quarta-feira, 30 de julho de 2025

Não quero ser americano, quero ser americano

    Não quero ser americano. Essa frase repete-se em minha cabeça feito um mantra torto, um mantra que se engasga entre o orgulho ferido e a ironia sufocante. Não quero ser americano, porque ser americano virou um espelho trincado onde vejo refletidos os horrores e as utopias de um país que se autoeleva a modelo do mundo — e que, ao mesmo tempo, serve de laboratório para os piores experimentos da humanidade.

    Mas, também quero ser americano.

    Quero ser americano como quem quer ser ator em Hollywood, mas sem perder a alma na troca pelo roteiro raso e o clichê. Quero ser americano para beber o café preto da morning routine, enquanto o despertador toca o hino de uma rotina que não me pertence, mas que me fascina. Quero ser americano para entender aquela mistura louca de liberdade e consumo, para experimentar o sonho do carro na garagem, da casa com gramado, do iPhone na mão — e sentir o vazio que essa perfeição fabricada deixa nas entranhas.

    Não quero ser americano, pois seria admitir a colonização das ideias, a padronização dos desejos, a uniformização do mundo em fast food, reality shows e falsas promessas de felicidade em cápsulas vendidas no Walmart da vida. Não quero ser americano porque ser americano é, muitas vezes, ser uma marionete cujos fios se estendem até Wall Street, passando pela indústria cultural que vende ilusões em série. É ser engolido pelo monstro que chama a si mesmo de “excepcional”.

    Mas quero ser americano para sentir aquela febre da reinvenção constante, do recomeço na rua que nunca dorme, do melting pot onde tudo é misturado — às vezes com violência, outras com esperança. Quero ser americano para testemunhar a força brutal da diversidade, onde o horror do racismo convive com a poesia das periferias que dançam e protestam. Quero ser americano para tentar entender o paradoxo do país que derruba muros e constrói prisões, que exporta democracia enquanto internaliza segregação.

    Não quero ser americano porque a América, aquela América que explode na tela com seus símbolos de glória e decadência, também é um lembrete cruel daquilo que não quero ser: um cidadão anestesiado pelo medo, pelo consumo desenfreado, pela alienação travestida de entretenimento. Não quero ser americano para não esquecer das crianças que vivem sem esperança em guetos invisíveis, dos soldados que voltam sem alma, dos sonhos que morrem no trânsito da metrópole.

    Mas quero ser americano para viver a contradição de um lugar que é, ao mesmo tempo, berço e sepultura de tantas revoluções, o terreno fértil de tantas utopias e a cova rasa de tantos fracassos. Quero ser americano para tentar encontrar ali, entre as ruínas e os arranha-céus, um sentido para a própria humanidade — mesmo que esse sentido venha embrulhado em ironia, cinismo e desesperança.

    Não quero ser americano, porque isso implicaria desistir da minha identidade, das minhas raízes enraizadas no chão de outro continente, da minha língua que se embaraça nas palavras que nunca se traduzem por completo. Não quero ser americano porque seria trair o que há de mais genuíno em mim, aquela resistência silenciosa contra a homogeneização, contra o apagamento das diferenças.

    Mas quero ser americano para beber da fonte de um país que, mesmo em suas contradições, conseguiu criar músicas, filmes, literaturas que mexem com a alma, que dizem verdades dolorosas e que provocam mudanças — mesmo que essas mudanças sejam lentas e incompletas. Quero ser americano para aprender com os erros, para não repetir a estupidez dos que fecham os olhos para a própria história, para me inspirar na luta diária contra o que é injusto e opressor.

    Não quero ser americano, porque o sonho americano me parece hoje uma miragem fria, um truque barato de ilusionista, uma promessa vazia vendida em prédios de vidro. Não quero ser americano porque sei que o custo desse sonho é alto demais: vidas, dignidade, liberdade. Porque o sonho americano é também o pesadelo de muitos.

    Mas quero ser americano para sonhar um sonho que não seja só deles, para tomar emprestado um pouco da coragem de seus marginalizados, para me embrenhar nas ruas que gritam por justiça e, quem sabe, para reencontrar a humanidade perdida num mapa de consumismo e desesperança.

    Não quero ser americano, mas quero ser americano. Quero ser esse paradoxo ambulante, essa contradição ambulante, porque no fundo, ser americano — ou não ser — é antes de tudo ser humano. E ser humano hoje é navegar entre o que se rejeita e o que se deseja, entre a crítica ácida e o desejo inocente, entre o medo e a esperança.

    No fim, ser americano é querer ser algo que não existe, é buscar uma identidade em pedaços de um sonho que nunca se realizou por completo — e talvez essa busca desesperada seja o que nos une, nos diferencia e, ao mesmo tempo, nos condena.

    Não quero ser americano, quero ser americano. E nessa confusão toda, talvez eu me encontre — ou me perca para sempre.

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