quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

A cadeira de balanço


         
Desenho de cadeira de balanço         
 Lembrava do Carlos, do Zeca e do Chupeta. Lembrava da Guta, da Márcia, da Zefa e da Suzana. Lembrava-se muito de tudo e, sobretudo, dos rostos, lembrava-se das palavras e dos gritos. Lembrava da Maria, do Joca, do Gerson, do Pedro, da Darci, da Karla e do Carlos, da Renata, do Sílvio, da Leonilda, do Michael.
             Lembrava-se da Constantina e do bolo que fazia para recebê-los em sua casa.
          A D. Gertra e seus beijos nojentamente molhados. Quantos dias passados naquela casa. Férias. Fins de semana prolongados.
          Lembrava dos porres da D. Augustina e de como a mulher vivia repetindo: “duas doses de cachaça”. A filha de D. Augustina com seu decote, qual era mesmo o nome da filha da D. Augustina?
          Teve um dia que a flagrou trocando de roupa no quarto dos fundos de sua casa. Foi a primeira vez que viu uma mulher nua. Uma linda e maravilhosa mulher de doze anos de idade. Sentiu-se o homem mais realizado do mundo.
          Não conseguia lembrar o nome da menina. Devia estar totalmente diferente por estas horas. Muito tempo se passa depois que as coisas acontecem.
          Lembrava-se do primeiro livro que lera: “O menino do dedo verde”. Não conseguia precisar a história, mas sabe que o lera por espontânea vontade. O menino do livro era um anjo. Lembrava que também desejara tornar-se um anjo. Uma espécie de ser imortal, sei lá. A idade trás estas coisas.
          Sentado em sua cadeira de balanço lembrava-se que havia um apelido que tinham lhe imposto e que odiava ser chamado, mas que agora não fazia a menor diferença. Nem lembrava mais qual era o apelido.
          A cadeira de balanço ia e vinha e a cada nova ida um nome lhe saltava da memória: Lucas, Denis, Richard, Marcelo.
          Diogo, Laércio, Walber, Lupércio.
          Maysa, Estefânia, Raquel, Priscila.
          A cada vinda da cadeira uma antiga lembrança o distanciava da realidade imposta pelo tempo: primeiro beijo, primeiro sexo, primeiro emprego, primeira namorada, primeiro amor, primeiro casamento, primeiro...
          Já não era o mesmo, já não era igual nem diferente. Há muito tempo não se reconhecia no espelho, há muito tempo. Há muito tempo deixara de contar os primeiros.
          Meyre, Rodrigo, Giovane, Rodolfo.
          O time de futebol. O clube de baralho. A briga com o Ed Carlos. Onde será que está o Ed Carlos? A fome que passou na excursão da escola porque seu lanche estragara e tivera vergonha de pedir aos amigos.
          A vontade que sentia de dizer à Danielle que a amava; mais, o medo de dizer à Danielle que a amava.
          Tinha um sorriso em sua lembrança de uma velha senhora que lhe dava doce quando ainda era criança. Adorava quando ia esta senhora em sua casa porque sabia que teria suas vontades atendidas.
          Lembrava da primeira vez que ficou nu ante uma mulher, da primeira vez que ficou nu ante sua primeira mulher, da primeira vez que ficou nu ante sua última mulher. Teve muitas mulheres. Será que se lembraria dos nomes das oito?
          Nenhum filho.
          Nenhum filho vivo.
          Roberto morreu num acidente de automóvel. Ele adorava aquele fusca. Por que os filhos morriam antes dos pais? A justiça divina é estranha. Existe justiça divina?
          Ele tinha apenas vinte anos de idade. Por que aquele bêbado filho de uma puta veio na contra mão?
          Estranha a vida. A morte chega aos poucos para alguns: perde-se parte da visão, da audição, da locomoção, do pensamento, da sanidade. As pessoas deixam de acreditar no que se diz. Então pára-se de dizer qualquer coisa e as palavras amuam-se na boca. Resta então o balançar e ranger da cadeira de balanço.
          Souza, Cléber, Danilo, Leonilda.
          Danielle, Rosa, Roberto.
          Roberto.
          Tinha um mercadinho no outro lado do bairro aonde íamos todo dia de manhã comprar pão: eu, a Danielle e o Carlos. Será que o mercado ainda está lá?
Tinha um campinho de futebol que meu pai me levava para jogar bola com meus amigos, ficava na frente de uma transportadora, onde vários caminhões entravam e saíam, entravam e saíam; ajudei a fundar com o Hugo o Atlético Esportivo Rua 2. Fomos campeões do campeonato inter-bairro. Vencemos nos pênaltis o time da rua 10.
De quanta coisa lembrava.
Luciana, Lílian, Ronaldo, Vera.
A Vera usava uns óculos horríveis e sua mãe se recusava a deixá-la ir conosco ao parque da rua baixa. Muitas vezes a Verinha chorou enquanto descíamos a ladeira.
Foi a primeira a casar, a primeira a ter filhos, a primeira a ser avó. Onde andará Verinha? A última notícia que recebi foi que havia se mudado para o Rio Grande do Sul e que o divórcio no litigioso deixara um rastro de depressiva solidão. O que será que a mãe de Verinha diria sobre isso? Boas notas, boas companhias, boas aulas de balé, bom curso de inglês, boa dona de casa, avó, vizinha divorciada, suicida em potencial.
Estou sendo cruel com as personagens do meu passado. O que elas devem pensar sobre mim? Com certeza que acabei drogado na sarjeta, não, talvez que tenha enriquecido e ido morar em algum lugar paradisíaco. Ou, quem sabe, pensem que eu tenha me casado, tido filhos, me tornado avô, me divorciado, mudado para o Rio grande do Sul, seja um suicida em potencial vivendo numa solitária depressão.
Lembrava-se das noites de vídeo game na casa do José Pedro. O Atari ligado até as quatro da manhã, sua mãe fingindo que acreditava que estávamos dormindo, o suco de morango que somente ela sabia fazer, ai! que saudade do suco de morango da mãe do José Pedro. Dá vontade de voltar a ser criança somente para provar mais uma vez o doce sabor do suco de morango da mãe do José Pedro.
A cadeira de balanço vai. A cadeira de balanço vem.
Silmara, Heide, Suzana, Rosineide.
Alessandra, Gislene, Marcela, Solange.
Renato.
O Renato foi a sua cruz no seu primeiro emprego. Trapaceava, enganava e conseguiu que o demitissem antes de completar um ano de empresa. Teve ódio, mas hoje pensa no que teria sido a vida sem a presença destas trapaças.
Não estou grato àquele desgraçado, mas ficam as dúvidas sobre o que teria acontecido se tivesse passado trinta anos da minha vida dentro daquele inferno. Não sei o que aconteceu a ele. Será que foi mais feliz que eu?
Eu fui feliz?
Fábio, Alice, Fernando, Patrícia, Reginaldo, Marcos, Felipe, Andréia, Hélio, Cínthia, Creuza, Irineu, Carlos.
Quais caminhos me trouxeram a este lugar e agora me distanciam da vida que poderia ter levado. As coisas são cada vez mais difíceis. O mundo da minha infância está morto. O mundo da minha juventude está morto. O mundo está totalmente diferente daquele que me recebia de braços abertos, ou de punhos cerrados, de facas erguidas.
O mundo que eu habitava está defuntado de maneira incondicional. A primeira menina que eu vi nua, as brincadeiras no campinho de futebol, o campo não existe mais, os seios daquela menina que eu, com certeza, fui o primeiro a ver, não devem mais existir também. Toda a beleza do mundo que eu habitava passou. Os jogos de videogame, os jogos de futebol, os doces daquela velha senhora, os beijos nojentos da D. Gertra, o suco de morango da mãe do José Pedro.
Muito tempo passa depois que as coisas acontecem.
Depois que isso passa você morre.
As pessoas têm que morrer.
É necessário que ninguém escute mais o balançar rangente desta cadeira de balanço.

Um comentário:

  1. Muito orgulhoso de ter escrito este conto que está numa das edições do Palavra em Prisma. Concurso literário de Guarulhos.

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