terça-feira, 8 de janeiro de 2013

A divina tragicomédia humana



O que fazer depois das leituras obrigatórias?
Depois de discutir filosofia e escutar todas as músicas?
 
Foi às festas
Compareceu às reuniões sociais
Alegrou-se ao pôr-do-sol
E embebedou-se de todas as formas de felicidade.

O que você faz depois que o paraíso resulta inútil?

Quando não há mais lugares inéditos
Pessoas inéditas
Poemas e poetas.
           
Quando os navios naufragam sem partir
E não precisa mais voltar ou se iludir.

O que fazer quando o amor não é mais Amor?
Sua cidade não é a mesma?
Sua casa não é a mesma,
Você não é o mesmo.

O que você faz quando todos os lados da cama são o mesmo lado
E todas as camas a mesma cama.
O que fazer depois que a calma e a pressa resultam inúteis?

Como agir quando os ídolos se quebram,
Os mitos descobrem-se mitos,
E não há religião alguma em que confiar?

O que você faz quando a ciência não abre mais horizontes?
Quando a arte não os abre mais.

Quando tudo é ópio ou dor,
Quando nem se é espinho nem flor.
Quando é tempo de pedras, musgo, atrofiação.

O que você faz depois de tudo isso?

Depois de olhar no espelho e descobrir outra pessoa.
De ir ao jardim e não ver flores.
Ler seus poemas e não ver poesia.
Encarar sua vida e não ver vida.

Depois de pular e não encontrar o teto.
Procurar e não ter ninguém por perto.
Fazer o errado sabendo o que é certo.
Depois de ir torto num caminho reto.

Todas as janelas estão fechadas
E não há portas por onde passar.
Você procura a claustrofobia, mas ela o abandonou.
Você jogou e perdeu
Perdeu, mas jogou.
 
O que fazer depois do desespero?
Da esperança – que é o desespero sem nenhuma esperança.
O que você faz depois do parto?
Depois de estar farto de falsas lembranças.

Depois de beber os artificiais
Provar dos corantes, no seu paladar os acidulantes
Esvaziar os instantes.
Decorar sua casa com duendes,
Bruxos, pirâmides.
Queimar velas, incensos,
Untar-se com unguentos,
Beber água benta.
E ainda ser o mesmo
Depois de descobrir as mentiras das verdades
As verdades nas mentiras
E de desistir de entender o mundo nessas condições.
Depois de ver discos voadores falsificados
O Walt Disney congelado
Tocar em sangue alheio coagulado
Ouvir tiros no quarto ao lado
Um filho abortado
Ser abduzido
E logo após esquecido
Ser lembrado.
O que você faz depois de cessarem os abraços?
Romperem-se os laços
Secarem os lagos,
E naufragarem os barcos?

Você leu Goethe
E entre Fausto e Mefistófeles se viu neste.

Em Shakespeare foi Iago.
Em Jó o Diabo.

Suas asas estão mortas para a vida
Como voará agora?
Com os dentes espalhados já não pode morder
Seu dedo amputado já não acusa.

¿O coração ainda pulsa?

O que fazer depois de beijar viúvas?
Constituir família
Educar os filhos
Resumir-se
Prostituir-se.

Agora que sabe ser
O resumo do resumo do resumo de uma frase.

O que fazer depois daquele porre?
Sempre estará vivo?
Um dia morre?

Vê a chuva cair
O avião passar
O filme entreter
 
E ainda é você.

Acreditando em anjos
Entrevistando espíritos
E sem casa só quer onde encostar.

Depois de dormir...
Sonha?
Acorda?
Desperta.

E ainda é o mesmo.
Morrendo pelas ruas em um dia chuvoso
Marcando o tempo no pulso.

No seu coração bate o mundo
Aos olhos: tudo.

O que fazer agora que sabe e é impossível esquecer?
Agora que conhece a verdade e ela não o libertou.

Busca um sentido
Um amigo
Num peito aberto em flor.

Procura um mundo em tudo
E em tudo o encontro com a dor.

2 comentários:

  1. Grande escritor Mauro Marcel, que bom que "A Divina Tragicomédia Humana" se reitera em blog, verso e prosa...Abraço!

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  2. Muito obrigado pelos elogios carinhosos e pelo comentário.
    Espero sempre a visita. Abraços!

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