sábado, 12 de janeiro de 2013

O cômodo mais cômodo


Entrou com a revista embaixo do braço, reparou em todos os detalhes: o chuveiro, a saboneteira, o espelho, o creme dental close up, os azulejos brancos e alvos, o forte cheiro de pinho oriundo do desinfetante que sua mulher utilizava para limpar aquele ambiente, reparou na pequena e pudica janela e no papel higiênico Primavera. Ah sim! Havia papel higiênico, então o cenário estava formado: tinha verdadeira ojeriza em fazer aquilo e depois sair gritando pela casa pa-pel-hi-giê-ni-co!!! E ali seria pior porque não havia mais ninguém em casa, sua esposa só chegaria no outro dia, ou seja, teria de sair casa afora com a bunda suja atrás do sagrado instrumento de limpeza.
Mas já que havia tudo o que podia esperar de um banheiro reparou naquilo que não reparara ainda: a privada. Olhou com um pouco de sarcasmo e ironia; eu diria até que com um certo ar de superioridade racial: “um algo feito tão simplesmente para...”
Deixa pra lá.
Abaixou as calças, virou e sentou.
Abriu a revista numa página qualquer e começou a atender ao chamado fisiológico.
Não sei se leu, mas quando terminou foi com nojo que olhou para baixo, cuspiu, abaixou a tampa do assento, higienizou-se, deu a descarga preparou-se para tentar sair do banheiro após, é óbvio, levantar a roupa.
Digo tentar porque quando foi abrir a porta não conseguiu. Forçou a maçaneta, deu murros, gritou socorros, é, gritou socorros, pontapés, mais murros, socorros, socorros e nada.
Não acreditou. Estava preso dentro do próprio banheiro.
Sabe aquelas coisas que só acontecem com os outros? Estava acontecendo com ele.
Não se desesperou. Não perderia o controle. Era só esperar por sua esposa – a Lúcia - ela então chegaria e abriria a porta por fora. Pensou no ridículo da cena, porém, devido às circunstâncias, não havia outro modo.
Sentou na privada e sentado esperou, esperou, esperou. Dormiu. Não sonhou. Acordou. Não sabia quanto tempo se passara, mas viu pela janela que anoitecera. Estava há mais de oito horas no banheiro.
Ninguém em casa ainda. Novamente tentou arrombar a porta. Murros. Chutes. Pontapés. Joelhadas. “Ai”. Pedidos de socorro. “Socorro, socorro, socorro!” Tirem-me daqui!
E nada.
Não. Não perderia o controle. Ressentou e começou a ler a revista. Desta vez pelo começo.
Página 5, página 6, página 10, página 15, página 25, página 60, página 61, página 62, página 100; mas será possível!?!?!
 O dia lá fora já amanhecia e ninguém para tirá-lo dali.
Não. Não perderia o controle. Tirou a roupa e começou a tomar banho, um banho lento e calmo, daquele de noiva em véspera de núpcias, não esqueceu de limpar nada, entre os dedos dos pés, atrás das orelhas, cada dobra, cada centímetro quadrado de seu corpo, não esqueceu nenhuma parte, secou-se. Olhou-se no espelho e deu uma leve risada: “Preso no banheiro, quem acreditaria?”
Sentou na privada e voltou a ler a revista, página 5, página 6, página 10, página 20, página 30. 35. 60.100.
Página 5; página 10; 20; 30; 60; 90; 100;...
Página 5, página 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, ..., 100.
Página 5...
Escutou um barulho. Alguém chegara em casa. Bateu na porta, socorro, socorro. Ouviu uma voz, sim era sua esposa que chegara.
- Lúcia! Lúcia!
Ela o atendeu:
-Oi! O que ’cê quer Régis?
-Me tira daqui!
-O quê?
-Eu ‘tô preso no banheiro.
-‘Cê ta brincando.
-Eu pareço estar brincando, droga?
-Como você foi ficar preso aí?
-E eu vou saber?
-Espera que eu já abro.
Lúcia então forçou a porta, deu murros. Pontapés. Joelhadas. “Ai!” Marretadas. E nada da porta abrir.
-Vai buscar ajuda Lúcia!
-Mas quem?
-Eu vou lá saber? Chame o vizinho, algum parente, a polícia, os bombeiros, a defesa civil, mas pelamordedeus me tira daqui!
Então ela saiu desgarrada como trem bala e de fato chamou: o vizinho, não, os vizinhos, toda a família, parentes, até aquele primo do interior que nunca aparece, a polícia, os bombeiros, a defesa civil, o exército, o pentágono, a NASA, e a cada nova tentativa um fracasso.
Chegou a imprensa. E nas primeiras páginas dos jornais do dia seguinte estampado estava o drama do homem preso no banheiro há mais de sessenta horas, noventa horas, cento e vinte, duzentas horas, trezentas...
E tentaram de tudo para tirá-lo: britadeira, túnel subterrâneo, dinamite, nitroglicerina, serra elétrica. Mas nada, nada quebrava a resistência daquele banheiro que parecia mais um abrigo antinuclear.
E Régis lá , lendo e relendo a revista, tomando banho, lavando a cueca no lavatório, escovando os dentes, fazendo freqüentemente seu pipizinho, seu cocozinho, barbeando-se a cada duas horas e com a mesma lâmina. E desesperando-se a cada novo fracasso de seus salvadores.
A rede globo até passou uma mini câmera pela janelinha e deu com exclusividade uma entrevista com o pobre homem que descreveu seu drama de proscrito em seu próprio privativo.
E foram meses de tentativa de tirar o “toillete man” do banheiro. Até que a imprensa deixou o caso de lado, os bombeiros, a polícia, a defesa civil, a NASA e pentágono desistiram, a mulher se cansou de passar comida pela janela e, exausta, passou a papelada do divórcio.
Sozinho, sem amigos, sem esposa, e preso no banheiro, Régis pensou em suicídio, mas a lâmina estava tão cega de tantas barbeadas que nem o pulso conseguiu cortar.
Até que um dia, na altura da página 23, a porta sem mais nem menos se abre. Simples como num passe de mágica, abre sozinha, sem bombas, socos ou pontapés.
O homem sorri. Levanta-se da privada. Livre enfim, não podia acreditar.
Revê cada coisa como da vez que entrou: o espelho, o chuveiro, a saboneteira, o creme dental close up, tudo como se estivesse se despedindo de uma fase ruim da vida.
Espreguiçou-se e tomou o rumo da saída. Mas ao chegar ao batente, antes de transpor-se para fora, bateu a porta e trancou-se novamente no banheiro, sentou e retomou a leitura na página vinte e três. A página com uma matéria muito elucidativa sobre a vida em sociedade e suas conseqüências na personalidade do homem moderno.
(Publicado originalmente em "A divina tragicomédia humana" de Mauro Marcel)

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