Lembrava
do Carlos, do Zeca e do Chupeta. Lembrava da Guta, da Márcia, da Zefa e da
Suzana. Lembrava-se muito de tudo e, sobretudo, dos rostos, lembrava-se das
palavras e dos gritos. Lembrava da Maria, do Joca, do Gerson, do Pedro, da
Darci, da Karla e do Carlos, da Renata, do Sílvio, da Leonilda, do Michael.
Lembrava-se da Constantina e do bolo
que fazia para recebê-los em sua casa.
A D. Gertra e seus beijos nojentamente
molhados. Quantos dias passados naquela casa. Férias. Fins de semana
prolongados.
Lembrava dos porres da D. Augustina e
de como a mulher vivia repetindo: “duas doses de cachaça”. A filha de D.
Augustina com seu decote, qual era mesmo o nome da filha da D. Augustina?
Teve um dia que a flagrou trocando de
roupa no quarto dos fundos de sua casa. Foi a primeira vez que viu uma mulher
nua. Uma linda e maravilhosa mulher de doze anos de idade. Sentiu-se o homem
mais realizado do mundo.
Não conseguia lembrar o nome da
menina. Devia estar totalmente diferente por estas horas. Muito tempo se passa
depois que as coisas acontecem.
Lembrava-se do primeiro livro que
lera: “O menino do dedo verde”. Não conseguia precisar a história, mas sabe que
o lera por espontânea vontade. O menino do livro era um anjo. Lembrava que
também desejara tornar-se um anjo. Uma espécie de ser imortal, sei lá. A idade
trás estas coisas.
Sentado em sua cadeira de balanço
lembrava-se que havia um apelido que tinham lhe imposto e que odiava ser
chamado, mas que agora não fazia a menor diferença. Nem lembrava mais qual era
o apelido.
A cadeira de balanço ia e vinha e a
cada nova ida um nome lhe saltava da memória: Lucas, Denis, Richard, Marcelo.
Diogo, Laércio, Walber, Lupércio.
Maysa, Estefânia, Raquel, Priscila.
A cada vinda da cadeira uma antiga
lembrança o distanciava da realidade imposta pelo tempo: primeiro beijo,
primeiro sexo, primeiro emprego, primeira namorada, primeiro amor, primeiro
casamento, primeiro...
Já não era o mesmo, já não era igual
nem diferente. Há muito tempo não se reconhecia no espelho, há muito tempo. Há
muito tempo deixara de contar os primeiros.
Meyre, Rodrigo, Giovane, Rodolfo.
O time de futebol. O clube de baralho.
A briga com o Ed Carlos. Onde será que está o Ed Carlos? A fome que passou na
excursão da escola porque seu lanche estragara e tivera vergonha de pedir aos amigos.
A vontade que sentia de dizer à
Danielle que a amava; mais, o medo de dizer à Danielle que a amava.
Tinha um sorriso em sua lembrança de
uma velha senhora que lhe dava doce quando ainda era criança. Adorava quando ia
esta senhora em sua casa porque sabia que teria suas vontades atendidas.
Lembrava da primeira vez que ficou nu
ante uma mulher, da primeira vez que ficou nu ante sua primeira mulher, da
primeira vez que ficou nu ante sua última mulher. Teve muitas mulheres. Será
que se lembraria dos nomes das oito?
Nenhum filho.
Nenhum filho vivo.
Roberto morreu num acidente de
automóvel. Ele adorava aquele fusca. Por que os filhos morriam antes dos pais?
A justiça divina é estranha. Existe justiça divina?
Estranha a vida. A morte chega aos
poucos para alguns: perde-se parte da visão, da audição, da locomoção, do
pensamento, da sanidade. As pessoas deixam de acreditar no que se diz. Então
pára-se de dizer qualquer coisa e as palavras amuam-se na boca. Resta então o
balançar e ranger da cadeira de balanço.
Souza, Cléber, Danilo, Leonilda.
Danielle, Rosa, Roberto.
Roberto.
Tinha um mercadinho no outro lado do
bairro aonde íamos todo dia de manhã comprar pão: eu, a Danielle e o Carlos.
Será que o mercado ainda está lá?
Tinha um campinho de futebol que meu
pai me levava para jogar bola com meus amigos, ficava na frente de uma
transportadora, onde vários caminhões entravam e saíam, entravam e saíam; ajudei
a fundar com o Hugo o Atlético Esportivo Rua 2. Fomos campeões do campeonato
inter-bairro. Vencemos nos pênaltis o time da rua 10.
De quanta coisa lembrava.
Luciana, Lílian, Ronaldo, Vera.
A Vera usava uns óculos horríveis e
sua mãe se recusava a deixá-la ir conosco ao parque da rua baixa. Muitas vezes
a Verinha chorou enquanto descíamos a ladeira.
Foi a primeira a casar, a primeira a
ter filhos, a primeira a ser avó. Onde andará Verinha? A última notícia que
recebi foi que havia se mudado para o Rio Grande do Sul e que o divórcio no
litigioso deixara um rastro de depressiva solidão. O que será que a mãe de
Verinha diria sobre isso? Boas notas, boas companhias, boas aulas de balé, bom
curso de inglês, boa dona de casa, avó, vizinha divorciada, suicida em
potencial.
Estou sendo cruel com as personagens
do meu passado. O que elas devem pensar sobre mim? Com certeza que acabei
drogado na sarjeta, não, talvez que tenha enriquecido e ido morar em algum
lugar paradisíaco. Ou, quem sabe, pensem que eu tenha me casado, tido filhos,
me tornado avô, me divorciado, mudado para o Rio grande do Sul, seja um suicida
em potencial vivendo numa solitária depressão.
Lembrava-se das noites de vídeo game
na casa do José Pedro. O Atari ligado até as quatro da manhã, sua mãe fingindo
que acreditava que estávamos dormindo, o suco de morango que somente ela sabia
fazer, ai! que saudade do suco de morango da mãe do José Pedro. Dá vontade de
voltar a ser criança somente para provar mais uma vez o doce sabor do suco de
morango da mãe do José Pedro.
A cadeira de balanço vai. A cadeira de
balanço vem.
Silmara, Heide, Suzana, Rosineide.
Alessandra, Gislene, Marcela, Solange.
Renato.
O Renato foi a sua cruz no seu
primeiro emprego. Trapaceava, enganava e conseguiu que o demitissem antes de
completar um ano de empresa. Teve ódio, mas hoje pensa no que teria sido a vida
sem a presença destas trapaças.
Não estou grato àquele desgraçado, mas
ficam as dúvidas sobre o que teria acontecido se tivesse passado trinta anos da
minha vida dentro daquele inferno. Não sei o que aconteceu a ele. Será que foi
mais feliz que eu?
Eu fui feliz?
Fábio, Alice, Fernando, Patrícia,
Reginaldo, Marcos, Felipe, Andréia, Hélio, Cínthia, Creuza, Irineu, Carlos.
Quais caminhos me trouxeram a este
lugar e agora me distanciam da vida que poderia ter levado. As coisas são cada
vez mais difíceis. O mundo da minha infância está morto. O mundo da minha
juventude está morto. O mundo está totalmente diferente daquele que me recebia
de braços abertos, ou de punhos cerrados, de facas erguidas.
O mundo que eu habitava está defuntado
de maneira incondicional. A primeira menina que eu vi nua, as brincadeiras no
campinho de futebol, o campo não existe mais, os seios daquela menina que eu,
com certeza, fui o primeiro a ver, não devem mais existir também. Toda a beleza
do mundo que eu habitava passou. Os jogos de videogame, os jogos de futebol, os
doces daquela velha senhora, os beijos nojentos da D. Gertra, o suco de morango
da mãe do José Pedro.
Muito tempo passa depois que as coisas
acontecem.
Depois que isso passa você morre.
As pessoas têm que morrer.
É necessário que ninguém escute mais o
balançar rangente desta cadeira de balanço.
Muito orgulhoso de ter escrito este conto que está numa das edições do Palavra em Prisma. Concurso literário de Guarulhos.
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