca dá. E quando dá, é por pouco tempo. Porque logo o país muda as regras, sobe o preço, corta o direito, revoga a esperança.

Então, não me venham com siglas e rótulos embalados a vácuo. Não tentem me vender a ilusão de pertencimento a uma geração que nunca existiu. A gente não coube nas letras do alfabeto porque aqui a história é analfabeta de futuro. Somos uma geração que nasceu no parágrafo errado da história, e que ainda assim tenta, todo dia, escrever alguma coisa no rodapé.

segunda-feira, 5 de maio de 2025

Mendigo, tripalium e SUS

 

Sempre tive desconfiança de quem tenta deixar tudo mais bonito do que é. Já viu isso? Agora é tudo "resignificado", tudo "resgatado", tudo "empoderado". Não se pode mais dizer “faxineira”, tem que ser “técnica de higienização ambiental”. Mendigo? Deus me livre. Pessoa em situação de rua, como se a rua fosse um estado passageiro, tipo gripe. Agora cismaram com o 1º de maio. Querem que a gente diga “Dia do Trabalhador”. E não é que seja errado, veja bem, mas é pouco. É bem pouco.

O dia é do trabalho, e é exatamente por isso que incomoda tanto.

Falar em “trabalhador” é suavizar a pedrada. A palavra “trabalho” carrega o peso do sangue, do corpo moído, da exaustão que a gente empurra com café. É suja, é dura. Vem do latim tripalium, um instrumento de tortura. Tinha que ser mesmo. Porque é disso que estamos falando: da vida que escapa pelos dedos entre um ponto e outro do cartão.

Você fala “trabalhador” e parece que todo mundo virou gente importante. Mas não é bem assim. Eu já vi trabalhador que não tem nem onde sentar no almoço. Já vi entregador tomando chuva com a comida do patrão na mochila. Vi pedreiro morrendo de calor no alto do prédio e ganhando menos que o gerente do banco que emprestou o dinheiro para a obra. Vi professora de escola pública ser agredida por aluno e ainda ser culpada por não ter “autoridade em sala”. Vi gente que trabalha em hospital e morre na fila do SUS. Já vi. Você também já viu. E se não viu, é porque não quer.

O “Dia do Trabalhador” parece homenagem. Sabe, daquelas com flor de plástico e discurso do vereador. O “Dia do Trabalho” é memória. É lembrar que já morreu gente lutando por 8 horas de jornada. Que sindicalista apanhou, sumiu, foi preso, torturado, chamado de comunista como se isso fosse pior que ser explorado. Que o povo teve que gritar muito pra poder sentar no domingo e comer com a família. Gritar. Morrer. Ninguém deu nada. Foi tudo arrancado no grito.

Hoje querem que a gente esqueça. Que comemore sem lembrar o motivo. Querem que a gente celebre o emprego como se ele fosse presente divino, não obrigação de um Estado que não cumpre nem metade da sua função. Querem que o feriado sirva só pra lotar estrada e vender cerveja no supermercado. Ninguém quer que você pense sobre o que está comemorando. Pensar dá trabalho, e trabalho... bem, ninguém quer falar dele.

Aliás, que ironia. Nunca se falou tanto em “empreender”. Em “ser dono de si”. O novo trabalhador é um exército de MEIs que não tem férias, não tem 13º, não tem nem o nome na porta da firma que ele mesmo inventou. A romantização do autônomo. É bonito dizer que você é seu próprio chefe. Só não conta que às vezes você também é seu próprio carrasco.

Enquanto isso, os mesmos que aplaudem a “liberdade de empreender” são os que batem palma para a reforma trabalhista. Para o fim dos direitos. Para o Uber que não é obrigado a registrar motorista. Para o patrão que pode “negociar” o que bem entender com um funcionário com fome. E aí quando alguém fala em greve, em sindicato, em direito, dizem que é coisa de vagabundo.

Vagabundo é quem não trabalha, dizem. Mas o Brasil é o país onde quem mais trabalha é quem menos ganha. Onde médico ganha aplauso, mas professora ganha tapa. Onde trabalhador da cultura é tratado como parasita, e o banqueiro como herói da produtividade. Onde quem não tem carteira assinada é “empreendedor informal”, e não trabalhador sem direitos.

Por isso, insisto: o dia é do trabalho. E não adianta querer dourar a pílula. Não é feriado pra churrasco, é pra lembrar da carne queimada no sol. Não é só pra descansar, é pra lembrar que a gente só descansa porque alguém brigou pra isso ser lei. É pra homenagear o suor, sim. Mas também pra perguntar: até quando ele vai escorrer sem recompensa?

Enquanto o 1º de maio for só um respiro antes da próxima segunda-feira, ainda estamos longe do que merecemos. Por isso, guardem o "trabalhador" pro discurso da firma. O dia é do trabalho — esse mesmo que esmaga, que exaure, que constrói o país, tijolo por tijolo, e segue invisível.

domingo, 4 de maio de 2025

Quinze segundos, skincare e influencers.

 Por Mauro Marcel

Eu achava que “influencer” era uma palavra bonita. Tinha algo de mágico. Lembrava poeta. Alguém que tocava o outro sem precisar encostar. Que movia corações, ideias, escolhas. Influenciar, no sentido mais puro, era quase uma forma de amar: você planta uma ideia em alguém, e ela brota, floresce, transforma. Mas hoje… bom, hoje “influencer” é sinônimo de alguém com um celular e tempo livre.

E antes que digam que é recalque, que é amargura, aviso: talvez seja. Tenho visto tanta gente influente que não diz nada. Gente que não cria, não pensa, não arrisca. Só repete. Dubla. Desempacota (vou chamar assim o que chamam de unboxing). Dança. Testa produto. Uma enxurrada de conteúdos em que o conteúdo é o que pouco ou nada importa. E tudo igual. Tudo. Os mesmos filtros, os mesmos fundos brancos, as mesmas legendas com emojis milimetricamente colocados para serem metodicamente espontâneos.

Não é disso que quero falar agora, embora já tenha começado. O que me assusta é que esse comportamento deixou de ser exceção. Virou referência. Modelo. Inspiração.

Os jovens — esses mesmos que um dia sonharam em ser astronautas, médicos, músicos ou, valha-me Deus, youtubers — agora querem ser apenas… famosos. Por quê? Por nada. Pela fama em si. Querem ser vistos, seguidos, adorados. Querem, valha-me Deus, “engajar”.

E aí você abre o Instagram e vê um vídeo de alguém ensinando como fingir que está vivendo bem. Sim, fingir. Como parecer saudável. Como montar uma mesa de café da manhã que ninguém vai comer. Como criar a “rotina perfeita” para os stories — que começa às 5h com meditação e termina às 22h com skincare. Não se vive assim. E se todos querem parecer assim? 

A estética venceu a verdade.

Lembro de quando influência era feita com silêncio. Com presença. Com uma conversa no portão, com um livro emprestado, um disco, um instrumento musical,  uma canção que alguém mostrava e que virava sua trilha por um mês. Hoje, influência vem com código de desconto. Ou com publi disfarçada de opinião sincera. E o pior: a gente sabe. Mas segue consumindo. Dando like. Comentando e aprovando uma vida que não existe nem pra quem posta. 

Às vezes me pergunto se existe, na internet, nos idos de hoje, espaço para o real. Para o imperfeito. Para alguém que simplesmente aparece e diz: “Não estou bem.” Ou: “Não tenho o que mostrar.” Ou ainda: “Não quero vender nada.” 

Mas a dor não viraliza. Não engaja. Não monetiza. 

O algoritmo não te quer honesto. Não quer sendo você. 

Não quer você em mim, eu em nós, e nós todos sem comprar o último lançamento da última modinha do verão.

Estamos viciados em ser vistos. Ninguém mais quer ser. Quer parecer. E nisso, perdemos algo que não sabemos nomear. Uma dignidade silenciosa, talvez. Um tipo de verdade que não se fotografa. Algo precioso justamente por não se mostrar.

O mundo dos influencers não me revolta. Me entristece: há nele um espelho do que nos tornamos: carentes, inseguros, obcecados por validação. 

Pessoas que não sabem se estão felizes ou performando felicidade. Que não sabem se gostam de algo ou apenas obedecem à programação digitada na mente, e compram, compram e compram.

No fundo, bem no fundo, a influência à moda antiga não tenha acabado. Talvez só tenha sido sequestrada por quem não tem nada a dizer. E quem tem, desistiu de tentar.

Até a próxima crônica — depois que voltar do shopping center e caso eu ainda tenha algo a dizer que não caiba num story de 15 segundos.

quinta-feira, 1 de maio de 2025

VAR, promessas e improviso

 

Lembro do barulho. Do silêncio também. O som das buzinas antes do jogo, o som da televisão que vinha da casa da vizinha, uns cinco segundos atrasada da nossa. E depois, o silêncio de quando a bola não entrava. Ou entrava, mas no nosso gol. A seleção brasileira era, sim, uma entidade. Uma dessas que a gente não precisa acreditar para respeitar. Como o sol, que nasce sem que você peça. A seleção era o Brasil que dava certo.

Mas alguma coisa quebrou no caminho. E não foi só o jejum de títulos. Foi o sumiço de um modo de viver o futebol. A seleção virou produto. O torcedor virou consumidor. E o menino idoso na rua vestindo camisa da seleção virou alvo de piada, como se torcer pelo Brasil fosse cafona, ultrapassado, reacionário até. Ok, utilizaram a camisa amarela para outros fins que não torcer. Entendo. De quem foi mesmo essa ideia??

Não é disso que quero falar agora, embora tenha começado. O que quero dizer é que a nossa era de ouro acabou. E acabou sem que nos déssemos conta. Acabou quando a seleção parou de ser sinônimo de encantamento. Quando o medo de perder passou a ser maior que a alegria de ganhar. Quando cada convocação virou um debate ideológico, um campo de guerra cultural. Quando a amarelinha passou a carregar mais peso que símbolo.

Dá pra apontar marcos: O 7x1, claro, foi a queda do império. Mas a decadência vinha antes. Veio com o abandono do futebol de rua, com a pasteurização dos talentos, com a exportação precoce de promessas. Nossos craques foram vendidos ainda de fraldas para clubes europeus que os moldaram a um padrão: disciplinado, tático, previsível. O improviso — que era o que nos fazia temidos — virou defeito. “Indisciplina tática”, disseram os analistas. E o drible, que era arte, virou firula. Um erro que não volta.

Hoje, olhamos para a seleção como quem olha para um retrato antigo da avó. Com carinho, sim, mas com certo constrangimento. Como se fosse errado ainda torcer por ela. Como se fosse brega acreditar que o Brasil pode, de novo, encantar o mundo com a bola nos pés. E aí voltamos a falar dos tempos de Pelé, de Zico, de Romário, de Ronaldos. Como se a glória estivesse condenada ao passado. 

Mas veja bem — e aqui falo com toda a teimosia de um torcedor velho: a seleção ainda importa. Não porque ganhe. Mas porque, de alguma forma, ela ainda nos reúne. Ainda nos oferece o raro prazer de torcer juntos, de errar juntos, de sonhar juntos. Ainda é o nosso espelho, mesmo trincado.

Sim, o futebol mudou. Sim, a Europa domina. Sim, a camisa pesa mais do que brilha. Mas talvez — e aqui peço licença para ser ingênuo — talvez ainda haja tempo de reencontrar o que perdemos. Não falo de títulos. Falo de identidade. De voltar a jogar com alegria. De deixar que os meninos joguem com liberdade. De não matar os craques com tática. De permitir o erro bonito, o drible irreverente, o gol que ninguém entendeu.

É o fim de uma era, sim. Mas não precisa ser o fim da esperança. A cultura do futebol brasileiro foi desmontada peça por peça. Mas peças podem ser remontadas. Pode demorar. Pode nem acontecer. Mas enquanto houver alguém com uma bola e dois chinelos fazendo gol de placa na calçada, o Brasil ainda respira.

Até a próxima crônica. E que venha a próxima Copa — com ou sem título, com ou sem VAR,  com ou sem coração.

quarta-feira, 30 de abril de 2025

Woke, Cordélia e um antigo compositor baiano

Me disseram outro dia, com ares de triunfo, que uma peça de teatro foi cancelada porque “ofendia minorias”. O verbo usado foi esse mesmo: cancelada. Sem julgamento, sem debate, sem direito à defesa ou dúvida. Uma avalanche de posts indignados, meia dúzia de “influenciadores” em coro e pronto: fim do espetáculo. Achei que fosse exagero, fake news, dessas que circulam em grupos de WhatsApp com letras garrafais e emojis alarmistas. Fui verificar (coisa rara nesse mundo). Era verdade.

Não sei você, mas fui criado ouvindo que liberdade de expressão era um valor inegociável, desses que a gente defende mesmo quando discorda do que está sendo dito. Lembro de uma frase atribuída a Voltaire — ou a alguém que leu Voltaire e quis parecer culto — sobre defender até a morte o direito do outro dizer algo com o qual não se concorda. Hoje em dia, essa frase é motivo de cancelamento. Defender o direito de alguém falar já te torna cúmplice do que foi dito. E isso é assustador.

Lembro do velho compositor baiano me dizendo: “É proibido proibir, é proibido!”

Mas não é disso que quero falar agora. O que me interessa aqui é o novo teatro social em que somos obrigados a atuar. Uma encenação diária, onde cada um deve repetir as falas certas, entoar os discursos certos, usar os pronomes certos, preferencialmente na ordem certa — e, claro, com a entonação correta. Do contrário, ofenderá alguém, e ofender é hoje o pior dos pecados. Pior que mentir. Trair. Roubar. Matar. Jogar pedra em avião. Encoxar a mãe no tanque.

É imperdoável porque é subjetivo.

Talvez estejamos vivendo uma releitura contemporânea de 1984, mas numa versão com filtro colorido do Instagram. No lugar do Grande Irmão, temos pequenos irmãos (medíocres irmãozinhos), milhares deles, com seus celulares, suas timelines e seus dedos apontando. A diferença é que agora somos nós mesmos que nos policiamos. Cada vez que vamos escrever um post, gravar um vídeo, fazer um comentário no almoço da firma, pensamos: “Será que isso vai pegar mal?”. E aí calamos. Não por respeito, mas por medo. E se não pensamos, deveríamos. Ah sim, deveríamos...

Essa cultura, chamada por aí de “woke”, tem nome bonito, promessa bonita. Fala de empatia, inclusão, respeito às diferenças. Mas como tudo que se radicaliza, perdeu o ponto. Está menos interessada em justiça e mais em controle. Menos em ouvir o outro e mais em silenciar. Mas calar os outros não melhora o mundo — só o torna mais hipócrita.

Tenho saudade do tempo em que as pessoas podiam errar em público e aprender com isso. Hoje, se você erra, está marcado. Não há espaço para arrependimento. Não há caminho para o retorno. Quem tropeça uma vez é empurrado para fora da arena. E o mais cruel: sob aplausos (virtuais, mas ainda assim aplausos...)

Claro que há limites. Ninguém está defendendo discurso de ódio, nem apologia ao crime. Há uma diferença brutal entre ofensa intencional e discordância sincera. Entre preconceito e opinião. E se a gente não souber mais a distinção, perderemos muito mais que debates acalorados. Vamos perder a própria alma do convívio democrático.

Talvez por isso, outro dia, tive um momento de estranha admiração por um velho amigo que falou uma barbaridade sem pestanejar. Disse com convicção, sabendo que ia desagradar, mas disse. Não porque estivesse certo — aliás, estava bem errado. Mas porque teve a coragem que falta a tantos: a de ser sincero. Num mundo de verdades empacotadas, ser sincero é o novo tabu.

E talvez, se não fosse por essa minha mania de ver literatura em tudo, eu não me lembrasse agora de Cordélia — aquela de Rei Lear, lembra? A que falou a verdade e foi punida. A que preferiu ser íntegra a ser conveniente. Acho que estamos precisando de mais Cordélias e menos Lear. Ou, quem sabe, de plateias dispostas a ouvir Cordélias sem apedrejá-las por não fazerem parte do coro.

Até a próxima crônica. Se não for cancelada antes.

terça-feira, 29 de abril de 2025

Inteligência Artificial, burrice natural e outras contradições

Sou apaixonado por tecnologia – fascinado com os avanços, entusiasmado com as possibilidades – mas morro de medo da inteligência artificial. 

E, assim sendo, trago em mim uma bela bagunça ideológica, um samba do criador e da criatura, uma crise existencial digna de qualquer episódio de Black Mirror.

 Escrevo, portanto, como forma de colocar alguma ordem nesse colapso mental pós-moderno em que todos estamos metidos até o pescoço, com um celular na mão e uma alma perdida em algum algoritmo.

 Porque, vamos falar a verdade: há algo de grandioso e assustador acontecendo ao mesmo tempo. De um lado, robôs que escrevem, pintam, diagnosticam câncer, operam com precisão milimétrica, dirigem carros e corrigem erros que humanos não enxergam. 

Do outro, multidões viciadas em TikTok, acreditando que a Terra é plana, que vacina transmite chip e que o ChatGPT vai roubar seu emprego de frentista. 

É um paradoxo bonito de se ver: a era mais inteligente da história convivendo com o auge da ignorância produzida em escala industrial. 

E mais bonito ainda é o surto coletivo: há os evangelistas da IA, que veem no avanço tecnológico a salvação da humanidade, e há os apocalípticos, que já estão construindo bunkers no interior de Goiás com medo da Skynet. Nenhum dos dois lados entendeu nada. 

Porque, ao contrário do que dizem os gurus da inovação, a IA não é neutra, nem pura, nem imparcial. Ela é treinada com dados humanos. E humanos são preconceituosos, contraditórios, falhos, egoístas, geniais, idiotas — tudo junto e misturado. 

Alimentamos as máquinas com nossas escolhas, nossos vícios, nossos históricos de pesquisa no Google, nossas fotos com filtro e nossos preconceitos mais bem disfarçados. Ou seja: a inteligência artificial nada mais é do que a burrice natural organizada em código binário. 

E o que me assusta nem é ela. É a gente. Porque a IA não odeia. Mas pode replicar ódio. Não ama. Mas pode manipular desejos. Não acredita em Deus. Mas pode distribuir doutrina religiosa personalizada com base no seu CEP. Não sente inveja. Mas pode enganar com a maestria de um político em véspera de eleição. 

E o que fazemos com tudo isso? Damos poder. Delegamos decisões, terceirizamos pensamentos, pedimos que ela diga o que vestir, o que escrever, o que comer, quem amar. 

E, aos poucos, vamos perdendo a capacidade mais essencial do ser humano: a dúvida. Duvidar é revolucionário. 

E a IA não duvida de si. Ela afirma. Baseada em dados, padrões, estatísticas. O problema é que a vida não se resume a padrões. Ela é cheia de exceções. 

E é nessas exceções que moram a arte, o amor, o erro, o perdão, a graça da existência. Por isso, me declaro aqui em conflito: amo a IA. Uso, estudo, implemento, me deslumbro. 

Mas, ao mesmo tempo, desconfio, questiono, me afasto e temo pelo dia em que ela substituirá não os trabalhos braçais, mas os humanos sensíveis. 

Porque, sim, é possível que um robô opere meu coração com mais precisão do que qualquer cirurgião. Mas será que ele saberá o que fazer quando, no meio do procedimento, eu chorar por medo de morrer? 

A inteligência artificial pode processar bilhões de informações por segundo. Mas não sabe lidar com o silêncio de um luto, com o olhar perdido de uma criança abandonada, com o peso da saudade. Portanto, convivo muito bem com essa contradição dentro de mim: sou entusiasta da IA, mas também seu crítico mais ferrenho. Paradoxal? Sim. Como tudo em mim, em ti, em nós. 

E fico triste com essas tentativas de moldar a discussão em termos simplistas: “quem não abraça a IA é ultrapassado”, “quem alerta para os riscos é tecnofóbico”. Não. O debate é muito mais profundo. Exige nuance, exige ética, exige humildade diante do que ainda não compreendemos. 

O Brasil, como sempre, chega atrasado ao debate. Com escolas sem internet, professores mal pagos e um ensino que ainda ensina o que decorar, não o que pensar. E nesse vácuo educacional, a IA vira messias ou demônio. Nunca ferramenta. A solução? 

A de sempre. Educação. Porque, no fim das contas, mais perigosa do que qualquer inteligência artificial é a burrice natural institucionalizada e premiada com cargo público.

Se ensinarmos as pessoas a pensar, talvez a IA sirva para nos libertar — e não para nos vigiar. 

Talvez o futuro seja promissor. Talvez apocalíptico. 

Mas enquanto houver gente disposta a pensar com a própria cabeça, ainda há esperança.