Antigamente, a censura usava uniforme e batia à porta de madrugada. Hoje, vem por e-mail, com despacho eletrônico assinado por ministro do Supremo.
Trocamos o porrete pela liminar, o pau de arara pela suspensão de contas, o exílio pelo cancelamento judicial. Mudaram as ferramentas, mas o projeto é o mesmo: silenciar.
No Brasil de 2025, o que se pretende chamar de democracia tem dificuldade para sustentar o próprio nome.
O Estado de Direito foi reduzido a um palco onde um só ator improvisa falas e distribui papéis: o herói, o vilão, o inimigo da pátria.
Alexandre de Moraes, uma espécie de Rasputin de toga, encarna o paradoxo: combate o "autoritarismo" com medidas autoritárias, reprime "discursos de ódio" com decisões de ódio à divergência, protege a Constituição ignorando as suas cláusulas pétreas.
É o velho truque das ditaduras em qualquer lugar do mundo em qualquer período histórico: prender em nome da liberdade, censurar em nome da verdade, calar em nome da paz.
A ironia é que, nesta nova encenação, os antigos perseguidos tornaram-se cúmplices. E quem cantou "alegria, alegria" se cala — ou aplaude — diante de ordens judiciais que fecham bocas e plataformas. Os filhos da Tropicália dançam agora a valsa do conformismo institucional.
"Ditadura nunca mais", gritaram nas Diretas Já. Mas parece que esqueceram de acrescentar: “inclusive a de toga”.
É verdade que os tempos mudaram. O golpe não precisa de tanques como outrora, mas de termos técnicos: "desinformação", "intervenção excepcional", "proteção institucional". O inimigo é vago, o risco imenso, o prazo indeterminado.
E a exceção se torna regra, a regra uma relíquia.
A sanção americana pela Lei Magnitsky contra Moraes não é um capricho de um governo estrangeiro. É um aviso — desses que só escutam os que ainda não perderam o senso crítico.
Remoções de conteúdo, perseguições a jornalistas, bloqueios de plataformas como a Rumble, detenções sem julgamento prévio.
Não se trata mais de combater crimes, mas de controlar narrativas.
E quem ousa dizer o contrário sofre processos, censuras, bloqueios ou difamação. A crítica virou crime; a dúvida, evidência de culpa.
Dizia-se que o Brasil não era para amadores. Hoje, talvez nem para profissionais. A democracia, uma senhora cansada de ser traída, transformou-se em adereço — uma palavra para discursos pomposos, uma fantasia para tribunais com mais vaidade que limite.
Velhos, novos e novíssimos baianos, assim como tantos outros que um dia desafinaram para provocar o sistema, se afinam ao coro oficial. Alguns por medo, talvez, outros por conveniência, e alguns — os piores — por acreditar mesmo que existe liberdade em se calar diante do arbítrio, desde que o arbítrio use gravata, fale bonito e pague o dízimo estatal em verba pública direcionada a filmes que ninguém vai assistir, livros que ninguém vai ler, peças teatrais que falam do próprio umbigo e outros tantos projetos que não interessam a ninguém, mas que mantem a classe artística domesticada porque, enfim, é preciso produzir cultura e também é preciso pagar a fatura do cartão.
O que restou da liberdade de expressão é um campo minado: qualquer passo em falso pode ser “antidemocrático”, “golpista”, “extremista”.
O direito de errar, de ser tolo, de falar bobagem, de pensar diferente — tudo isso foi jogado na fogueira moral dos justos autoproclamados. E o povo? O povo continua no ônibus, na frente das adegas, no caminho do culto, no batuque dos tambores, perto demais das capitais, longe demais das decisões sobre suas próprias vidas.
O Brasil nunca teve muito apreço por liberdade. Preferimos o jeitinho ao debate, a autoridade ao argumento, o medo à responsabilidade. Agora, fingimos que a censura é uma vacina — quando, na verdade, é o vírus que lentamente paralisa a democracia por dentro.
O que vem depois? Talvez o silêncio absoluto. A ausência de debate, de contradição, de ruído. Um país ordenado, limpo, domesticado.
Uma paz de cemitério.
Mas há quem insista. Quem escreva, cante ou grite. Quem seja preso por isso.
Ainda há?
E talvez, num futuro qualquer, redescubramos que liberdade não se dá — se conquista. E que um país onde só um lado pode falar é, por definição, doente.
Até lá, seguimos. Alguns gritam, outros calam. E muitos fingem que não veem.
É mais fácil pôr o rabo entre as pernas e calar que as pernas em marcha e seguir.
E como um velho compositor baiano me dizia:
"Enquanto os homens exercem
Seus podres poderes
Motos e fuscas avançam
Os sinais vermelhos
E perdem os verdes
Somos uns boçais
Queria querer gritar
Setecentas mil vezes
Como são lindos
Como são lindos os burgueses
E os japoneses
Mas tudo é muito mais
Será que nunca faremos senão confirmar
A incompetência da América católica
Que sempre precisará de ridículos tiranos
Será, será, que será?
Que será, que será?
Será que esta minha estúpida retórica
Terá que soar, terá que se ouvir
Por mais zil anos
Enquanto os homens exercem
Seus podres poderes
Índios e padres e bichas
Negros e mulheres
E adolescentes
Fazem o carnaval
Queria querer cantar afinado com eles
Silenciar em respeito ao seu transe num êxtase
Ser indecente
Mas tudo é muito mau
Ou então cada paisano e cada capataz
Com sua burrice fará jorrar sangue demais
Nos pantanais, nas cidades
Caatingas e nos gerais
Será que apenas os hermetismos pascoais
E os tons, os mil tons
Seus sons e seus dons geniais
Nos salvam, nos salvarão
Dessas trevas e nada mais
Enquanto os homens exercem
Seus podres poderes
Morrer e matar de fome
De raiva e de sede
São tantas vezes
Gestos naturais
Eu quero aproximar o meu cantar vagabundo
Daqueles que velam pela alegria do mundo
Indo e mais fundo
Tins e bens e tais
Será que nunca faremos senão confirmar
Na incompetência da América católica
Que sempre precisará de ridículos tiranos
Será, será, que será?
Que será, que será?
Será que essa minha estúpida retórica
Terá que soar, terá que se ouvir
Por mais zil anos
Ou então cada paisano e cada capataz
Com sua burrice fará jorrar sangue demais
Nos pantanais, nas cidades
Caatingas e nos gerais
Será que apenas
Os hermetismos pascoais
E os tons, os mil tons
Seus sons e seus dons geniais
Nos salvam, nos salvarão
Dessas trevas e nada mais
Enquanto os homens
Exercem seus podres poderes
Morrer e matar de fome
De raiva e de sede
São tantas vezes
Gestos naturais
Eu quero aproximar
O meu cantar vagabundo
Daqueles que velam
Pela alegria do mundo
Indo mais fundo
Tins e bens e tais!
Indo mais fundo
Tins e bens e tais!
Indo mais fundo
Tins e bens e tais!"
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