quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

A cicatriz

          Ela subiu a escada pouco confiante, pediu para olhar algumas figuras assim que chegou, um pouco insegura escolheu o desenho de um golfinho e não sem segurança escolheu o lugar do corpo onde ficaria cravada aquela marca de sua juventude, de sua personalidade: a sua tatuagem.
          Dor, medo, preconceito, insegurança.
         Nada a impediria. Tinha em si a segurança dos generais, a coragem dos capitães e a convicção que só ela possuía.
         Seria um golfinho e seria no seio. No direito. Somente ela e quem ela escolhesse poderia ver ou tocar seu desenho, sua imagem, sua tatuagem.
          Ser surpreendente: olhos de recato, coração aos pulos, prenhe de vontade e volúpia, um oceano a ser navegado por outro corpo.
         Aguentou a dor sem reclamar e reclamando. Doeu, mas estava definitivamente em seu seio a cicatriz voluntária que faria dela não um ser  feliz, talvez um pouco mais realizado. Não saberia explicar e nem eu tão pouco pensar sobre o que fizera. Estava satisfeita com o desenho, e plena de alegria foi
pra casa aproveitar o restante da noite dormindo.
         Acordou, sorriu para o teto e passou a mão pelo corpo. Não sentiu no seio dor alguma, não sentiu no lugar a tatuagem, de fato o golfinho sumiu do seio  e após algumas investigações  foi descoberto em sua perna esquerda.
          Por incrível que pareça não deu muita importância ao sucedido, foi para o trabalho, quando voltou pra casa lembrou-se da tatuagem e verificou o seio, a tatuagem se encontrava na perna. Não pensou ainda  no assunto e após um banho, alguns telefonemas, um filme na TV, foi dormir. Ao acordar sentiu um formigamento nas costas, a tatuagem estava lá.
         Percebeu então, como numa epifania, o que se sucedia em seu corpo: tinha uma tatuagem viva. Era um desenho que escolhia o lugar onde acordaria.
          Estava hoje em suas costas, mas acordou no dia seguinte em seu braço canhoto.
          Acordou em sua nuca certa feita,  estampado em seu rosto numa quinta-feira, neste dia faltou ao trabalho, não teria como explicar um golfinho na face, preferiu o recolhimento e sozinha em casa ocorreu algo sublime e mágico, a tatuagem moveu-se à luz de seus olhos.
          Foi em frente ao espelho que viu o golfinho dar um pulo e se alojar entre seus seios, bem no meio do peito. Teve medo, mas sem nada entender continuou sem entender nada. Nua estava e assim começou a dançar pela casa. Ligou a música no máximo e num transe solitário e sensual passou a seguir
alguns passos regidos pelo seu instinto de mulher puramente fêmea.
         Mexia-se cambaleando, parecia cair num jogar e mover de braços, mas não era isso, quando sentia mover-se para um lado era para o outro que ia e foi isso e vice-versa até que começou a brilhar em seu peito, algo parecido com uma luz, uma estrela, um cálice, um golfinho.
         O animal saltou e passou a fazer parte daquela sensual dança. Virava e vibrava como que alado. Saltava para fora e para dentro de seu corpo.
         Mergulhava e sorria como um verdadeiro habitante dos mares. Aquele momento durou muitos anos e apenas alguns segundos, um século talvez. Nenhum dos dois se cansava do balé que os tornavam únicos e apartados.
         Eram  formas de vida ainda não catalogadas, formas que precisavam um do outro para continuar existindo.
          Acordou, não sabia dizer por quanto tempo dormiu, mas ao despertar procurou nos seios, nas pernas, braços, costas, mãos, pés e nada. Nada.
          Achou que não o havia procurado bem e tornou a mexer e esmiuçar o próprio corpo em busca do desenho e novamente nada.
          O pensamento de que tudo fora um sonho passara por sua cabeça, mas a percepção de realidade ainda se encontrava intacta em si, sabia que vivera tudo, lembrava-se do cheiro, do calor, os mergulhos. Lembrava-se da primeira vez que a tatuagem se movera, da segunda e de cada curva visitada
por sua cicatriz. Não seria com facilidade que entregaria sua experiência mais maravilhosa e realizadora ao campo do abstrato. Vivera algo concreto e real. Surpreendentemente real.
          Foi ao tatuador e lá expôs o sucedido, não teve os créditos deste e pediu uma nova tatuagem, um novo desenho, o mesmo; outro. Queria sentir tudo novamente, a mesma intensidade, a mesma sensação, o mesmo poder e volúpia. Tudo com a mesma força e mística.
          O tatuador se assustou com toda aquela história e recusou-se fazer um novo desenho. Sem coragem de procurar outro desenhista rumou para casa e foi ainda no caminho que sentiu algo bater de maneira estranha em seu peito, um quê de força e dor que reconheceu no mesmo instante.
          Correu desesperadamente para casa com a dor aumentando, entrou sentindo algo tomar conta de si e controlar seus movimentos, arrancou todas as roupas e nua percebeu um emaranhado de golfinhos a nadar por todo seu corpo e tomá-la de assalto, fazendo dela seu oceano.
          Era infinita a dor que sentia, seu corpo povoado por centenas, milhares, milhões de tatuagens, bilhões. Variadas formas de vida marinha: golfinhos, tubarões, baleias, peixes simples, ornamentais, peixes-espinhos lhe furavam o corpo, cavalos marinhos cavalgam-na, um maremoto formou-se em seu baixo ventre, uma tormenta matou dois surfistas que buscavam domar as ondas de seus seios, em suas sobrancelhas oito barcos naufragados, em seus olhos um arquipélago inexplorado, em seu sexo todo um ecossistema revelador da criação do universo. Sereias hipnotizavam marinheiros nas curvas de suas nádegas, um suicida se atirava em uma das baías de seu braço, um náufrago numa jangada alcançava as portas de seu coração. Caminhava por seu cérebro o primeiro dos golfinhos: origem daquela história, navegava feliz por todo o corpo: dos cabelos à raiz dos pés, dos dedos das mãos ao gosto de sua língua.
          Foi então que sentiu um poder maior subir por sua espinha, tomar conta de seu coração, pulmão, ventre, útero e pressioná-la de dentro para fora fazendo cada vez mais força, cada vez mais força, cada vez mais força, até que num grito ela explodiu e seus pedaços se espalharam por todo o infinito transformando-a
num novo e rico oceano. 
(do livro: A divina tragicomédia humana de  Mauro Marcel)

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