sexta-feira, 15 de agosto de 2025

Irã, Marx e um país tropical

 A Revolução Islâmica do Irã é uma daquelas histórias que provam que o diabo gosta de se vestir de santo. Em 1979, milhões foram às ruas para derrubar o xá Reza Pahlavi, convencidos de que estavam abrindo a porta da liberdade. Abriram, mas quem entrou não foi a liberdade — foi o aiatolá, trazendo na bagagem a censura, a polícia religiosa e um manual de como transformar o país numa prisão com tapete persa.

As mulheres, que antes podiam estudar, trabalhar e se vestir como bem entendessem, foram obrigadas a usar a burca — não como roupa, mas como uniforme de submissão. Não era tecido: era corrente. A opressão não ficou só na roupa. Veio junto a perseguição estatal, onde falar errado significava sumir da noite para o dia, e, pior, a delação partia muitas vezes do próprio vizinho. O regime conseguiu terceirizar a tirania: cidadãos denunciando cidadãos, irmãos traindo irmãos, tudo em nome da “verdade” oficial.

No Brasil, o roteiro foi menos dramático, mas igualmente perverso. Não tivemos clérigos, mas tivemos sindicalistas com vocação para papa vermelho. No lugar de mesquitas, sindicatos; no lugar de versículos, discursos de palanque. Luís Inácio não usa turbante, mas se comporta como aiatolá tropical: infalível, intocável, sempre cercado de discípulos prontos a beijar-lhe o anel — ou a mão que assina o próximo decreto.

Aqui, a burca não cobre o corpo, mas a mente. É a censura que se veste de “regulação da mídia”, é a autocensura ensinada nas salas de aula por professores que confundem educação com catequese ideológica. No Irã, o silêncio é imposto pela polícia moral; no Brasil, é imposto por influencers, jornalistas militantes e acadêmicos que transformaram a universidade num mosteiro marxista, onde heresia é pensar diferente.

O marxismo, como o islamismo radical, é uma religião disfarçada de política. Tem seus livros sagrados (O Capital é o Alcorão vermelho), seus profetas (Marx, Lenin, Gramsci) e sua própria versão de paraíso, sempre prometido e nunca entregue. Não promete céu, mas garante o inferno para quem ousar duvidar.

No Irã, as mulheres escondem o rosto para sobreviver; no Brasil, as pessoas escondem opiniões para não serem linchadas virtualmente, demitidas, processadas. Lá, a denúncia é feita ao mulá; aqui, ao tribunal das redes sociais, ao Ministério Público, ou a qualquer blogueiro com fome de like e fidelidade partidária.

No fim, o mecanismo é idêntico: criar medo. Medo de falar, de pensar, de respirar sem pedir permissão. E o medo é a ferramenta preferida de todo tirano — seja ele um clérigo com barba longa ou um ex-metalúrgico com fome de eternidade no poder.

O Irã dos aiatolás e o Brasil dos petistas parecem histórias diferentes, mas têm a mesma moral. Não importa se a cela é feita de pedra ou de hashtags; se a mordaça é de pano ou de medo. O final é sempre o mesmo: uma nação inteira ajoelhada, olhando para o chão, enquanto os donos do poder escrevem a última página — e assinam com sangue.

segunda-feira, 4 de agosto de 2025

Machado de Assis, Machado de Assis e Machado de Assis

     Outro dia vi, num desses eventos literários promovidos com dinheiro público e pouco público, uma senhora emocionada falando de sua paixão por Machado de Assis. Tinha lágrimas nos olhos. Contava como sua mãe dizia que ele era o maior escritor do Brasil, como o considerava um exemplo de superação: "um homem negro, pobre, gago, epiléptico, que chegou ao topo". 

    A plateia aplaudia, eu inclusive. Mas, confesso, com uma dúvida entalada entre os dedos: será que ela leu alguma coisa do Machado? Ou era apenas uma emoção herdada, dessas que sentimos por tabela, como torcer por um time sem conhecer os jogadores, gostar de Elis Regina sem ouvir Águas de março?

    Não quero soar amargo, eu nunca quero (talvez queira, só um pouco). 

    É muito fácil gostar de escritores que a gente não lê. Machado, Clarice, Guimarães Rosa, Fernando Pessoa... são como santos de devoção doméstica. Com retratos emoldurados em camisetas, murais de escolas e discursos de formatura. Todos dizem que são geniais. E são mesmo. Mas a maior parte das pessoas que os exaltam nunca passou da segunda página de Memórias Póstumas, ou da Paixão segundo GH, ou ainda algum conto perdido do Sagarana...

    É como dizer amar feijoada, mas tirar a orelha, o pé e o rabo antes de servir.

    Outro dia fui numa escola vi uma exposição sobre o Lobato, o Monteiro. 

    Os alunos fizeram cartazes com trechos de suas obras, bonecos da Emília com olhos de botão, inclusive uma maquete do Sítio do Pica-Pau Amarelo. 

    A professora me falou com orgulho que todo ano faz aquilo. Perguntei, curioso, qual livro do Lobato tinham lido. Ela desviou os olhos, coçou a cabeça e disse que "na verdade, esse ano não deu tempo de ler nenhum... Mas os alunos pesquisaram muito e aprenderam muito durante a pesquisa".

    E é isso. Homenageamos escritores como quem homenageia tios que morreram antes de a gente nascer. Fala-se bem, respeitosamente, mas sem intimidade. Sem aquela leitura que arde, que provoca, que faz você querer fechar o livro no meio de uma frase só pra respirar.

    Há quem diz amar Clarice, mas nunca entendeu a coisa do ovo caindo da sacola no meio da rua. (Você que diz amar, sabe do que estou falando?).

    Gente que fala do “Dom Casmurro” como história de traição e não de paranoia. 

    Gente que acha que Guimarães Rosa é difícil demais, e cita o “...que seja eterno enquanto dure” como se fosse frase de efeito pra qualquer hora ou lugar.

    E não é má fé. É hábito. 

    Nos especializamos em valorizar a embalagem e ignorar o conteúdo. Preferimos o vídeo de dois minutos explicando o livro a encarar meia página da obra. Preferimos saber onde o autor nasceu, com quem casou, se gostava de cigarro ou de café, a nos envolver de verdade com o texto.

    Uma geração de colecionadores de capas.

    Mas a verdade é simples e dura: não adianta montar exposição sobre Machado de Assis, fazer filme com ator famoso, botar seu em escola, se ninguém lê Machado. Se ninguém sua para entender sua ironia, o cinismo escondido na pontuação, a frase que não termina porque começa a nos devorar.

    Machado não precisa de placa. Precisa de tempo. De silêncio. De leitor que tope o desafio de entender um narrador que mente.

    Quer homenagear um escritor? Leia. Nem precisa gostar. Só leia. E se não gostar, tente de novo. Às vezes o problema não é o autor. Às vezes o problema é que estamos tão acostumados com legendas de Instagram e mensagens de WhatsApp que esquecemos como é entrar devagar num texto que não grita, mas sussurra.

    O maior elogio que você pode fazer a um escritor não é dizer que ele é gênio. É abrir seu livro. Acordar mais cedo pra ler três páginas. Deixar o celular de lado enquanto Bento Santiago enlouquece.

    O resto: as frases de efeito, os murais na escola, a foto com a estátua no centro do Rio, este resto, é só decoração. Literatura, de verdade, não precisa de altar. Precisa de alguém que, no meio da correria, ainda ache que vale a pena sentar, abrir um livro e se perder. Mesmo que não entenda tudo. Porque, no fundo, é disso que se trata: não entender tudo, mas seguir lendo.

    Machado agradece. Silencioso, claro. Como quem sorri com os olhos por trás de um bigode finíssimo.

sexta-feira, 1 de agosto de 2025

Diretas, Magnitsky e fogueira moral

     Antigamente, a censura usava uniforme e batia à porta de madrugada. Hoje, vem por e-mail, com despacho eletrônico assinado por ministro do Supremo. 

    Trocamos o porrete pela liminar, o pau de arara pela suspensão de contas, o exílio pelo cancelamento judicial. Mudaram as ferramentas, mas o projeto é o mesmo: silenciar.

    No Brasil de 2025, o que se pretende chamar de democracia tem dificuldade para sustentar o próprio nome. 

    O Estado de Direito foi reduzido a um palco onde um só ator improvisa falas e distribui papéis: o herói, o vilão, o inimigo da pátria. 

    Alexandre de Moraes, uma espécie de Rasputin de toga, encarna o paradoxo: combate o "autoritarismo" com medidas autoritárias, reprime "discursos de ódio" com decisões de ódio à divergência, protege a Constituição ignorando as suas cláusulas pétreas.

    É o velho truque das ditaduras em qualquer lugar do mundo em qualquer período histórico: prender em nome da liberdade, censurar em nome da verdade, calar em nome da paz. 

    A ironia é que, nesta nova encenação, os antigos perseguidos tornaram-se cúmplices. E quem cantou "alegria, alegria" se cala — ou aplaude — diante de ordens judiciais que fecham bocas e plataformas. Os filhos da Tropicália dançam agora a valsa do conformismo institucional.

    "Ditadura nunca mais", gritaram nas Diretas Já. Mas parece que esqueceram de acrescentar: “inclusive a de toga”.

    É verdade que os tempos mudaram. O golpe não precisa de tanques como outrora, mas de termos técnicos: "desinformação", "intervenção excepcional", "proteção institucional". O inimigo é vago, o risco imenso, o prazo indeterminado. 

    E a exceção se torna regra, a regra uma relíquia.

    A sanção americana pela Lei Magnitsky contra Moraes não é um capricho de um governo estrangeiro. É um aviso — desses que só escutam os que ainda não perderam o senso crítico. 

    Remoções de conteúdo, perseguições a jornalistas, bloqueios de plataformas como a Rumble, detenções sem julgamento prévio. 

    Não se trata mais de combater crimes, mas de controlar narrativas.

    E quem ousa dizer o contrário sofre processos, censuras, bloqueios ou difamação. A crítica virou crime; a dúvida, evidência de culpa.

    Dizia-se que o Brasil não era para amadores. Hoje, talvez nem para profissionais. A democracia, uma senhora cansada de ser traída, transformou-se em adereço — uma palavra para discursos pomposos, uma fantasia para tribunais com mais vaidade que limite.

    Velhos, novos e novíssimos baianos, assim como tantos outros que um dia desafinaram para provocar o sistema, se afinam ao coro oficial. Alguns por medo, talvez, outros por conveniência, e alguns — os piores — por acreditar mesmo que existe liberdade em se calar diante do arbítrio, desde que o arbítrio use gravata, fale bonito e pague o dízimo estatal em verba pública direcionada a filmes que ninguém vai assistir, livros que ninguém vai ler, peças teatrais que falam do próprio umbigo e outros tantos projetos que não interessam a ninguém, mas que mantem a classe artística domesticada porque, enfim, é preciso produzir cultura e também é preciso pagar a fatura do cartão.

    O que restou da liberdade de expressão é um campo minado: qualquer passo em falso pode ser “antidemocrático”, “golpista”, “extremista”. 

    O direito de errar, de ser tolo, de falar bobagem, de pensar diferente — tudo isso foi jogado na fogueira moral dos justos autoproclamados. E o povo? O povo continua no ônibus, na frente das adegas, no caminho do culto, no batuque dos tambores, perto demais das capitais, longe demais das decisões sobre suas próprias vidas.

    O Brasil nunca teve muito apreço por liberdade. Preferimos o jeitinho ao debate, a autoridade ao argumento, o medo à responsabilidade. Agora, fingimos que a censura é uma vacina — quando, na verdade, é o vírus que lentamente paralisa a democracia por dentro.

    O que vem depois? Talvez o silêncio absoluto. A ausência de debate, de contradição, de ruído. Um país ordenado, limpo, domesticado. 

    Uma paz de cemitério.

    Mas há quem insista. Quem escreva, cante ou grite. Quem seja preso por isso. 

    Ainda há?

    E talvez, num futuro qualquer, redescubramos que liberdade não se dá — se conquista. E que um país onde só um lado pode falar é, por definição, doente.

    Até lá, seguimos. Alguns gritam, outros calam. E muitos fingem que não veem. 

    É mais fácil pôr o rabo entre as pernas e calar que as pernas em marcha e seguir.

   E como um velho compositor baiano me dizia:  

"Enquanto os homens exercem

Seus podres poderes

Motos e fuscas avançam

Os sinais vermelhos

E perdem os verdes

Somos uns boçais


Queria querer gritar

Setecentas mil vezes

Como são lindos

Como são lindos os burgueses

E os japoneses

Mas tudo é muito mais


Será que nunca faremos senão confirmar

A incompetência da América católica

Que sempre precisará de ridículos tiranos

Será, será, que será?

Que será, que será?

Será que esta minha estúpida retórica

Terá que soar, terá que se ouvir

Por mais zil anos


Enquanto os homens exercem

Seus podres poderes

Índios e padres e bichas

Negros e mulheres

E adolescentes

Fazem o carnaval


Queria querer cantar afinado com eles

Silenciar em respeito ao seu transe num êxtase

Ser indecente

Mas tudo é muito mau


Ou então cada paisano e cada capataz

Com sua burrice fará jorrar sangue demais

Nos pantanais, nas cidades

Caatingas e nos gerais


Será que apenas os hermetismos pascoais

E os tons, os mil tons

Seus sons e seus dons geniais

Nos salvam, nos salvarão

Dessas trevas e nada mais


Enquanto os homens exercem

Seus podres poderes

Morrer e matar de fome

De raiva e de sede

São tantas vezes

Gestos naturais


Eu quero aproximar o meu cantar vagabundo

Daqueles que velam pela alegria do mundo

Indo e mais fundo

Tins e bens e tais


Será que nunca faremos senão confirmar

Na incompetência da América católica

Que sempre precisará de ridículos tiranos

Será, será, que será?

Que será, que será?

Será que essa minha estúpida retórica

Terá que soar, terá que se ouvir

Por mais zil anos


Ou então cada paisano e cada capataz

Com sua burrice fará jorrar sangue demais

Nos pantanais, nas cidades

Caatingas e nos gerais


Será que apenas

Os hermetismos pascoais

E os tons, os mil tons

Seus sons e seus dons geniais

Nos salvam, nos salvarão

Dessas trevas e nada mais


Enquanto os homens

Exercem seus podres poderes

Morrer e matar de fome

De raiva e de sede

São tantas vezes

Gestos naturais


Eu quero aproximar

O meu cantar vagabundo

Daqueles que velam

Pela alegria do mundo

Indo mais fundo

Tins e bens e tais!

Indo mais fundo

Tins e bens e tais!

Indo mais fundo

Tins e bens e tais!"

quarta-feira, 30 de julho de 2025

Não quero ser americano, quero ser americano

    Não quero ser americano. Essa frase repete-se em minha cabeça feito um mantra torto, um mantra que se engasga entre o orgulho ferido e a ironia sufocante. Não quero ser americano, porque ser americano virou um espelho trincado onde vejo refletidos os horrores e as utopias de um país que se autoeleva a modelo do mundo — e que, ao mesmo tempo, serve de laboratório para os piores experimentos da humanidade.

    Mas, também quero ser americano.

    Quero ser americano como quem quer ser ator em Hollywood, mas sem perder a alma na troca pelo roteiro raso e o clichê. Quero ser americano para beber o café preto da morning routine, enquanto o despertador toca o hino de uma rotina que não me pertence, mas que me fascina. Quero ser americano para entender aquela mistura louca de liberdade e consumo, para experimentar o sonho do carro na garagem, da casa com gramado, do iPhone na mão — e sentir o vazio que essa perfeição fabricada deixa nas entranhas.

    Não quero ser americano, pois seria admitir a colonização das ideias, a padronização dos desejos, a uniformização do mundo em fast food, reality shows e falsas promessas de felicidade em cápsulas vendidas no Walmart da vida. Não quero ser americano porque ser americano é, muitas vezes, ser uma marionete cujos fios se estendem até Wall Street, passando pela indústria cultural que vende ilusões em série. É ser engolido pelo monstro que chama a si mesmo de “excepcional”.

    Mas quero ser americano para sentir aquela febre da reinvenção constante, do recomeço na rua que nunca dorme, do melting pot onde tudo é misturado — às vezes com violência, outras com esperança. Quero ser americano para testemunhar a força brutal da diversidade, onde o horror do racismo convive com a poesia das periferias que dançam e protestam. Quero ser americano para tentar entender o paradoxo do país que derruba muros e constrói prisões, que exporta democracia enquanto internaliza segregação.

    Não quero ser americano porque a América, aquela América que explode na tela com seus símbolos de glória e decadência, também é um lembrete cruel daquilo que não quero ser: um cidadão anestesiado pelo medo, pelo consumo desenfreado, pela alienação travestida de entretenimento. Não quero ser americano para não esquecer das crianças que vivem sem esperança em guetos invisíveis, dos soldados que voltam sem alma, dos sonhos que morrem no trânsito da metrópole.

    Mas quero ser americano para viver a contradição de um lugar que é, ao mesmo tempo, berço e sepultura de tantas revoluções, o terreno fértil de tantas utopias e a cova rasa de tantos fracassos. Quero ser americano para tentar encontrar ali, entre as ruínas e os arranha-céus, um sentido para a própria humanidade — mesmo que esse sentido venha embrulhado em ironia, cinismo e desesperança.

    Não quero ser americano, porque isso implicaria desistir da minha identidade, das minhas raízes enraizadas no chão de outro continente, da minha língua que se embaraça nas palavras que nunca se traduzem por completo. Não quero ser americano porque seria trair o que há de mais genuíno em mim, aquela resistência silenciosa contra a homogeneização, contra o apagamento das diferenças.

    Mas quero ser americano para beber da fonte de um país que, mesmo em suas contradições, conseguiu criar músicas, filmes, literaturas que mexem com a alma, que dizem verdades dolorosas e que provocam mudanças — mesmo que essas mudanças sejam lentas e incompletas. Quero ser americano para aprender com os erros, para não repetir a estupidez dos que fecham os olhos para a própria história, para me inspirar na luta diária contra o que é injusto e opressor.

    Não quero ser americano, porque o sonho americano me parece hoje uma miragem fria, um truque barato de ilusionista, uma promessa vazia vendida em prédios de vidro. Não quero ser americano porque sei que o custo desse sonho é alto demais: vidas, dignidade, liberdade. Porque o sonho americano é também o pesadelo de muitos.

    Mas quero ser americano para sonhar um sonho que não seja só deles, para tomar emprestado um pouco da coragem de seus marginalizados, para me embrenhar nas ruas que gritam por justiça e, quem sabe, para reencontrar a humanidade perdida num mapa de consumismo e desesperança.

    Não quero ser americano, mas quero ser americano. Quero ser esse paradoxo ambulante, essa contradição ambulante, porque no fundo, ser americano — ou não ser — é antes de tudo ser humano. E ser humano hoje é navegar entre o que se rejeita e o que se deseja, entre a crítica ácida e o desejo inocente, entre o medo e a esperança.

    No fim, ser americano é querer ser algo que não existe, é buscar uma identidade em pedaços de um sonho que nunca se realizou por completo — e talvez essa busca desesperada seja o que nos une, nos diferencia e, ao mesmo tempo, nos condena.

    Não quero ser americano, quero ser americano. E nessa confusão toda, talvez eu me encontre — ou me perca para sempre.

terça-feira, 1 de julho de 2025

Goonies, Chinatown e uma lente embaçada.

 

Era uma vez um tempo em que a tela do cinema era uma janela aberta para o impossível — e nós, espectadores, nem sabíamos o quanto éramos felizes. O mundo dos anos 70, 80 e 90 vivia sob a luz difusa dos projetores, e as histórias que passavam por ali não eram apenas histórias. Eram mitologias modernas, evangelhos profanos, delírios de celuloide. A sala escura tinha algo de templo, o ingresso era um bilhete para o extraordinário, e os olhos fixos na tela eram orações mudas de quem acreditava na beleza do mundo.

Nos anos 70, o cinema sangrava com estilo. Taxi Driver nos apresentava Travis Bickle, o profeta do caos urbano, suado e paranoico, perguntando ao espelho se estávamos falando com ele. Estávamos. E seguimos falando com ele até hoje, mesmo que a cidade tenha trocado os becos escuros pelos shoppings iluminados. Apocalypse Now transformava a guerra em pesadelo lisérgico, com helicópteros ao som de Wagner e coronéis enlouquecidos sussurrando "o horror". O Poderoso Chefão ensinou ao mundo que até o crime podia ser orquestrado com a solenidade de uma ópera. E Chinatown, com seu noir ensolarado, nos lembrou que o mal nem sempre se esconde na sombra — às vezes ele brilha à luz do dia.

Nos 80, o cinema se entregou à infância da humanidade. Era um tempo em que o fantástico era possível, em que os alienígenas queriam voltar para casa e as crianças podiam salvá-los pedalando contra a lua. E.T. não era apenas um filme, era uma carta de amor à empatia. Os Goonies nos ensinavam que amizades verdadeiras cabiam em bicicletas, que havia mapas secretos e que adultos não entendiam nada. Os heróis eram improváveis — como Indiana Jones, um arqueólogo que tinha medo de cobras — ou invencíveis, como o Exterminador do Futuro, que voltava do amanhã com olhos vermelhos e uma promessa: "I’ll be back". E ele voltou. Várias vezes.

Mas os anos 80 também sabiam do escuro. Amadeus nos mostrou que o talento não precisa ser virtuoso — pode ser debochado, sujo e divino. O Iluminado levou o terror para dentro de um hotel vazio e nos deixou presos com Jack Nicholson e sua máquina de escrever repetindo obsessivamente que "todo trabalho e nenhuma diversão fazem de Jack um bobão". E Blade Runner, talvez o maior presságio de todos, perguntou se androides sonham com ovelhas elétricas — enquanto nós, humanos, parávamos tudo para ouvir um replicante morrer falando sobre lágrimas na chuva. E ninguém mais escreveu uma cena como aquela.

Aí vieram os 90, a década em que o cinema parecia se vingar da ingenuidade anterior. As histórias ficaram mais cínicas, mais autênticas, mais desafiadoras. Os vilões eram mais sedutores do que os mocinhos. O Silêncio dos Inocentes nos apresentou Hannibal Lecter, com sua polidez assustadora, sua voz suave e seus olhos devoradores. Pulp Fiction transformou o submundo em poesia pop, com danças desajeitadas, diálogos filosóficos sobre hambúrgueres e tiros no banco de trás. Clube da Luta quebrou o espelho e nos mostrou o que está por trás do rosto que mostramos ao mundo. E Matrix, com seu coquetel de filosofia, artes marciais e rebeldia digital, nos deu uma escolha: realidade ou ilusão?

Naquela época, o cinema não era só entretenimento. Era identidade, era linguagem, era catarse. A gente se via nos personagens — mesmo nos mais tortos. Eles nos mostravam o que éramos, o que escondíamos, o que queríamos ser. O herói não precisava salvar o mundo: bastava salvar a si mesmo. E, curiosamente, era isso que nos salvava também. Havia espaço para ambiguidade, para dúvida, para silêncio. As cenas demoravam mais. Os planos sabiam esperar. Os roteiros confiavam na inteligência de quem assistia.

Era o auge — e não nos demos conta. O cinema era arte antes de ser algoritmo. Era ousadia antes de ser estatística. As histórias não eram testadas por grupos de pesquisa, não eram escritas por comitês, não precisavam ter dez sequências. Um filme podia nascer, brilhar e morrer ali mesmo — e isso bastava. A falta de efeitos digitais era compensada com o excesso de alma. Os erros de continuidade eram poéticos. A lente embaçada, às vezes, dizia mais que mil diálogos.

Hoje, tudo é mais rápido, mais limpo, mais redondo. Mas também mais raso. Os filmes atuais têm a textura dos comerciais. São bonitos, eficientes, mas esquecíveis. O que falta é o excesso, o descontrole, a ousadia — aquilo que fazia do cinema um risco. A tela ainda existe, os atores ainda estão lá, mas algo se perdeu no caminho. Talvez a urgência. Talvez a inocência. Talvez nós mesmos.

Mas ainda há tempo. Ainda podemos voltar. Ainda é possível abrir o baú das fitas empoeiradas, dos DVDs riscados, das plataformas escondidas com “clássicos”. É possível revisitar Forrest Gump e entender que a vida, de fato, é uma caixa de chocolates. É possível ouvir Robin Williams em Gênio Indomável dizendo: “Você não é perfeito. E vou te poupar o suspense: a garota que conheceu também não é.” É possível rever Cinema Paradiso e lembrar que o cinema nunca foi sobre filmes — mas sobre sentimentos.

Voltem aos filmes. Ou visitem, se nunca os viram. Eles não são antigos. São eternos. Lá estão os grandes personagens, as grandes histórias, os grandes riscos. Lá está a verdade vestida de fantasia. A lágrima disfarçada de ação. O riso que vem depois do medo. O amor que brota em meio ao caos.

Porque houve um tempo em que a tela escura se iluminava e nos tornávamos maiores do que somos. Nós vivemos isso. Intensamente. E, mesmo sem saber, tocamos o sublime.

terça-feira, 24 de junho de 2025

Dom Quixote, Matemática e CPF

 Era uma vez um país onde as aulas de literatura sumiram da sala como quem esquece um guarda-chuva no banco do ônibus: de repente, e só se dá conta quando a tempestade cai.

O Brasil fala em inteligência artificial, ensino por competências, pensamento computacional, e esquece que antes de pensar, é preciso sentir. E antes de sentir, é preciso saber nomear o que se sente. E isso, meu caro, só a literatura ensina. Matemática te diz quantas lágrimas caíram. Literatura te diz por que elas caíram. E às vezes até te faz gostar da chuva.

As escolas, coitadas, andam ensinando leitura como quem ensina a montar móveis da IKEA: siga o passo a passo, encaixe aqui, use a chave Allen e não questione nada. Resultado? Um país que lê a bula como se fosse poesia, interpreta ironia como ofensa, e acha que o narrador de um conto é o autor em carne, osso e CPF.

As redes sociais viraram ringue de gladiadores analfabetos emocionais. Cada post, uma faísca. Cada comentário, um incêndio. Mas ninguém sabe distinguir se o texto é informativo, opinativo, poético ou apenas uma piada ruim. Vivemos uma era em que as pessoas leem um meme como se fosse um mandamento. E discutem como se estivessem num tribunal divino. Faltou aula. Faltou leitura. Faltou Machado de Assis explicando que até o defunto pode narrar. Faltou Capitu e seus olhos de ressaca para ensinar que nem tudo é o que parece. Faltou o vilão de Dostoiévski dizendo que o mal também tem suas razões. Faltou ambiguidade.

É que a literatura sempre teve essa gentileza brutal de nos apresentar o outro lado — o lado que a gente não queria ouvir, mas precisava. Em um romance, o antagonista tem tempo de fala. No poema, a angústia vira beleza. No conto, o absurdo ganha endereço.

Mas nas escolas de hoje, quando há “leitura”, é uma leitura escoltada, fiscalizada, higienizada — como quem cheira o leite para ver se ainda está bom antes de oferecer a uma criança. Lê-se por obrigação, nunca por paixão. Os professores, os poucos que ainda resistem com alma de Dom Quixote, pedem: “leiam esse trecho”. E os alunos, com olhos de quem olha brócolis, perguntam: “vai cair na prova?”

Aí está o problema. Pedir que leiam é o mesmo que mandar comer brócolis porque “faz bem”. Ninguém se apaixona por um vegetal. Mas muita gente lembra da primeira vez que cozinhou com a avó. Porque o que falta é isso: cozinhar junto. Ler junto. Criar momentos onde a leitura seja partilhada como pão quente na mesa. Onde a literatura seja a conversa, não a obrigação. Onde o pai leia com a filha, o professor com a turma, o amigo com o amigo.

Porque a gente não aprende a ler sozinho. Aprendemos ouvindo vozes. A do narrador, a da mãe, a do professor, a da personagem que pensa diferente de nós. E é ouvindo vozes que, talvez um dia, aprendamos a não gritar tanto.

Literatura é o único lugar onde o contraditório tem microfone. E talvez seja por isso que tanta gente anda lendo errado: porque nunca aprendeu que ouvir o outro é parte do texto.

Se é pra salvar alguma coisa neste mundo, que se salve pelo menos uma roda de leitura. Uma história contada em voz alta. Uma página lida de mãos dadas. Um momento em que o silêncio entre as palavras diga tudo. E que, pela primeira vez em muito tempo, alguém sinta vontade de continuar lendo — não porque é saudável. Mas porque é humano.

domingo, 22 de junho de 2025

Vaticano, feijão com arroz e DNA

 Outro dia me dei conta, entre um cafezinho morno e um feriado no calendário, que o Brasil é uma espécie de convento tropical de proporções continentais. Um país inteiro de chinelo no pé, água de coco na mão e um calendário que mais parece o missal romano – só que com menos culpa e mais churrasco. Não é por acaso. Nenhum outro povo no planeta celebra tanto santo quanto o brasileiro. Nem mesmo os italianos, coitados, que ainda tentam manter o Vaticano funcionando enquanto o Brasil fecha banco na quinta-feira por causa de um corpo que subiu aos céus.

Sim, caro leitor, mais um feriado. E como todo bom brasileiro que se preza, eu fui conferir o motivo: Corpus Christi. O nome, em latim, já denuncia que o motivo é sério. Mas no fundo a celebração mesmo é de uma nação que aprendeu a transformar Deus em folga remunerada.

É bonito de ver. O feriado religioso aqui não é uma pausa, é um projeto civilizatório. Temos santos padroeiros de bairros, cidades, estados inteiros. Tem São Paulo, Santa Catarina, Espírito Santo. Cidades chamadas Nossa Senhora das Dores, Bom Jesus da Lapa, São Sebastião do Paraíso. E se faltar um padroeiro no CEP, a gente inventa. A devoção por aqui é como o feijão com arroz: se não tem no prato, falta sabor.

O brasileiro é um sujeito que pode até esquecer a tabuada, mas sabe de cor quando é Finados, Nossa Senhora Aparecida, Imaculada Conceição e Sexta-feira Santa. A gente não celebra datas. A gente as canoniza.

E veja bem: até os que juram ter saído da Igreja continuam presos ao calendário dela. O evangélico do bairro, por exemplo, critica o catolicismo romano com veemência, mas está lá, de Bíblia em punho, anunciando um culto de cura e libertação justo no dia de São Jorge. “Foi coincidência”, ele dirá. Mas ninguém marca nada no Brasil sem antes consultar a liturgia. É um tipo de DNA espiritual, como quem já nasce com um terço amarrado no umbigo.

É tão estrutural que até os sobrenomes carregam o peso da fé. Tem Ferreira da Cruz, Batista dos Anjos, Oliveira do Carmo. Gente que pode não ir mais à missa, mas traz no nome a certidão de batismo da própria identidade. E os que acham que escaparam da religião porque não têm fé, tampouco sobrenome litúrgico, ainda assim moram na Rua São João ou pegam a condução para o bairro Santo Amaro, e sonham com as praias de Santa Cruz Cabrália, como se uma geografia laica fosse possível num país onde até o mapa é um relicário.

É preciso entender que o Brasil não é católico por escolha. É católico por alicerce. O cimento que gruda o concreto ao barro deste país tem cheiro de incenso e ecoa cânticos gregorianos.

Mesmo os ritos evangélicos, neopentecostais, reformados, progressistas ou retrógrados, são filhos rebeldes da velha mãe Igreja. Trocaram os santos por pastores, a hóstia pelo copo de suco, o confessionário pela fogueira santa, mas mantiveram a teatralidade barroca, a culpa difusa, a obsessão com o diabo e a paixão pela cruz. Aqui, mesmo quem cospe na cruz o faz em nome dela.

Talvez, no fim, o feriado religioso seja a maneira que encontramos de continuar rezando sem dobrar os joelhos. Não ajoelhamos, mas fechamos o banco. Não oramos em latim, mas abrimos a cerveja. Não sabemos mais fazer o sinal da cruz, mas agradecemos pelo descanso. E ao fazê-lo, reafirmamos, sem perceber, que o Brasil, antes de ser laico, é devoto. Devoto da folga, da fé e do feriado.

E que Deus nos conceda mais um. Amém.

terça-feira, 17 de junho de 2025

Coesão, Chico Buarque e mal-fodidos.

 Uma das definições mais importantes da gramática atende pelo nome de coesão textual. Em termos simples? É dizer mais com menos. Fácil de entender — poucos exemplos bastam. E não há um único aluno neste planeta que termine a Educação Básica sem ouvir falar disso. Acontece em todas as línguas, em qualquer canto do mundo.

O problema é que o Brasil — esse mesmo onde a gente vive — não parece ligar muito pra formação básica. No discurso, sim. Na prática, não. Ir à escola, seja ela pública, privada ou confessional, não garante aprendizado. Nenhuma delas. A educação brasileira já nasce descuidada e ainda apanha de ignorantes sem leitura, sem base, sem vergonha na cara. Um dia, ainda escrevo a crônica que vivo me prometendo sobre essa geração que não lê, aprende com professores que também não leram, formados por uma leva anterior que lia menos ainda. Um ciclo vicioso de desinformação.

Estou me perdendo? Talvez. Mas como diria Clarice — a Lispector, claro: “Se estou confusa, não me importo. Eu me entendo.”

De todo modo, quero ser claro sobre a tal coesão e por que estou escrevendo sobre ela.

O fato de estúpidos ensinarem outros estúpidos, seguindo orientações igualmente estúpidas sem consultar fontes... deixo pra outra hora. Agora é aula de língua portuguesa. Básica. Bem básica.

Coesão. Vamos lá.

É usar menos palavras — às vezes até menos letras — pra dizer mais. Exemplo? O uso do masculino como forma de coesão. Não como instrumento do patriarcado, mas como estrutura da língua. “Os humanos habitam a Terra.” Inclui mulheres? Sim. E se eu disser “as humanas”? Aí excluo os homens. O masculino, no plural ou no singular, também serve como forma neutra.

Nos anos 80, Sarney — presidente na época — começava seus discursos com “brasileiros e brasileiras”. Não é exatamente erro. É falta de coesão. Numa redação do ENEM, por exemplo, perderia ponto. Bastava “brasileiros” pra incluir todos. Se quiser soar neutro de verdade, diga “pessoas do Brasil”. Simples.

Esse jogo entre estilo, adaptação, metáfora, é da ordem da estilística. É o que faço aqui: modular uma voz humana, escrever como quem conversa.

Quer mais exemplo de falta de coesão? Os eufemismos que contornam palavras por preconceito ou desculpas pseudo-históricas. Em vez de uma palavra, damos voltas e mais voltas pra não ofender, e o texto vira um emaranhado insosso. Não se pode mais dizer “puta”, “prostituta” ou “meretriz”. Preferem “garota de programa”, “mina do job”, “mulher da noite”. Moralismo disfarçado — tanto da esquerda quanto da direita.

Lembro das personagens ultrarreligiosas de Dias Gomes. Hoje, lembram certos militantes de esquerda: feministas, ativistas, defensores de qualquer causa. Todos com medo das palavras. Todos temendo ofender seu deus — seja ele o catolicismo, o marxismo ou o feminismo. Aliás, seria o marxismo e o feminismo brasileiros versões seculares do catolicismo nacional? Perguntar não ofende.

Não se diz mais “prostituição”, mas “modelo de book rosa”.

“Estupro” virou “violência sexual”.

“Pedofilia”? Agora é “abuso infantil”.

E “gay, lésbica, bissexual”? Não. Agora é LGBTQIA+. E, até onde estudei, parava aí.

E tem mais: aquelas trocas que não dizem absolutamente nada. Chamam de politicamente corretas, mas só deformam, distorcem, corrompem.

“Ladrão”? Agora é “suspeito”.

“Assassino”? Também não. “Indivíduo investigado”.

Já vi num telejornal: “Há indícios de que fulano seja suspeito de cometer o crime.” Juro. Assim mesmo. Vídeo do crime, flagrante, e o sujeito é... suspeito.

Se fosse eu, diria direto: “Fulano é o suspeito.” Ou: “Há indícios que levantam suspeita sobre fulano.” Menos palavras, mais clareza. Drummond já dizia — e quem ousa discordar dele? —: escrever é cortar palavras.

Um dia volto só pra falar do politicamente correto. Porque, pelo visto, ninguém mais quer ser entendido. É um bando de gente burra — sim, burra, não “mal informada” — dando aula, vendendo livro, vídeo, curso. E dar voltas na língua é típico de tempos autoritários.

Chico Buarque cantou:

“Hoje você é quem manda
Falou, tá falado
Não tem discussão, não...”

E disse assim porque não podia dizer o óbvio: “Tem censura. Se a gente falar, a gente morre.”

Quando começamos a substituir palavras por medo, estamos sendo reprimidos. Em casa, chama-se educação: não se diz “puta” no jantar. Na escola, formação: não se chama o professor de “mano”. No Congresso, protocolo: trata-se o colega por “Vossa Excelência”. Ok.

Mas no dia a dia, se sou obrigado a dar voltas pra seguir cartilhas escritas por analfabetos de Ciências Sociais, então eu chamo do que é: autoritarismo, censura, ditadura, o nome que quiser.

Viram? Usei “analfabetos de Ciências Sociais” direto. Não fui prolixo dizendo “estudantes funcionalmente analfabetos de cursos de humanas, prioritariamente Ciências Sociais, não exclusivamente”. Fui direto.

Porque dar nome aos bois é papel de quem escreve com clareza. E esses bois — malformados, malfodidos, mal-amados — não entendem nem a própria existência. Falta sexo pra essa gente.

Em vez de dizer “dor de corno”, dizem “situação delicada”.

Em vez de “desempregado”, dizem “em transição de carreira”.

Em vez de “sou gay”, dizem “estou me descobrindo”.

Cansa.

E, confesso, cansei por hoje. Volto a esse assunto depois.

Até!


segunda-feira, 26 de maio de 2025

O amor está aqui em algum lugar no mundo, é preciso acreditar (Crônica afetiva para tempos sem afeto)

Dizem que o amor existe. Eu também já disse isso — em voz alta, inclusive, pra ver se convencia o espelho. Mas hoje, se me perguntarem, eu hesito. O amor está aqui em algum lugar no mundo, dizem. E eu reviro as gavetas, os bolsos da alma, os restos de fé esquecidos debaixo do tapete. Encontro de tudo: recibo de ex, boleto de saudade vencida, cartão-postal do “quase” com carimbo borrado. Mas o amor? O amor está sempre saindo pela porta de emergência.

Já acreditei nele como quem acredita em disco voador: não vi, mas jurei que era real só porque queria muito. Aí vieram os amassos, os jantares à luz de vela (com conta dividida e silêncios longos), as promessas feitas em noites bêbadas e desfeitas nas manhãs de ressaca emocional. O amor estava lá? Talvez. Mas era tímido. Tão tímido que só se deixava ver de relance, como aquele fantasma que atravessa a sala quando a gente está sozinho e cansado demais pra gritar.

No colégio, disseram que o amor era coisa de príncipe e princesas da Disney. Depois, na vida real, descobri que príncipes e pricesas andavam de Uber, sumiam no dia seguinte e às vezes pediam pra “ver onde isso vai dar” — e o “isso” geralmente dava num abismo chamado “não é bem o que eu tô procurando agora”. Eu? Tava procurando o amor. Elas? Um wi-fi emocional pra se conectar quando a solidão dava sinal fraco.

Todo mundo insiste: “O amor está aqui em algum lugar no mundo”. Mas e se ele tiver mudado de nome, feito harmonização facial, virado coach de relacionamentos tóxicos? Às vezes acho que o amor foi demitido, terceirizado por carência, substituído por like, cafuné com data de validade e sexo que começa com Tinder e termina em terapia.

Você me diz pra acreditar. Eu sorrio com os dentes, mas não com os olhos. Acreditar é bonito — mas também é cansativo. Já queimei a língua em sopa fria de paixão, já construí castelo com areia movediça, já plantei carinho e colhi cacto. Ainda assim, sigo tentando, como quem joga moeda no poço achando que é fonte dos desejos, mas o único desejo que se realiza é o do poço com mais uma moeda.

Às vezes penso que o amor é um bicho em extinção. Está lá, escondido em alguma floresta emocional, esperando que a humanidade pare de gritar. Quieto, ferido, desconfiado. Eu entendo. Eu também ando assim.

O amor está aqui em algum lugar no mundo, eu sei. Talvez esteja dormindo, cansado de tanto ser confundido com carência. Talvez esteja perdido num ponto de ônibus, sem sinal no celular. Ou então, o mais provável: talvez o amor seja esse lugar que nunca cheguei, mas continuo tentando alcançar mesmo sem saber a direção — só pra não morrer parado.

Afinal, acreditar dói. Mas desaprender a crer... ah, isso mata por dentro, devagarzinho. Feito amor não correspondido.

quinta-feira, 22 de maio de 2025

Sexo, televisão e silêncio.

 

Não lembro exatamente quando foi que o toque perdeu a graça. Talvez tenha sido quando trocamos o cheiro de pele pelo de amaciante de propaganda. Ou quando a expectativa de um corpo quente do outro lado da cama foi substituída por um fone de ouvido e um episódio novo de Lost. Pode ter sido ali, em algum momento entre o “me avisa quando chegar” e o “vou dormir, tô cansado”, que o sexo morreu — e ninguém foi ao velório.

Fazer amor virou coisa de filme antigo. Daqueles em preto e branco, em que as pessoas transavam com mais desejo do que os casais de hoje depois de três taças de vinho e meia hora de scroll no Instagram. Trocar saliva virou hábito de quem ainda não entendeu que o novo prazer é silencioso, solitário, anestesiado. O novo prazer é digital, sintético, asséptico, seguro — e vazio.

A televisão veio primeiro, nos ensinando a ver histórias mais interessantes do que as nossas. Depois o cinema, embalando a ilusão de que o amor bom mesmo é o que acontece em Paris com trilha sonora de piano e closes em câmera lenta. Já ali o sexo foi domesticado: cheio de cortes, ângulos suaves e corpos impossíveis. Quando o casal se beija, o espectador suspira. Mas não levanta. Fica ali, sentado, em sua poltrona, desejando uma vida que não vai viver.

Aí chegaram as redes sociais. E a pornografia gratuita, os filtros, os influencers com seus abdomens e bundas dizendo que a verdadeira intimidade é “ser você mesmo”. O problema é que ninguém é mais si mesmo. A libido virou performance. O tesão agora depende de curtidas. O nude precisa de edição. O desejo precisa de Wi-Fi.

Por que transar com alguém se você pode jogar um game que libera dopamina a cada fase? Se pode ver um filme em que o protagonista nunca broxa, sem  bafo, não ronca? Para que o risco do afeto, do cheiro, do constrangimento, se você pode ter tudo isso sem levantar da cadeira? Com o tempo, as pessoas aprenderam que o prazer do corpo exige trabalho, e suar está fora de moda. Melhor um cigarro eletrônico e um shot de tequila. Melhor a cerveja gelada no bar do que o corpo quente no lençol amarrotado. Melhor o vibrador com dez velocidades e sem julgamento.

O prazer está higienizado. Sem pelos, sem fluídos, sem gemidos que escapam do controle. O sexo, quando acontece, é por protocolo — ou tédio. Aplicativos nos colocam uns diante dos outros como carne de supermercado, e ninguém mais cozinha. Só consome. Passamos o dedo, escolhemos, descartamos. Transamos sem encostar. Gozamos sem sentir. Vivemos sem viver.

E por que isso é péssimo para o indivíduo? Porque o humano foi feito de toque. Não é filosofia barata, é biologia básica: somos pele, cheiro, suor (e urina e fezes, há quem goste, e há quem goste de cada coisa). O corpo precisa do outro. A alma também. Sem contato, viramos máquinas que se masturbam diante de telas, que fingem estar felizes com suas rotinas fitness e seus relacionamentos abertos que nunca se abrem de verdade. O orgasmo virou distração. A intimidade fobia. O amor uma piada.

Não é à toa que nunca estivemos tão ansiosos, tão deprimidos emedicados. O que falta não é terapia, nem yoga, nem mindfulness. Falta olho no olho. Falta beijo com gosto de vinho barato. Falta silêncio a dois. Falta gozar com a alma. Ou simplesmente gozar.

Ponto.

Mas preferimos o entorpecimento. Preferimos a maratona de séries ao corpo suado. A cocaína social dos likes. Preferimos o conforto de um game do que o desconforto de amar alguém que pode nos rejeitar. Preferimos não sentir. E, no fim, já não preferimos nada. Apenas repetimos, anestesiados, o ritual de fingir que estamos vivos.

O sexo não morreu, dizem. Está evoluindo, dizem. Estão errados. O sexo morreu. Foi morto por um algoritmo. E a gente ainda compartilhou o velório no stories.

Boa noite. E durma bem,  sozinho ou não.

 

terça-feira, 20 de maio de 2025

Voltando pra casa

 

Você estava voltando pra casa.

Era isso o que dizia o bilhete amarrotado no fundo do bolso: “Voltar pra casa”. Simples assim. Sem endereço, sem ponto de referência, sem mapa. Apenas essa ordem mansa, quase um sussurro maternal: volte pra casa.

Mas você — você não se lembra mais do caminho.

Isso acontece, dizem. Esquecer-se. Primeiro, a chave do portão. Depois, o nome daquela rua com cheiro de pão quente. O número da casa onde a mãe bordava silêncios. Aos poucos, como quem desata os nós do tempo, você desaprende a volta.

O curioso é que você não percebe quando começa o esquecimento. Talvez tenha sido no dia em que decidiu ser prático. Quando trocou o banco da praça por uma planilha, o pôr do sol por reuniões de feedback. Quando o balanço da infância virou enxaqueca e prazo.

“Você estava voltando pra casa...”

Essa frase não é só geográfica. É existencial. Voltar pra casa é mais do que voltar pro lugar onde as meias ficam guardadas. É reencontrar o ponto de partida, o cheiro de bolo que não vem da padaria, a saudade que não tem nome porque sempre esteve com você.

E agora, no meio do caminho, parado feito um ponto de interrogação entre dois semáforos, você percebe que se perdeu. Não por falta de placas, mas por excesso de pressa.

E se a casa não for mais um lugar? E se for um estado de alma?

Rubem Alves, se estivesse ao seu lado, talvez lhe dissesse: “A casa verdadeira não tem paredes, tem aconchego. Tem a cadeira em que se senta o coração. A casa é onde aquilo que somos é bem-vindo, sem necessidade de performance.”

Você se lembra vagamente: havia um cachorro. Um quintal com formigas em marcha. Uma escada que rangia em cumplicidade. Talvez a casa esteja em algum lugar entre a infância e o devaneio. Talvez, para reencontrá-la, seja preciso deixar de procurar com os pés e começar a buscar com os olhos fechados.

Quem sabe o caminho de volta não seja uma linha reta, mas um círculo. E você só precise parar de andar pra finalmente voltar.

Você estava voltando pra casa.

Ainda está.

segunda-feira, 19 de maio de 2025

Titanic, Wi-Fi e selfies.

 

Lembro-me de quando ouvia falar em melancolia como quem escutava histórias sobre lobisomens — criaturas das trevas, mitos noturnos, assombrações de tempos antigos. A melancolia, diziam, era própria dos poetas, dos artistas, dos sensíveis demais para este mundo bruto. Hoje tem um novo nome, uma nova roupa e um novo cheiro: depressão. E não habita apenas os porões da alma artística;  caminha pelas ruas como um zumbi engravatado, embriagado de notificações e batizado pela luz azul dos gadgets.

A depressão tornou-se a epidemia elegante do século XXI. Não se trata de perder o sentido após um amor não correspondido ou após a leitura de “Werther”. Não. A nova tristeza não grita, não sangra poesia, não dorme em caixões ou chora à beira de sepulturas. A nova tristeza apenas silencia — diante de telas, diante de algoritmos, diante de uma humanidade que esqueceu como olhar nos olhos.

Vivemos plugados, mas desligados. Milhares de conexões por segundo, nenhuma conexão verdadeira por década. Estamos todos dentro de uma gigantesca prisão digital, onde as grades são feitas de Wi-Fi e os carcereiros atendem por nomes suaves como Instagram, TikTok, LinkedIn. Somos pássaros enjaulados com acesso irrestrito ao céu — desde que nunca se atrevam a voar de verdade.

A depressão moderna é uma flor que brota no concreto da produtividade. Ela nasce quando se troca o tempo do sol pelo tempo do despertador, o ritmo das marés pelo compasso histérico dos e-mails. O corpo quer dormir com a lua, mas é acordado por alarmes que soam como gritos de guerra. Quer andar descalço na terra, mas tropeça em calendários. E assim, as horas não são mais sentidas: são medidas, vendidas e descartadas como se o tempo fosse lixo reciclável.

A vida natural morreu. Foi sepultada entre o vibrar de uma notificação e o próximo update do sistema operacional. O homem, essa criatura que um dia assava peixe à beira do rio e contava histórias ao redor do fogo, agora se alimenta de pixels e conversa com assistentes virtuais. Sua alma se tornou uma planilha. Sua infância virou um backup. Sua tristeza, uma falha no sistema.

E as relações humanas? Ah, essas... foram vendidas em pacotes de dados. Transformadas em emojis, likes e mensagens automáticas. O "bom dia" virou corrente de WhatsApp, o "eu te amo" resposta de reação. Nada mais é profundo. Tudo é performance. A amizade é um follow. O amor, um “match”. A empatia, um filtro. Vivemos cercados de rostos, mas sozinhos como náufragos em um mar de selfies.

A família? Essa entidade mística do passado foi desmontada como um velho brinquedo. O pai virou um código QR na porta da geladeira. A mãe, um número bloqueado nos momentos de crise. As refeições familiares, agora são coletâneas de silêncio acompanhadas por reality shows. Cada um em seu quarto, cada quarto um reino. Cada reino, uma prisão dourada. A casa virou hotel. O lar senha de Wi-Fi.

E quando tudo falha — como sempre falha — nos perguntamos o que está errado conosco. Por que a alegria não vem? Por que a angústia pesa como chumbo nas manhãs de segunda-feira? Mas é claro. Como poderíamos ser felizes num mundo onde ser humano virou defeito de fábrica?

A depressão é o bilhete de entrada para esse circo de horrores moderno. Ela chega sem batidas na porta, sem lenço nem documento. Traz nos olhos o reflexo das telas que nos sequestraram. Nos lábios, o gosto amargo do tempo que não vivemos. E no peito, o silêncio ensurdecedor de não saber mais por que se acorda.

Não, não é só "falta de Deus". Nem apenas um "desequilíbrio químico". A depressão é o nome clínico de um luto coletivo: o luto por tudo que perdemos sem perceber. Perdemos a pausa. Perdemos a contemplação. Perdemos o outro. E, por fim, perdemos a nós mesmos — pixel por pixel.

Por isso, se você perguntar qual é a causa da depressão, respondo com a sinceridade de quem desistiu de fingir otimismo: é o mundo. O mundo é depressivo. E nós somos seus reféns, tentando sorrir para a câmera enquanto afundamos lentamente como o Titanic — sem banda e acordes finais, mas com Wi-Fi conectado.

domingo, 18 de maio de 2025

Zona de conforto, areia movediça e sapos.

 

Andam dizendo por aí — com aquela autoridade de quem nunca te olhou nos olhos — que a zona de conforto é um lugar perigoso. Que é armadilha, ilusão, areia movediça da alma. Dizem com ares de guru: “Saia da zona de conforto, é lá fora que a vida acontece!” Como se a felicidade estivesse sempre na próxima esquina, e a gente fosse um cachorro sendo treinado com petiscos invisíveis.

Eu desconfio.

Desconfio de quem prega o desconforto como virtude. De quem vive vendendo o caos como oportunidade. Tem gente que acha que a paz dos outros é provocação. Gente que olha a sua rede estendida entre duas árvores e pensa: “hmmm... deve ser bom demais pra ele.” E é. E o incômodo nasce daí.

A verdade é que ninguém te convida a sair da zona de conforto pra te ver voar. Te convidam porque querem a janela que você tem. O tapete que já moldou seu pé. O cantinho que você forrou com tempo, feridas e pequenas vitórias silenciosas. Porque é mais fácil mandar o outro se reinventar do que construir a própria morada interior.

E aí entra a metáfora da vida como uma selva. Você já notou? Todo mundo quer te jogar no meio do mato, com faca nos dentes e coaching na orelha. Querem que você lute com leões, escale montanhas, medite em desertos — tudo isso com uma hashtag motivacional. Mas ninguém te pergunta se você queria, mesmo, era só cuidar do seu jardim.

E eu quero.

Quero um jardim cercado de inércia proposital, onde as flores brotam sem me cobrar performance. Quero uma zona de conforto com cheiro de pão quente e som de chuva fina. Onde os móveis têm a forma exata das minhas saudades e as paredes, a cor dos dias em que fui feliz sem saber.

Conforto não é preguiça. É trégua. É aquilo que a gente constrói depois de perder muito, cair feio e levantar torto, mas ainda assim levantar. Minha zona de conforto é cicatriz transformada em almofada. É chão limpo depois de muito tropeço. É meu território conquistado com pequenas guerras diárias: responder e-mails, engolir sapos, calar na hora certa, falar quando dói.

A cultura do desconforto virou uma indústria. E como toda indústria, lucra com a nossa insegurança. Te vendem uma crise como ponto de partida e um curso de 12 passos como salvação. Como naquele poema horroroso que era moda no início do Século XX: Mude, mas mude devagar. Pesquisa aí! É lindamente horroroso. Uma ode ao consumo.

Retomando...

Mas talvez, só talvez, o que você precisa é descansar. Respirar. Ficar. Cultivar raízes em vez de asas, pelo menos por um tempo.

Então, quando te disserem “sai da zona de conforto”, ouça com cuidado. Veja se não tem alguém estendendo uma toalha de piquenique na sua sombra. Veja se o conselho vem com uma segunda intenção: tomar o seu lugar, te vender uma viagem chata para um lugar chato cheio de gente chata com seus celulares e stories... ou isso ou simplesmente te ver vacilar, cair torto sem colchão. Duro e triste e sem irmãos... (Essa eu rimei de propósito, nem fez muito sentido, mas que fique aí...)

Porque eu, hoje, não saio. Hoje eu me abraço. Me cubro com meus silêncios e estendo minha rede imaginária.

Pode parecer pouco pra quem vive de adrenalina, mas pra mim é revolução.

Quero uma zona de conforto só minha — e bem delimitada. Com placas dizendo: “Não entre. Aqui mora alguém que já lutou demais.”

Quero me abraçar com os dois braços e ambas as mãos.

Estou farto de defender meu conforto de quem o chama de estagnação.

quinta-feira, 15 de maio de 2025

Universidades, Paulo Freire e projeto civilizatório.

 

Gosto da ideia de universidade. Gosto mesmo. Do conceito, da utopia, daquelas imagens de jovens embaixo de árvores lendo Foucault, dos cafés filosóficos, do grêmio estudantil barulhento, das calouradas que ainda sonham com revoluções. É bonito. Um sonho quase francês, quase sessentista, quase filme do Godard. Mas... também gosto da realidade. Gosto daquilo que funciona. Daquilo que entrega. Daquilo que, mesmo sem tanta poesia, faz diferença. Talvez por isso mesmo — por já ter acreditado em toda essa aura mágica — hoje eu defenda, com veemência e até um certo gosto azedo de escândalo, a privatização das universidades públicas. Sim. Eu disse isso. Pode parar de esticar o “chaaaaaato”.

Pois bem, privatize-se.

Falo assim mesmo, com essa ousadia provocadora de quem já viu muita tese, muita assembleia estudantil e pouca aula. Muita greve, pouco resultado. Muita ideologia, pouca inovação. E vejam bem, não sou contra a universidade pública por birra, por recalque ou por trauma de vestibular. Muito pelo contrário. Fiz pública. Fui lá, bati ponto, li Bakhtin, Marx e até Paulo Freire com certa empolgação. Comi no bandejão, me perdi nos corredores da Letras, da História, da Sociologia. E me encontrei também. Só que depois de um tempo, comecei a perguntar: pra quem mesmo é esse sonho? Quantos cabem nele?

A resposta: muito poucos.

A universidade pública no Brasil é um privilégio travestido de direito. Um luxo subsidiado por todos, mas acessado por uma elite que fez cursinho caro, teve bons professores desde a infância e aprendeu francês no ensino médio. A meritocracia do vestibular público é uma grande piada. Um vestibular democrático só é democrático quando parte de condições mínimas iguais — o que, sejamos honestos, é uma grande mentira por aqui.

Então vem o argumento do acesso universal ao ensino superior. Mas como? Com orçamento estagnado, prédios caindo aos pedaços e professores exauridos por anos de concursos mal pagos e políticas pedagógicas retrógradas? Não dá. O modelo atual é um Titanic bonito, afundando com elegância.

Agora imagina um sistema onde universidades públicas virem fundações autônomas, que cobrem de quem pode e isentam quem precisa. Que competem entre si pela qualidade do ensino, que atraem investimento privado, que se abrem para o mundo como Harvard, Oxford, qualquer coisa com “x” e “v” no nome que já deu certo em outros lugares. Onde o ensino superior não seja privilégio de quem nasceu no CEP certo, mas direito de quem quer e pode, com múltiplas portas de entrada, presenciais, híbridas, online, o raio que o parta.

Ah, mas aí vem o hipster acadêmico defender a universidade pública com unhas, dentes e palavras como “projeto civilizatório”. Uma beleza. Quase poético. Mas quem sustenta o sonho? O pedreiro que mal terminou o fundamental e paga imposto igualzinho? O camelô que nunca entrou num campus mas financia esse romance elitista travestido de justiça social?

Vamos parar de fingir. Privatizar não é vender. É repensar. É dar autonomia, responsabilidade e alternativas. É fazer caber mais gente, mais diversidade, mais escolha. É deixar de ser feudo ideológico para virar espaço plural, eficiente, justo.

Enfim, defendo a privatização como defendo meu direito de dizer que Bacurau é ruim sem ser chamado de fascista. Porque viver numa democracia é isso: reconhecer que a utopia é linda, mas não paga boleto. E que talvez o caminho para a justiça passe justamente por tirar o manto sagrado daquilo que virou clube exclusivo travestido de bem comum.

Dito isso, sigo acreditando na educação. Mas na real. Sem glamour, sem bandeira, sem autoengano.

Só a educação salva. Mas tem que funcionar.

terça-feira, 13 de maio de 2025

Noite adentro, pessoa afora.


Noite. Avenida. Néon. Asfalto. Passos. Passos. Passos. Espera. Sede. Fome. Vontade. Corpo. Vontade. Desejo. Rua. Gente. Música. Grave. Gritaria. Riso. Perfume. Olhar. Brilho. Gole. Copo. Outro gole. Vodca. Limão. Garganta. Ardência. Riso. Vontade. Esperança. Dança. Contato. Atrito. Mão. Quadril. Corpo. Pele. Cheiro. Palavra. Mentira. Beijo. Beijo. Beijo. Desvio. Celular. Sumiço. Barulho. Multidão. Luz. Copo. Gole. Tentativa. Erro. Recomeço. Olhar. Promessa. Gargalhada. Interesse. Copo. Gole. Intenção. Cigarro. Cinza. Tédio. Música. Grito. Ombro. Toque. Beijo. Beijo. Fim. Desculpa. Desculpa. Sumiu.

Copo. Gole. Copo. Gole. Copo. Gole. Passos. Rodopio. Queda. Riso. Gole. Náusea. Banheiro. Espelho. Boca borrada. Olheira. Rímel. Máscara. Farsa. Vontade. Solidão. Mais uma chance. Outro olhar. Outro copo. Outra pista. Outra pessoa. Mais promessas. Mais mentiras. Mais vontade. Mais cansaço. Mais álcool. Gole. Garganta. Coração. Esperança. Frustração. Sumiço. Vazio. Vazio. Vazio.

Chão. Piso. Sapato. Dor. Pé. Cansaço. Enjoo. Garganta. Vontade. Choro. Choro. Choro. Máscara. Riso falso. Voz. Palavras soltas. Nomes esquecidos. Tatuagem. História. Mentira. Copo. Gole. Luz. Flash. Música. Corpo. Calor. Tédio. Raiva. Saudade. De quê? De quem? Memória. Escuro. Banheiro. Azulejo. Respiração. Suor. Falta.

Porta. Ar. Frio. Silêncio. Madrugada. Esquina. Solidão. Mensagem. Lida. Ignorada. Espera. Espera. Espera. Nada. Ninguém. Metrô. Posto. Café. Sombra. Corpo. Tremor. Gole. Fim. Fim. Fim. Coração. Fissura. Ruína. Madrugada. Silêncio. Ruído. Cigarro. Cinza. Pulso. Vontade. Sede. Fim.

Caminho. Retorno. Amanhecer. Cinza. Rua vazia. Vitrine. Reflexo. Espelho. Cansaço. Olho. Vazio. Vazio. Vazio.

segunda-feira, 12 de maio de 2025

Silêncio, casas noturnas e garçons estressados.

 

Vinha pela rua ontem à noite — bairro boêmio, tradicional, onde já se ouviu muito samba, muito rock, muito grito apaixonado vindo de alguma mesa de bar — e o que encontrei foi silêncio. Um silêncio que não era paz, era ausência. Ausência de vida noturna, de vozes trocando segredos bêbados, de fila na porta da balada, de taxista com o braço pendurado no vidro esperando a próxima corrida.

A noite, pelo menos essa que a gente romantizava (eu romantizava), essa noite morreu.

Sumiram os bares cheios de gente rindo alto. Sumiram as boates (palavra de velho como eu, palavra já velha no meu tempo), retornando: boates com cheiro de suor e desejo.

Sumiram os DJs, os garçons estressados, as mulheres com salto na mão às quatro da manhã, os homens trôpegos procurando o número do Uber.

O noturno virou diurno — controlado, higienizado, domesticado. E sem aviso prévio. Acabou de uma hora pra outra, quase foi possível ver o esvanecer entre fumaça.

A culpa é do celular, talvez. Ou da exposição. Antigamente (outra palavra de velho), antigamente, a noite era o espaço da liberdade com prazo de validade: o que acontecia nela morria ali mesmo, enterrado ao nascer do sol. A balada era confessionário sem padre. Agora, há sempre alguém gravando. A dança virou performance, o beijo conteúdo, o deslize virou escândalo.

Não se vive a noite: se transmite. A transmissão mata a experiência. E querem que eu seja visto justo quando eu mais quero sumir?

Além disso, há o "esquenta", um ritual moderno de economia e de improviso. Fruto de um outro momento histórico. Sem magia ou poesia. Sem encanto.

Beber no posto, na frente da adega, no estacionamento do mercado. A balada como etapa opcional. A festa começando e terminando no asfalto.

As casas noturnas perderam receita, perderam público, perderam sentido. A entrada não paga a luz, o som, o segurança, o DJ. E então elas fecharam. Uma a uma. Como velhas senhoras cansadas de esperar por visitas que não vêm mais.

Nas periferias, a madrugada ainda barulha — mas não como uma celebração à vida, meio que uma ocupação forçada do espaço público.

Os "fluxos" tomam praças, avenidas, postos de gasolina, não como festas espontâneas, mas como eventos que muitas vezes têm por trás o financiamento do tráfico, a ausência do Estado e o abandono das políticas públicas.

O funk alto não embala sonhos, abafa o descanso dos trabalhadores. O litrão não celebra a juventude, embriaga a falta de perspectiva.

Longe de ser a noite romântica dos poetas e boêmios. É a noite do improviso imposto, do barulho sem limites, da infância exposta à violência e da adolescência entregue ao risco. E quem reclama é acusado de elitismo, moralismo — como se desejar silêncio, segurança e dignidade fosse um privilégio.

Talvez a noite não tenha mudado de endereço. Talvez ela tenha sido corrompida, sequestrada. Nos bairros centrais, foi domesticada. Nas bordas, foi desvirtuada. A boemia que conhecíamos está em coma, sim — mas o que nasceu em seu lugar, nas periferias, está longe de ser uma alternativa saudável. É uma noite que adoece, que esgota, que espalha medo em vez de encontro.

A verdadeira noite, aquela que instiga, que pulsa com arte, que convida ao improviso sem violência, morreu. E, nesse vazio, cada madrugada parece um grito sem escuta.

sábado, 10 de maio de 2025

A menina, a praça, o banco...

 

Vinha pela rua e vi uma adolescente sozinha, chorando num banco de praça.

Quase não acreditei no que via. Pensei até que fosse uma performance artística, uma encenação para TikTok, algum protesto silencioso contra o aquecimento global ou o preço do sorvete. Mas não: era só tristeza mesmo. Aquela coisa antiga, sem patrocínio, sem wi-fi e sem filtro.

O curioso é que o que me chamou a atenção não foi o choro. Foi o contexto. Uma adolescente. Um banco de praça. O choro. Três coisas que eu não via havia muito tempo. Achei que tinham sido extintas — ou, na melhor das hipóteses, privatizadas.

Hoje em dia adolescente não chora em praça, chora no story. E banco de praça virou coisa de arquivo público, item de museu. Adolescente moderno tem ansiedade, mas não tem tempo. Tem depressão, mas não tem sossego. Quando muito, manda uma indireta no Twitter e vai dormir com fone de ouvido. Chorar em praça pública, às quatro da tarde, é quase um escândalo. Uma imoralidade. Como diria Nelson Rodrigues, é coisa de gente que perdeu a compostura. E quem perde a compostura em 2025, num mundo regido por algoritmos e remédios tarja preta, vira ameaça à ordem pública.

Fiquei ali, olhando de longe, meio constrangido com a honestidade daquela dor. Uma dor sem explicação, sem legenda, sem hashtags. Uma dor nua. Que não pedia curtida, não chamava atenção. Que apenas existia, desprotegida, no meio da cidade.

A menina devia ter uns quinze anos, talvez menos. Usava mochila, coturno, cabelo tingido. Tinha o rosto afundado nas mãos. Chorava com o corpo inteiro, daquele jeito que só os adolescentes e os poetas sabem. Com toda a intensidade de quem ainda não aprendeu a se proteger do mundo.

Pensei em me aproximar. Dizer qualquer coisa. “Vai passar”, talvez. Mas não fui. Não por covardia — embora também —, mas por respeito. Porque aquele choro não era meu. Era dela. E há dores que não se compartilham. Só se testemunham.

Fui embora com uma estranha esperança no peito.

Porque se ainda existem adolescentes que choram em bancos de praça, talvez ainda haja salvação para o mundo. Talvez nem tudo tenha sido engolido pelo cinismo, pela pressa, pela conveniência. Talvez, em algum canto, ainda exista espaço para o escândalo do sentimento. Para a vergonha de existir.

E, pensando bem, talvez seja isso que está nos faltando: gente que chore na rua. Que se exponha. Que se entregue. Que transforme a praça em palco de humanidade crua. Porque esse mundo de emojis tristes e sorrisos em aplicativo está cada vez mais insuportável de tão controlado. De tão irreal.

Fiquei imaginando quantas vezes eu mesmo já quis sentar num banco e desabar. Quantas vezes precisei me esconder no banheiro do trabalho, no carro, no travesseiro. Por medo. Por vergonha. Por costume. E aquela menina, sem saber, me lembrou que sentir ainda é permitido. Que sofrer ainda é humano. Que chorar ainda é uma forma de resistência.

Não sei por que ela chorava. Talvez por amor. Talvez por medo. Talvez por nada. Adolescente chora por um olhar torto, por uma mensagem não respondida, por um pai ausente, por um futuro incerto. E quem somos nós para julgar? Se eu, com todos os meus boletos pagos e crises de meia-idade bem ensaiadas, ainda choro escondido de vez em quando?

Aquela menina, sem saber, escreveu uma crônica. Não com palavras — com lágrimas. E eu, leitor distraído, fui privilegiado por tê-la lido ao vivo.

E voltei pra casa com vontade de escrever. Porque às vezes tudo o que a crônica precisa é de um banco, uma tarde qualquer e uma alma à flor da pele. O resto, o resto é só o mundo tentando parecer forte.

sexta-feira, 9 de maio de 2025

Crônicas, gritos e influencers.

 

Vivemos num tempo de manchetes, não de margens. Um tempo onde tudo precisa ser urgente, categórico, viral. Um tempo que exige posturas claras, respostas prontas, posicionamentos sólidos, emojis precisos. Um tempo onde qualquer coisa que não grite é considerada irrelevante. E talvez por isso, a crônica — essa forma pequena, lenta e profundamente humana de se pensar o mundo — esteja morrendo. E junto com ela, morrem os cronistas.

Mas o que é um cronista, afinal?

É aquele que caminha pelas beiradas. Que olha o que ninguém olha. Que se detém onde todos passam correndo. Que transforma um domingo nublado num tratado sobre a solidão. Que vê no canto de uma sala a metáfora de um país inteiro. O cronista não quer convencer. Quer compartilhar. Não quer gritar. Quer sussurrar — e isso é quase um crime num tempo de microfones e megafones.

Rubem Alves, por exemplo, escrevia crônicas como quem escreve cartas para um amigo íntimo. Ele falava de jardins, de filhos, de saudade e morte — e, de alguma forma, nos fazia pensar sobre Deus, política e educação sem levantar um dedo. Rubem era mestre em fazer a alma respirar sem precisar levantar bandeira. Hoje, ninguém mais quer respirar. Querem vencer.

Nelson Rodrigues, outro cronista dos grandes, nos mostrou que o cotidiano é uma ópera grotesca. Suas crônicas pareciam pequenos espelhos rachados, mostrando o ridículo da nossa moral e o absurdo dos nossos vícios. Falava de adultérios, de futebol, de traições de bairro como quem desvela os bastidores de uma tragédia grega encenada na Zona Sul do Rio. Nelson sabia que a crônica, mesmo quando fala de um jogo do Fluminense, está falando do abismo.

Drummond, por sua vez, levava a crônica para o campo da delicadeza. Um cronista-poeta. Viu na fila do banco uma pequena epifania, num carteiro uma metáfora da espera, numa carta amassada a história de um país. Sua crônica era feita de silêncios e pontuações. De espaço em branco. De hesitação. Coisa que hoje é confundida com fraqueza — mas que, de fato, é sensibilidade.

E o mundo, este nosso mundo de agora, não precisa de mais certezas. Precisa de hesitação. De dúvida. De espaço. De crônica.

A crônica é o único gênero literário que não exige enredo, clímax, desfecho. Não exige sequer que se fale de algo importante. Pode ser sobre uma xícara, uma vizinha, um homem que espera um ônibus. E é exatamente aí que mora sua força: na capacidade de dar sentido àquilo que, no noticiário ou nas redes sociais, seria descartado como insignificante.

Crônicas não mudam o mundo com discursos. Mudam com olhares.

E por isso fazem tanta falta.

Vivemos hoje mergulhados numa avalanche de opiniões. Todo mundo quer ser analista político, jurado do Big Brother, especialista em guerras internacionais e em crises existenciais. Todo mundo quer estar certo. Todo mundo quer ser ouvido. Mas quase ninguém quer escutar. Quase ninguém quer observar.

E o cronista é, acima de tudo, um observador.

Ele anota o que escorre pelas frestas. Ele percebe o que está morrendo devagar — não em explosões, mas em silêncios. Ele escreve sobre o avô que não sabe usar o WhatsApp, sobre a moça que chorou no ônibus, sobre o cheiro de bolo que invadiu a rua e trouxe uma lembrança da infância. E nesse gesto aparentemente pequeno, ele nos salva um pouco.

Porque num mundo tão cheio de fatos, às vezes o que mais falta é justamente isso: sentimento.

O cronista não resolve o mundo. Mas revela. Ilumina. E às vezes isso basta.

Num tempo em que todos querem ser influencers, talvez o que precisemos mesmo é de cronistas. De gente disposta a perder tempo escrevendo sobre o tempo que se perdeu. De gente disposta a ver o lado de dentro. A dar voz ao que não aparece. A registrar, com o toque de quem ama, as dores e as doçuras de ser humano.

Porque o mundo continua a gritar. E quem não tiver uma crônica para respirar, vai se afogar nesse barulho.