domingo, 20 de janeiro de 2013

Os amputados


Temos de estar preparados. Sempre. Sempre preparados para o dia em que nos amputarão os braços.
<<Não poderemos mais abraçar, pegar, escrever, tocar, ajudar.>>
No dia em que eles forem amputados nos darão pares postiços de outros braços. Diferentes dos que possuímos. ”Nunca serão os mesmos”.
Temos de nos preparar para o dia em que amputarem nossas pernas. Preparar-nos para o dia em que pernas, joelhos, pés e dedos sejam apenas mais uma lembrança. O dia em que não mais andaremos, não mais correremos, não mais dançaremos...
... talvez apenas uma de nossas pernas seja amputada, ou uma de cada vez. Mas não pense que ficará eternamente com elas; um dia a vida as amputará. Uma a uma ou o par. Ficaremos mancos ou aleijados.
Seremos amputados.
Preparar-se é preciso para o dia em que a vida nos amputará os olhos. Ficaremos cegos e se coragem tivermos de cair, cairemos. Não haverá um único lugar seguro, qualquer paragem será um quarto escuro.
Talvez juntos sejam amputados braços, pernas e olhos. Ou um por vez. Mas não importa como ou quando. Amputados serão. 
Pares de olhos postiços nos serão dados, joelhos artificiais nos serão implantados, tornozelos feitos do mais puro material sintético; material que nos possibilitará vários e diversos movimentos diferentes - artificiais.
Vamos nos preparar para o dia em que nossos ouvidos sejam amputados de nossas orelhas, os sons serão todos o mesmo, o mais infinito barulho, o mais obtuso silêncio. Porque quando este dia chegar não nos surpreenderemos caso o som de ruídos de tiros, sirenes policiais, bombas, minas terrestres e gritos infantis não nos assustem.
Vamos nos preparar para este dia. Sem rezar. Sem meditar. Simplesmente esperando.
Esperando o dia em que nos colocarão também ouvidos postiços, juntos dos olhos postiços, das pernas postiças, dos joelhos, dos pés, dos braços, das mãos, dos dedos...
Vamos nos preparar para uma vida em que mesmo amputados possamos usufruir o conforto digno, de uma vida digna.
-Em um mundo digno.
Amputados nossos dentes, dentaduras serão colocadas.
Se amputado for o coração, um outro melhor e mais eficiente será posto em seu lugar. Um coração que saiba o verdadeiro peso de cada atitude, de cada ser, de cada coisa.
Um coração novinho. Batendo num peito amputado. Que toque na hora de trabalhar, fazendo-nos levantar, que avise a hora de dormir, que nos impedirá de qualquer excesso, existencial e/ou financeiro.
Que bata forte. Que bata por muito tempo.
Um coração artificial que através de artérias artificiais levem sangue para os demais membros artificiais de nosso corpo: dedos, braços, pernas, joelhos, cotovelos, tornozelos, olhos...
-Postiços.
Temos de nos preparar porque um dia a vida há de nos arrancar até os cabelos, e novos outros terão de ser postos no lugar.
Temos de ter sempre unhas falsas em nossos bolsos para o caso da amputação começar pelas pontas dos dedos.
Temos de, sempre que tivermos algum tempinho sobrando, lembrar de ensaiar nosso sorriso sem dentes. Porque um dia não os teremos mais.
Um dia nossas línguas serão amputadas e as palavras calarão em nossas bocas. Nossas preces, nossos gritos, nossas juras de amor, nossas promessas, nossas frases sem sentido, o beijo de língua na pessoa amada, o mesmo beijo de língua em quem não se ama, o gosto agradável e simples de uma bala de hortelã, o forte e desejo sabor de uma fruta. Nossas línguas cessarão seu trabalho e talvez uma outra será posta em seu lugar. Uma única língua. Que sinta apenas um único sabor, que beije uma única boca, que diga uma única mentira, uma única verdade, um único idioma: sabor, beijo, mentira, verdade e idioma postiços.
O tempo passa e dia a dia amputa nossas vidas.
Vivemos todos na juventude amputada de nossos pais.
Vamos nos preparar, mas sem alarde para quando enfim a vida nos ampute o tempo. A vida nos ampute a vida. O tempo nos ampute o tempo.
(Publicado pela primeira vez no livro "A divina tragicomédia humana" de Mauro Marcel)

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