quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Montanha russa, Maiakovski e Zangief

    
     Acabei de ler um livro chamado "Mil e um filmes pra ver antes de morrer", (mentira, já li  faz algum tempo), com este vem uma coleção de outras mil e uma coisas pra se fazer antes de bater as caçoletas: mil e um livros pra ler, mil e um lugares pra conhecer, mil e uma músicas pra ouvir, mil e um discos, mil e um vinhos, mil e uma cervejas...
     Alguns poderiam perguntar o porquê do número mil e um, talvez por indicar imponência, exagero, ou uma vida completa. Completa?
     Aprendi muito sobre cinema com o livro "Mil e um filmes...", assim como aprenderia muito com o dos outros temas, o que me incomoda nesta história não é o número, mas a imposição, afinal, devemos fazer tudo isso antes de morrer.
     Lembro-me de um velho ditado que dizia que um homem só estaria com a vida completa após escrever um livro, plantar uma árvore e ter um filho. A receita da vida ideal. 
     E a mulher como seria? 
     Tenho medo de receitas prontas por isso me indisponho quando alguém tem a fórmula da felicidade.
     E ela está em todos os lugares, sempre com algo que temos que comprar e comprar e comprar. Cada vez mais. Ao infinito.
     Quando vejo a coleção de livros citada eu não penso em mil e uma possibilidades, mil e uma experiências, penso em mil e uma tranqueiras que querem me vender. Sempre meu dinheiro ganhado cada vez com mais suor e sendo direcionado para a felicidade eterna, o fim desejado, quando completar a lista das coisas que preciso ver, ler, conhecer, comprar...
     Também há um programa num canal imbecil denominado "Coisas pra fazer antes dos trinta". Já devem imaginar do que se trata. Ou não, pra mim pouco importa. 
     Quem deu a um programa de TV a decisão sobre o que deve ser feito de minha vida antes ou depois de trinta, quarenta ou cinquenta?
     Sempre a idolatria à juventude, velhos que se orgulham de serem jovens, quando todos sabemos que os velhos têm que se orgulhar é de não serem mais idiotas como os mais jovens. 
    Mas o que se vê é aquele velhinho andando de montanha russa pra mostrar que não perdeu a juventude dentro de si, quando deveria (nessa altura da vida) questionar os motivos que levam uma pessoa a se divertir com tamanha futilidade. 
     Ou até mesmo pular de paraquedas, mas por outras razões: as corretas; outros motivos: os errados. 
     Quais motivos levam uma avó a querer se lipoaspirar pra parecer com a netinha e caber naquela mini saia?
     Estou sendo ranzinza? Sempre fui conhecido por isso. 
     Você pode estar se perguntando sobre o que é este texto, afinal os assuntos vão se misturando, se avolumando. 
     Quero falar de vida e experiências. 
     Quando se é pautado num catálogo, mesmo que este catálogo não seja o impresso como os que citei no primeiro parágrafo, a vida vira uma bosta.
     Estou falando das listas que nos aprisionam,  nos fazem viver uma realidade que não é nossa, nos empurrando pra uma enxurrada de consumismo, alienação, perdas, futilidades, todas muito bem fundamentadas e justificadas com  o argumento de que precisamos manter nossa jovialidade, morrer é pra velhos e ninguém quer este peso, nem eu, nem você, nem o Caetano. 
     Porque velho no Brasil é sinônimo de moribundo. Num país que trata mal a todos e reserva aos seus patriarcas a marginalidade da marginalidade da marginalidade. Porque é sabido que os jovens pertencem à faixa etária que mais consome, se não há como ampliar a vida, amplia-se a juventude, mesmo que fraudulentamente.
     Mas poderíamos ser o avesso do avesso do avesso. 
   Houve uma época em que os grandes mestres da humanidade eram escritores como Oscar Wilde, Leon Tolstói, Vladimir Maiakovski, Machado de Assis, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Gertrud Stein; filósofos como Sócrates e Kant; compositores como Mozart e Stravinsk; dramaturgos como Shakespeare e Beckett.
     Hoje os grandes mestres da humanidade são produzidos em série pela mídia que os constroem e os reconstroem infinitamente. A Ana maria Braga é o guru de muitos, a Oprah de outros tantos; assim como Diogo Mainardi, J. K. Rowling, Stephenie Meyer, Paulo Coelho, Zíbia Gaspareto. E sei lá... Quentin Tarantino, P. C. Siqueira,  Bento XVI...
     Não sou saudosista, mas lembro que na minha infância havia uma coleção de cadernos com capas estampadas com personalidades como Einstein, Freud, Graciliano Ramos. Qual a imagem que estampa os cadernos nas escolas hoje em dia?
     O problema de viver uma vida que não é nossa é que só percebemos quando é tarde demais "E não se engane não, tem uma só/Duas mesmo que é bom/Ninguém vai me dizer que tem/Sem provar muito bem provado/Com certidão passada em cartório do céu/E assinado embaixo: Deus/E com firma reconhecida!" (Vinícius de Moraes)
    É engraçado como algumas pessoas têm as receitas da felicidade, ensinando como fazer viagens, emagrecer, estudar, viajar, comer, rezar e amar. Tudo isso desde que compre o livro, assista o filme, veja o programa, consuma, consuma, consuma.
     Mas não é tão simples, ninguém vai se isolar no alto do Tibet abrindo mão desta sociedade imbecil e infantilizada. Ainda somos aquela criança que precisa de atenção pra se sentir amada, mesmo que para isso tenhamos que mentir com os milhares de amigos virtuais, as centenas de filmes assistidos e não pensados, os livros com argumento fraco e parcelado em três para o editor, o escritor e o lojista lucrarem seis vezes mais, as músicas fora de contexto, os museus que visitamos mundo afora mas que não compreendemos porque está tudo muito rápido.
     O Bruno de Luca falou que a gente precisa conhecer aquele boteco em Madri porque ele é excepcional, e vou ficar com vergonha de dizer que achei uma droga porque gastei muito dinheiro lá. E dinheiro compra até opinião, ninguém vai falar que não gostou de um prato se pagou mil reais pra comê-lo.     
     Ou as velhas parábolas de pessoas que fizeram caminhos sagrados percorridos por grandes mestres e que voltaram infelizes pra casa porque aqueles não eras seus caminhos, mas os caminhos de outros, percorridos em outros momentos. 
     E mais do óbvio: o que faz a felicidade de um jamais fará - igualmente - a felicidade de outro. 
     Então, que se danem os conselhos, as listas. Estejamos todos soltos. E sem vergonha de se divertir num show do Justin Bieber, porque a opinião corrente é a de que ele é uma droga.
     Já me diverti muito mais assistindo "Curtindo a vida adoidado" que contemplando aos filmes do Godard, já senti muita vergonha em declarar isto, nem sou tão velho pra começar a não me importar com a opinião dos outros, o problema é que os outros são tão infantis.
     
     Até os potencialmente intelectuais - hoje chamados de geek: capitalizaram o pensamento, subornaram o cérebro, pagaram com mil e um games, mil e um sites e mil e outros tantos desejos pra comprar fazendo a roda do capitalismo girar.
     Houve um tempo em que intelectual era quem lia, estudava, discutia o sentido da vida. Hoje intelectual é quem joga RPG, faz final no Street Fighter com o Zangief e discute o último episódio do The Big Bang Theory.
     A realidade, pelo menos pra mim é uma só: nem tudo precisa ser divertido e quase nada é.

domingo, 27 de janeiro de 2013


http://asboasdosantanna.blogspot.com.br/2013/01/cade-minha-luz.html

O belo traço de Fábio Sant'Anna...
Eu não tenho ideias sobre o que fazer quanto ao apagão, apenas sobre o que fazer com as luzes apagadas.

sábado, 26 de janeiro de 2013

Passamento


meu pensamento
pensa e passa
passa
e
pensa
pensamento passa
passa
pensa
passa
pesa e posa
pousa
pensa e poupa
passa passa
passamento

As Boas do Sant'Anna - um blog especializado em generalidades: O Máximo

As Boas do Sant'Anna - um blog especializado em generalidades: O Máximo:    Naquele dia de céu puro o camarada decidiu levar sua namorada para passear. Mas seria um dia muitíssimo especial. Nosso amigo convida...

amor


o amor
é a aceitação
de alguém
mais que a si
além de si
transfigurando a si
em dó,
ré, mi

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Humor - Pavor


Até que foi engraçado!!!!!

Estilingue


Essa é do meu tempo de escola...
Até hoje me lembro da primeira vez que ouvi.

Drops Rock 7 - Morte e a Maldição dos 27


Em preto e branco pra falar de morte no rock.
Depois deste, assim como no caso do demônio, faremos um program número dois falando sobre mais mortes. Deixamos de falar na Amy, Ritch Vallens, Sid Vicious, e muitos outros...

Asfalto, canalhas e pimentas

 

   Não tenho propriedades em meu nome. Não preciso pagar IPTU, talvez por isso acompanhe com antipatia a tentativa que alguns grupos fazem de transformar uma questão tão importante para o cotidiano de uma cidade em bandeira política.

     Antes que qualquer leitor (cidadão de bem) pense que quero fazer uma defesa do aumento do Imposto Predial Territorial Urbano quero deixar claro que não é essa minha intenção. Também não quero fazer aqui um ataque ao reajuste. Adoro polemizar e quem polemiza geralmente desagrada a todos os lados. É o que farei.
     Não quero deixar ninguém feliz, estou solitário em minha tristeza, todos tão felizes, celebrando o ano novo, o dia novo, a hora nova, o segundo inicial do dia primeiro de janeiro quando vem um carnê dizendo que seu imposto aumentou até quatrocentos por cento.
     É errado.
     Existe uma premissa em direito que versa sobre tributos, denominada "equilíbrio financeiro", uma taxação não pode subir tão rapidamente de um ano para outro porque isso desequilibra toda a vida financeira de qualquer família. O IPTU não pode subir de 400 para quatro mil reais por ano, as contas das famílias não fecham e acabam na inadimplência. É ilegal.
     Pra se ter uma noção dessa realidade, segundo dados oficiais da prefeitura do Rio de janeiro: lá de 20 a 30% apenas das residências pagam o imposto predial.
     Este não pagamento acarreta problemas sérios para a cidade que fica paralisada, mal cuidada e desorganizada.
     Moro em Guarulhos e a população está realizando uma petição pública para análise e correção do cálculo do aumento da taxação. Já fazia 13 anos que  não se atualizava a planta genérica e este aumento, mesmo que obrigatório por lei, não pode cair completo do dia pra noite.
     Muitos dos que dizem liderar a luta pela redução do imposto estão apenas utilizando o problema como palanque eleitoral, isso somado à desinformação da sociedade em geral em relação ao assunto.
     A região mais populosa de Guarulhos foi uma das que mais sofreu com o reajuste do IPTU e é formada por uma classe trabalhadora, descendentes de nordestinos, negros, nós. Os pobres.
     Vivo nesta região desde os anos 1980 e de lá pra cá sempre fui vítima de uma cambada de candidatos salafrários que vinham até o bairro e prometiam respostas pontuais para problemas gerais. Assim foi quando morávamos em ruas de terra e o candidato vencedor "trouxe o asfalto" trazendo a "solução para os nossos problemas".
     Também quando inaugurou um posto de saúde trazendo "a solução para a saúde pública". Outro trouxe água encanada trazendo "saciedade para a nossa sede". Coleta de lixo. Um deles "dava" terrenos a quem quisesse em troca de votos.

     (Os terrenos não eram dele, algumas pessoas ganhavam dois, três, quatro, dez lotes e vendiam - surgiu assim nosso bairro - o Bairro dos Pimentas - se não conhece joga no google maps, não será uma visão agradável se compararmos com Jardim Europa, Alfavile e Morumbi (Bairro dos Pimentas nos olhos dos olhos é refresco), mas é o bairro que vi nascer, crescer e se desenvolver.)


     Os canalhas não trouxeram benefício algum para o bairro, nós da periferia fomos utilizados como massa de manobra, compra e venda.
     Após o asfalto nas ruas, os ônibus do prefeito (que era o dono da empresa de ônibus da cidade) chegara, e tivemos a sensação de que éramos importantes.
     Assim como contratos obscuros entre a prefeitura e a empresa de coleta de lixo, empresa que administrava o saneamento básico, desvios e mais desvios de verbas públicas, impeachment e votos no partido que está hoje no poder.
     De doze anos pra cá a região recebeu o mínimo de urbanização: agência bancária, hospital, supermercado, renovação da frota de ônibus, placas de trânsito, radares, rede municipal de ensino, shopping center, universidade pública federal, condomínios, policiamento ostensivo nas ruas, etc. (Tudo ainda pequeno e deficitário assim como tudo o que começa e começa muito tarde).
     O que havia na região antes de 2000? Nada. Apenas um posto de gasolina aqui, um mercadinho acolá, algumas ruas asfaltadas, coisas do tipo.

     Lembro que pra fazer um trabalho de escola na biblioteca tínhamos que pegar um ônibus fedendo a diesel e permanecer nele durante mais de uma hora para no centro de Guarulhos pesquisar na única biblioteca pública da cidade.
     Problemas resolvidos? Não.
     Mas uma casa que valia nesta época 15.000 reais, hoje vale 200.000.
     O IPTU é calculado no valor venal do imóvel, portanto é normal que o IPTU aumente quando a região é valorizada. O QUE NÃO ACONTECE COM A REGIÃO DOS PIMENTAS.
     É falácia dizer que a região melhorou apenas porque nela há o mínimo para a subsistência com um mínimo de dignidade.
     Não havia bancos e hospitais antigamente? Deveria haver. Não é justo aumentar o imposto levando em consideração o mínimo que um ser humano precisa pra existir, se locomover, respirar, estudar, trabalhar. Não havia nada no bairro. Não é justo que agora o imposto seja tão alto.
     E quanto à época em que o imposto era pago e não havia nenhum serviço? Isto deve ser levado em consideração, a região do Pimentas já pagou muito imposto sem ter serviço público algum, não pode agora pagar a mais porque se tem o mínimo.
     Outra coisa é o fato de que uma velhinha que tem apenas um imóvel, construído a duras penas durante toda sua vida e tem o aumento de quinhentos por cento no imposto não deveria pagá-lo. Não porque a prefeitura a perdoa, mas porque a consciência a libera.
     Você conhece alguém que perdeu a única casa que tinha por não pagar IPTU?
     Infelizmente no Brasil a moradia, que é uma questão social, é tratada como investimento. Num país com um déficit tão grande de residências não é justo que uma pessoa compre imóveis pra multiplicar seus rendimentos.

     O estado deveria confiscar os imóveis nesta situação e repassá-los a quem não tem, a preço reduzido e prestações infinitas, com o imposto justo.

 
  Não pagar o IPTU só traz problemas a quem tem uma única casa na ocasião de vendê-la.
     Não pagar o que acha injusto chama-se desobediência civil, ninguém deveria pagar, nem em juízo, se acha que está sendo lesado. Ninguém vai perder a única casa que tem por conta disso.
     A região que citei  passa por uma fase interminável de especulação imobiliária, pessoas que vêm de outras cidades e estados e compram duas, três, dez casas para revender a preços exorbitantes. Uma casa com quatro cômodos neste local não sai por menos de duzentos mil reais: uma região sem calçadas, sem praças, sem áreas públicas de lazer, sem segurança. Não estou pichando meu bairro, estou apontando os defeitos a serem corrigidos. Alguns dos muitos que se repetem nas periferias Brasil afora.
     Se está essa bagunça agora e melhoramos quinhentos por cento, imagine como era viver por aqui nos anos 80 e 90. Mesmo com baixo IPTU e nenhuma qualidade de vida.
     A questão é que é impossível manter as pessoas na ignorância durante todo o tempo. Não creio que este tempo acabou. Desobedecer e não pagar não resolverá o problema, mas criará um fato novo obrigando a prefeitura a se reorganizar buscando uma saída mais democrática.
     Mas quem sou eu pra dar opinião. Nem imóvel eu tenho.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Hemingway, spoilers e espertofone

     Semana passada assisti a um filme do Woody Allen. Não quero parecer mais cinéfilo que ninguém, há muito mais filmes dele que não assisti que películas assistidas. Também não foi o melhor nem mais original dos filmes. Trata-se de seu último e mais rentável longa metragem, pelo menos por enquanto, o "Meia noite em Paris".
     
     Trata-se de uma típica história romântica: rapaz vai a Paris com noiva, conhece mulher, troca o casamento certo pela recém conhecida e pronto. 
     Mas Woody allen não chamou o Hugh Grant pra fazer o mocinho, nem a Julia Roberts pra heroína. O mocinho do filme é interpretado pelo insosso Owen Wilson (aquele mesmo de filmes como "Marley e Eu", "Dois é bom três é demais" e "Entrando numa fria") o caso é que ao pesquisar pra escrever esta crônica descobri que o público gosta dele (Owen Wilson), apenas isso explicaria uma carreira tão prolífica.
     Na história Owen é Gil, roteirista de sucesso em Holywood, mas que tem problemas pra engrenar como escritor. Decide com sua noiva passar algum tempo em Paris e blá blá blá, até que ao ficar sozinho à meia noite na cidade luz é convidado a entrar numa carruagem e ao entrar faz uma viagem no tempo se encontrando com seus ídolos do passado. 
     Conhece escritores como Scott Fitzgerald, Ernest Hemingway, Gertrud Stein, pintores como Picasso, Dali, Gauguin, o cineasta Buñuel, o fotógrafo Man Ray  e diversas outras personalidades de uma época perfeita, sem o vazio existencial que existe hoje, vazio de mentes, solidão, falta de diálogos inteligentes, pessoas criativas e blá blá blá.
     Não estragarei mais o prazer de quem se interessou em assisti-lo, tenho certeza que o filme não se encerra em nada do que falei ou possa falar, só me permitam ir um pouco além e atacar com apenas mais um spoiler: é claro que um escritor fracassado ao receber a atenção de tantos gênios, fazendo parte de uma época tão primorosa para a cultura se sente tentado a não voltar mais pra sua época.
     Gil tem seu livro lido por Gertrude Stein e ela lhe dá conselhos sobre como tornar sua literatura mais viva, o mesmo faz Hemingway e por aí vai. O que me fez pensar em como nossa época é de fato vazia.
     Quantas vezes sonhei em ser um jovem dos anos 60 e curtir três tardes de rock, sexo e lama em Woodstock. Quantas vezes desejei ouvir Led Zeppelin ao vivo num show no Canadá. Sonhei em ser poeta modernista na Semana de Arte Moderna ao lado de Oswald e Mário de Andrade. Pegar na mão de John Lennon, meu vizinho em Nova York.
     Mais de uma vez tive a convicção, assim como Gil teve no filme, de ter nascido na época errada. Ser deslocado. Sempre fui muito chorão em meio aos bullies da minha infância, antissocial numa época de redes sociais, sem sentir prazer por futebol no Brasil, vegetariano numa família que só come coisas que tenham respirado. Eu estaria muito mais à vontade com os beatnicks, os românticos, os modernos, tudo menos agora.
     Talvez este seja o problema em nascer no final do século. Nasci no século XX e terei que passar toda a minha vida numa época alheia, um tempo que não me pertence. Se eu fosse um drummond seria um gauche, como sou um eu não posso dizer a mesma coisa. Fico perdido.
     Mas algo acontece com Gil que me fez pensar melhor essa minha postura desajeitada. Afinal, eu passei um bom pedaço de tempo da minha vida no século XX e lá eu não era tão sociável também, talvez fosse um pouco pior, muito pior.
     Gil escolhe viver em seu tempo, e como eu não posso escolher, preciso viver no meu tempo também, não virão me levar numa carroça para a era do jazz, mas chegando lá eu lembraria que seria necessário passar por guerras mundiais, Vietnã, luta por direitos civis, ditaduras militares na América Latina, genocídios na África, na Europa, Rússia. Estudar a história é muito legal, vivê-la depende do ponto de vista, mas é a nossa vida e temos que seguir adiante, não há como recuar.
     Cervantes não voltará dos mortos e não adianta querer ser um novo Dostoievski , o mundo precisa de um novo eu, um novo você, cada um no seu tempo.
     Sim, é muito triste viver numa época em que milhões tem acesso a toda a informação acumulada pela humanidade no bolso via espertofone, mas preferem cultuar imbecilidades como comunidades virtuais, pornografia, pedofilia, fofoca. As pessoas falam mal da vizinha que vasculha a vida dos outros pela janela, mas fazem o mesmo com uma janela um pouco mais profunda, com cara de caleidoscópio, chamada Internet. 
     É muito triste viver numa época em que as palavras sofrem o analfabetamento: excluem acentos, cedilhas, letras maiúsculas em nome próprio.
     Triste viver numa época com o olhar morto para obras de arte, época em que um longa metragem precisa ter mais explosões por centímetro de filme que toda a história do cinema anterior a 1980. 
     Porém é fato que houve imbecis em todas as épocas: pessoas que não aceitavam o Impressionismo como arte, que não entenderam Fernando Pessoa, exilaram o Charle Chaplin, apoiaram Hitler, esmagaram povos inteiros e cá estamos nós, preparados para o nosso tempo. Cometendo nossos erros para sermos julgados quando não mais estivermos aqui.
     Engraçado notar que um dos argumentos utilizados por Gil pra não permanecer no passado é a penicilina, descoberta que salvou milhões, talvez bilhões de vidas, trazendo-nos a longevidade quase que como um direito inalienável. 
     Envelhecemos mais hoje, respeitamos menos os velhos. Temos um longo caminho pela frente, pra trás nunca. 
     Um dos argumentos que vão contra a hipótese de uma máquina do tempo é o seguinte: "não existem viajantes do tempo por aqui, logo, ninguém voltou do passado pra cá".
     Nós nos achamos muito interessantes, será que se um habitante do ano 5080 tivesse uma máquina do tempo ele teria alguma vontade de voltar pra nossa época? Séculos XXI, XX, XIX, XVIII?
     E como diria Drummond: "o tempo é minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente".
     Pronto para a próxima página, por favor.

domingo, 20 de janeiro de 2013

Os amputados


Temos de estar preparados. Sempre. Sempre preparados para o dia em que nos amputarão os braços.
<<Não poderemos mais abraçar, pegar, escrever, tocar, ajudar.>>
No dia em que eles forem amputados nos darão pares postiços de outros braços. Diferentes dos que possuímos. ”Nunca serão os mesmos”.
Temos de nos preparar para o dia em que amputarem nossas pernas. Preparar-nos para o dia em que pernas, joelhos, pés e dedos sejam apenas mais uma lembrança. O dia em que não mais andaremos, não mais correremos, não mais dançaremos...
... talvez apenas uma de nossas pernas seja amputada, ou uma de cada vez. Mas não pense que ficará eternamente com elas; um dia a vida as amputará. Uma a uma ou o par. Ficaremos mancos ou aleijados.
Seremos amputados.
Preparar-se é preciso para o dia em que a vida nos amputará os olhos. Ficaremos cegos e se coragem tivermos de cair, cairemos. Não haverá um único lugar seguro, qualquer paragem será um quarto escuro.
Talvez juntos sejam amputados braços, pernas e olhos. Ou um por vez. Mas não importa como ou quando. Amputados serão. 
Pares de olhos postiços nos serão dados, joelhos artificiais nos serão implantados, tornozelos feitos do mais puro material sintético; material que nos possibilitará vários e diversos movimentos diferentes - artificiais.
Vamos nos preparar para o dia em que nossos ouvidos sejam amputados de nossas orelhas, os sons serão todos o mesmo, o mais infinito barulho, o mais obtuso silêncio. Porque quando este dia chegar não nos surpreenderemos caso o som de ruídos de tiros, sirenes policiais, bombas, minas terrestres e gritos infantis não nos assustem.
Vamos nos preparar para este dia. Sem rezar. Sem meditar. Simplesmente esperando.
Esperando o dia em que nos colocarão também ouvidos postiços, juntos dos olhos postiços, das pernas postiças, dos joelhos, dos pés, dos braços, das mãos, dos dedos...
Vamos nos preparar para uma vida em que mesmo amputados possamos usufruir o conforto digno, de uma vida digna.
-Em um mundo digno.
Amputados nossos dentes, dentaduras serão colocadas.
Se amputado for o coração, um outro melhor e mais eficiente será posto em seu lugar. Um coração que saiba o verdadeiro peso de cada atitude, de cada ser, de cada coisa.
Um coração novinho. Batendo num peito amputado. Que toque na hora de trabalhar, fazendo-nos levantar, que avise a hora de dormir, que nos impedirá de qualquer excesso, existencial e/ou financeiro.
Que bata forte. Que bata por muito tempo.
Um coração artificial que através de artérias artificiais levem sangue para os demais membros artificiais de nosso corpo: dedos, braços, pernas, joelhos, cotovelos, tornozelos, olhos...
-Postiços.
Temos de nos preparar porque um dia a vida há de nos arrancar até os cabelos, e novos outros terão de ser postos no lugar.
Temos de ter sempre unhas falsas em nossos bolsos para o caso da amputação começar pelas pontas dos dedos.
Temos de, sempre que tivermos algum tempinho sobrando, lembrar de ensaiar nosso sorriso sem dentes. Porque um dia não os teremos mais.
Um dia nossas línguas serão amputadas e as palavras calarão em nossas bocas. Nossas preces, nossos gritos, nossas juras de amor, nossas promessas, nossas frases sem sentido, o beijo de língua na pessoa amada, o mesmo beijo de língua em quem não se ama, o gosto agradável e simples de uma bala de hortelã, o forte e desejo sabor de uma fruta. Nossas línguas cessarão seu trabalho e talvez uma outra será posta em seu lugar. Uma única língua. Que sinta apenas um único sabor, que beije uma única boca, que diga uma única mentira, uma única verdade, um único idioma: sabor, beijo, mentira, verdade e idioma postiços.
O tempo passa e dia a dia amputa nossas vidas.
Vivemos todos na juventude amputada de nossos pais.
Vamos nos preparar, mas sem alarde para quando enfim a vida nos ampute o tempo. A vida nos ampute a vida. O tempo nos ampute o tempo.
(Publicado pela primeira vez no livro "A divina tragicomédia humana" de Mauro Marcel)

Drops Rock 8 - Postura Rock


O rock tem que ter um berro!


sábado, 19 de janeiro de 2013

Drops Rock 6 - Mentiras do Rock



Mas há mentiras no que dissemos também, cabe a cada um descobrir, pesquisar, duvidar.
O excesso de fé atrasa qualquer ser humano.




sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Drops Rock 7 - Bandas Novas - Movimento cultural


     Estou falando do rock como movimento cultural, assim como Romantismo, Modernismo, Impressionismo. Ainda há quem escreve livros românticos, mas o Romantismo (movimento) acabou. Então o Rock, como movimento, para mim começa com o início dos Beatles e termina com o tiro na cabeça de Kurt.
     O rock já existia nos anos 50 e antes disso com outros nomes, mas a formação de um ambiente prolífico tem no ano acima citado uma boa data, data em que o estilo musical tratado não é apenas entretenimento, mas movimento cultural.
     Acreditar que uma banda hoje é o mesmo que seria nos 60, 70 ou 80 é o mesmo que comparar Manoel Carlos com José de Alencar. Ambos são românticos, ambos escrevem novela, mas apenas Alencar é Romântico.
     Ótimo tema pra discutir em mesas de bar (ou no meio acadêmico)...


quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Portas abertas


num piscar de olhos
te vejo abrir os braços
um sorriso
as celas
e cruzar olhares,

te vejo abrindo as portas
abrindo e estendendo as mãos
e sem entender
te vejo
cruzar
e cruzar e cruzar
o grande mar 

então te vejo abrir janelas
o armário, potes, latas,
pacotes e mais pacotes

te vejo cruzar e descruzar as pernas
costura um rasgo num velho vestido
acaricia uma peça íntima
e pensa em mim
em mais, em pi, em si.
Há mais alguém.

Então te vejo reabrir os olhos
o quarto, as pernas
um ai, um mais e mais:
cruza os dedos, as mãos,
os braços

palavras se abrem e se cruzam
e neste mesmo olhar o silêncio se abre
e abre novas perspectivas.

Um rasgo aberto no peito.
No leito exposto um rasgo.

Drops Rock 5 - Carreira Solo

terça-feira, 15 de janeiro de 2013


Personagem famosíssimo nas altas e baixas rodas.
Criado pelo meu grande amigo e parceiro de trabalho Fábio Santos Sant'Anna...
O acesso para o blog dele está no link da postagem abaixo:

Ia fazer uma resenha sobre os 50 tons, mas acho que a charge ao lado é melhor que qualquer texto que eu poderia fazer sobre o tema.

As Boas do Sant'Anna - um blog especializado em generalidades: 50 Tons de Patonheta

As Boas do Sant'Anna - um blog especializado em generalidades: 50 Tons de Patonheta

Interrogatório


Nãu. Nãu foi assim. Pára. Nãu. Quê? Pára. Pára di guiá minhas palavra. Nãu. Eu nãu dissi issu. Nãu. Nãu foi issu. Eu tinha ditu qui foi eli qui tinha batidu na porta di casa. An?! Issu. Assim mesmu.
Eu tava venu televisãu. O quê? Faz alguma diferença? Faz? Sei lá... Novela, filme, (...) talvez. Porra, eu num lembru. É. Dessi jeitu.
Pára di falá, porra !!!
Cansei. Cansei. Nãu queru mais falá nada hoji. Nãu. Pára. Disliga essi gravadô merda...

(...)

U quê? Du começu?
Eu tava sentadu nu sofá da minha casa quanu a campainha tocô. Era quais oitu da noiti, sei dissu purque minha vizinha gostosa ainda nãu tinha passadu na rua gritanu cu maridu dela.
Ah, tá bom. Us fatu. Us fatu. Tá. Eu nãu sei mais u qui cês qué qui eu fali. Eu já não confessei?
Fui eu. Fui eu.
Eu matei. Fui eu qui matei.
Nãu.
Foi assim: era quais oitu da noiti i meu pai chegô im casa. Tava bêbadu.
U cheiru.
Ah, cê sabi qui alguém tá bêbadu quanu...
Ô merda. Eu convivia cu cara, porra. Quandu si convivi cum alguém eu achu qui dá pra sabê quanu a pessoa tá ou nãu di porri.
Tá. U cheru. A camisa aberta. Ele tava falanu imboladu e tamém tava gritanu.
Sim. Me deu raiva sim.
Nãu. Já falei procês qui u motivu nãu foi essi.
Mas cês qué sabê comu foi ou qual foi u motivu?
Sei lá. Achu qui uma coisa levou à outra.
U fatu é qui eu não lembru di tudu. Até a parti do telefonema eu lembru.
Eu tava veno televisão i a porra du velhu cruzanu na minha frenti. I eu cu saquinhu já na lua.
Intãu eli veiu i mudô di canal. Nãu. Nãu foi purissu. Eli fazia issu todu dia.
Mas aí ele começô a vomitá.
Na sala porra. Ondi é qui a genti tava?
Depois? Aí eu pensei qui eli ia agí cu mínimu di decência e ia levantá e limpá aquela merda qui tinha feitu e qui duranti uns cincu ou dez minutu cuntinuô fazeno.
Nãu. Num limpô.
Então eu levantei da sala e fui pru meu quartu. Mas a porra du cheru du vômitu du velhu tava mi perseguindu. I u filhu da puta continuava gritanu. Já falei qui eli desdi quintrô não parava di gritá, né?
Foi aí qui eu peguei meu telefoni i liguei pra Sônia. An? A minha namorada.
Aí apagô tudu. Num lembru mais de nada.

(...)

É. A campainha tocanu. Era u vizinhu du ladu perguntanu u purquê da gritaria.
U qui eu respondi? Ora essa, mandei eli tomá no oio do cu i continuei picanu u corpu.
Já dissi qui não lembru. Acho que foi cu pedaçu di pau queu arranquei da cama.
U sangui na minha boca? É. Foi na hora da raiva.
Cê acha mesmo que é fácil matá um home à paulada? Já tentô?
U filhu da puta nãu morria, entãu eu fui ficanu cu raiva, cu raiva e comecei a mordê, a mordê, a mordê...
É. Dissu eu lembru. U gostu di sangui na boca. Mistura di azedu, álcu i doci.
Gostei.
Faria.
Igualzinhu. Tudu di novu.
Possu í agora?
U quê? Di novu? Qui mais cê qué sabê, porra?
(Publicado originalmente em "A divina tragicomédia humana" de Mauro Marcel)

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Avestruz, Nelson Motta e estômago


    Fazia muito tempo que não acompanhava ficção na TV, as opções são fraquíssimas e não adianta tentar valorizar o produto nacional quando o fadado produto se limita a novelas mal escritas, mal produzidas, atores que me matam de vergonha alheia.
É preciso muito boa vontade pra ignorar tantos defeitos.








     Sou do tempo de novelas antiquadas, todos se sentavam ao redor do aparelho e a TV era PB, o que significava preto e branco, mas a imagem era cinza. Era muito bom assistir televisão naquela época, não tínhamos Full HD, mas tínhamos Dias Gomes escrevendo Pagador de promessas, Roque Santeiro, O bem amado e seus etc.

     Não me permito ataques de saudosismo, mas voltei ao youtube, (nós agora temos este mecanismo maravilhoso que por si acaba com qualquer ataque passadista), fui até o youtube pra comprovar que a TV da minha infância era péssima também e me frustrei, ou antes, comprovei o que já sabia instintivamente: a TV vem piorando com o passar dos anos e olha que já criticavam o baixo nível das programações desde há muito, desde o início.

     Como posso ficar feliz assistindo o que quer que esteja passando hoje no horário "nobre"  sendo que havia Beto Rockfeller, Pecado Capital, Vale tudo na TV PB de antigamente.

     Quem quiser que compare, está tudo muito ruim e o ruim é considerado de nível elevadíssimo, pois não vejo ninguém reclamando, mudando de canal, ou mesmo fazendo o absurdo de desligar a TV. 
     Há tantos recursos hoje: DVD, CD, vídeo game, cinemas, teatro, TV a cabo, nem lembrava que havia novelas.
     Não lembrava até ouvir falar que haveria uma minissérie na globo baseada num livro do Nelson Mota, que não é conhecido por sua literatura, mas que, por ser tão sólido crítico musical, me levou a assistir o produto global feito com sua obra: "O canto da sereia".
          Se Nelson Motta for tão bom crítico de TV como é musical provavelmente deve estar com a cabeça enterrada na areia como um avestruz de pernas muito longas e esquisitas. O canto da sereia só não foi uma série pior porque foi de tiro curto, apenas quatro episódios. Mas quanta ruindade em apenas quatro momentos.

     Mas não é daquele ruim bom de assistir, às vezes uma produção é tão ruim que dá gosto de ver, a produção sabe o que está fazendo e não têm medo de parecer ridículos, porque é assim que tem que ser. O que não é o caso da Íris Valverde com sotaque baiano, um elo perdido entre Ivete Sangalo e Cláudia Leite. 

     O Marcos Palmeira como detetive particular sonhando com a protagonista e sua melhor amiga na cama agarrando-o, numa cena que causou ereções na platéia, mas que não tinha nenhuma função à narrativa, assim como o fato de haver uma caso de amor entre Sereia e sua produtora, ou o detetive Gustavão (Marcos Palmeira) transar com a produtora logo após ela se declarar lésbica: deve ter sido pra tirar a prova pra si mesma. Ou pra atender a cláusula que exigia que em cada episódio apareceria certo tempo de nudez, tanto da protagonista, quanto de qualquer mulher que aparecesse ao redor da Sereia.
     Chegaram ao cúmulo de mostrar a Mãe de Santo transando com o ex-namorado da Sereia, que transou com o marido da mãe de santo, quase uma suruba, mas sem gosto, sem enredo, sem sexo, sem nexo.
     A coragem da produção está no fato de a protagonista levar um tiro logo no primeiro episódio, raro uma história em flashback pelas paragens brasileiras, mas o que se segue é tão ruim que não dá nem vontade de descobrir quem matou, se assisti aos quatro dias foi pela esperança de que algo aconteceria e pelo mesmo motivo que todo marmanjo assistiu, ver a Íris Valverde pelada, dupla frustração. Essas atrizes de hoje têm de aprender a ficar peladas em novelas com a Vera Fischer, a Isadora ribeiro, até a mel Lisboa. 

     E nada acontece. Quem mata a Sereia é o gay da história (todo enredo global tem que ter um gay - nada contra, mas cotas têm limite, mesmo o gay tendo sido feito pelo competentíssimo João Miguel de filmes maravilhosos como "Estômago"  e "Cinema, aspirinas e urubus"). 

     O auge da ineficácia da construção do enredo foi o fato do marqueteiro do Governador da Bahia, que era o mesmo da cantora (esqueci de mencionar que ela era cantora), o marqueteiro foi assassinado e o crime fica em suspenso, possibilidades se abrem e são abandonadas.
     E pouco importa se no livro foi assim, a mídia é outra, outras necessidades se abrem, por isso ninguém me chame de pedante quando eu falar que  não gosto de novela, odeio Rede Globo e não perco meu tempo com TV aberta.
     Se você não entendeu o que eu descrevi acima, não se preocupe, não me dei ao luxo de revisar o texto, assim como os produtores desta bomba narrativa não se deram ao trabalho de fazer uma produção com um mínimo de qualidade estética. São capazes de fazer algo ainda hoje, me lembro da adaptação do "Dom Casmurro" feito há alguns anos, primoroso. Se bem que esse não assisti, ainda bem que existe youtube: pra eu assistir ao Dom Casmurro após tê-lo perdido, assim como trechos das novelas que citei acima, filmes do mundo inteiro, curtas metragens, até filmecos produzidos por mim. Tudo competindo com o Canto da Sereia, que está lá com certeza, on line, quiçá para sempre.
     Sem querer parecer mais pedante, deixa eu voltar para o meu Philip Roth. Não sabe quem é? Joga no google.
     Ah tá... Por que escrevi esse texto? Pra que não tenha sido um simples exercício de futilidade assistir a tamanha porcaria. Pelo menos isso...

Por Mauro Marcel
     

domingo, 13 de janeiro de 2013

As mulheres nuas de Santarém


As mulheres nuas de Santarém lutam pelo direito de permanecerem vivas e pelo direito de gozarem desta vida. Sabem que o futuro a elas pertence e que é um exercício lúdico o ato de pensar.
As mulheres nuas de Santarém pertencem a uma fina casta de pessoas jovens, despreconceituadas e cativantes.Querem tomar o poder não pela força e nem pelo voto. As mulheres nuas de Santarém sabem que o único jeito de dominar é entrando e permanecendo nas mentes de todos os jovens e velhos, homens e mulheres, bichos e gente.
As mulheres nuas de Santarém acreditam que governo e população juntos podem lutar mais pelo engrandecimento cada vez maior de sua nudez. Acreditam na artificialidade coerente das propostas dos cirurgiões plásticos, mas ojerizam os softwares que escondem os defeitos celulíticos de uma ou outra pretendente à mulher nua.Essas são chamadas por elas de falsas mulheres nuas e recebem a cada nova reunião da Liga das Mulheres Nuas de Santarém uma dose cada vez maior do puro escárnio.
As mulheres nuas de Santarém fazem doações, mas odeiam o paternalismo.
Fazem caridade, mas escondem da direita o que faz a esquerda.
Fazem amor pelo amor.
Fazem amor pelo sexo.
Fazem amor pela grana.
“As mulheres nuas de Santarém estão para o mundo como a alma está para o corpo”. Esse é o lema maior da Liga das Mulheres Nuas de Santarém.
Vão a exposições, freqüentam museus, se engajam em questões políticas, sociais e filosóficas, e estão sempre procurando alguém para ajudar.
Trocam muito de mesa.
Trocam muito de cama.
Experimentam todos os gostos do mundo e optam sempre pelo mais extremo.
Fazem verdadeiras viagens diplomáticas pregando aos quatro cantos do mundo a ideologia da Liga das Mulheres Nuas de Santarém.
Lutam pela total liberdade e por fim querem o direito pleno sobre vida e morte de qualquer ser vivo.
As mulheres nuas de Santarém querem matar as mulheres vestidas de Santarém.

Por Mauro Marcel [Publicado em "A divina tragicomédia humana"]

Mônica Top Descendo Até o Chão

Drops Rock 4 - Rock Nacional

sábado, 12 de janeiro de 2013

O cômodo mais cômodo


Entrou com a revista embaixo do braço, reparou em todos os detalhes: o chuveiro, a saboneteira, o espelho, o creme dental close up, os azulejos brancos e alvos, o forte cheiro de pinho oriundo do desinfetante que sua mulher utilizava para limpar aquele ambiente, reparou na pequena e pudica janela e no papel higiênico Primavera. Ah sim! Havia papel higiênico, então o cenário estava formado: tinha verdadeira ojeriza em fazer aquilo e depois sair gritando pela casa pa-pel-hi-giê-ni-co!!! E ali seria pior porque não havia mais ninguém em casa, sua esposa só chegaria no outro dia, ou seja, teria de sair casa afora com a bunda suja atrás do sagrado instrumento de limpeza.
Mas já que havia tudo o que podia esperar de um banheiro reparou naquilo que não reparara ainda: a privada. Olhou com um pouco de sarcasmo e ironia; eu diria até que com um certo ar de superioridade racial: “um algo feito tão simplesmente para...”
Deixa pra lá.
Abaixou as calças, virou e sentou.
Abriu a revista numa página qualquer e começou a atender ao chamado fisiológico.
Não sei se leu, mas quando terminou foi com nojo que olhou para baixo, cuspiu, abaixou a tampa do assento, higienizou-se, deu a descarga preparou-se para tentar sair do banheiro após, é óbvio, levantar a roupa.
Digo tentar porque quando foi abrir a porta não conseguiu. Forçou a maçaneta, deu murros, gritou socorros, é, gritou socorros, pontapés, mais murros, socorros, socorros e nada.
Não acreditou. Estava preso dentro do próprio banheiro.
Sabe aquelas coisas que só acontecem com os outros? Estava acontecendo com ele.
Não se desesperou. Não perderia o controle. Era só esperar por sua esposa – a Lúcia - ela então chegaria e abriria a porta por fora. Pensou no ridículo da cena, porém, devido às circunstâncias, não havia outro modo.
Sentou na privada e sentado esperou, esperou, esperou. Dormiu. Não sonhou. Acordou. Não sabia quanto tempo se passara, mas viu pela janela que anoitecera. Estava há mais de oito horas no banheiro.
Ninguém em casa ainda. Novamente tentou arrombar a porta. Murros. Chutes. Pontapés. Joelhadas. “Ai”. Pedidos de socorro. “Socorro, socorro, socorro!” Tirem-me daqui!
E nada.
Não. Não perderia o controle. Ressentou e começou a ler a revista. Desta vez pelo começo.
Página 5, página 6, página 10, página 15, página 25, página 60, página 61, página 62, página 100; mas será possível!?!?!
 O dia lá fora já amanhecia e ninguém para tirá-lo dali.
Não. Não perderia o controle. Tirou a roupa e começou a tomar banho, um banho lento e calmo, daquele de noiva em véspera de núpcias, não esqueceu de limpar nada, entre os dedos dos pés, atrás das orelhas, cada dobra, cada centímetro quadrado de seu corpo, não esqueceu nenhuma parte, secou-se. Olhou-se no espelho e deu uma leve risada: “Preso no banheiro, quem acreditaria?”
Sentou na privada e voltou a ler a revista, página 5, página 6, página 10, página 20, página 30. 35. 60.100.
Página 5; página 10; 20; 30; 60; 90; 100;...
Página 5, página 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, ..., 100.
Página 5...
Escutou um barulho. Alguém chegara em casa. Bateu na porta, socorro, socorro. Ouviu uma voz, sim era sua esposa que chegara.
- Lúcia! Lúcia!
Ela o atendeu:
-Oi! O que ’cê quer Régis?
-Me tira daqui!
-O quê?
-Eu ‘tô preso no banheiro.
-‘Cê ta brincando.
-Eu pareço estar brincando, droga?
-Como você foi ficar preso aí?
-E eu vou saber?
-Espera que eu já abro.
Lúcia então forçou a porta, deu murros. Pontapés. Joelhadas. “Ai!” Marretadas. E nada da porta abrir.
-Vai buscar ajuda Lúcia!
-Mas quem?
-Eu vou lá saber? Chame o vizinho, algum parente, a polícia, os bombeiros, a defesa civil, mas pelamordedeus me tira daqui!
Então ela saiu desgarrada como trem bala e de fato chamou: o vizinho, não, os vizinhos, toda a família, parentes, até aquele primo do interior que nunca aparece, a polícia, os bombeiros, a defesa civil, o exército, o pentágono, a NASA, e a cada nova tentativa um fracasso.
Chegou a imprensa. E nas primeiras páginas dos jornais do dia seguinte estampado estava o drama do homem preso no banheiro há mais de sessenta horas, noventa horas, cento e vinte, duzentas horas, trezentas...
E tentaram de tudo para tirá-lo: britadeira, túnel subterrâneo, dinamite, nitroglicerina, serra elétrica. Mas nada, nada quebrava a resistência daquele banheiro que parecia mais um abrigo antinuclear.
E Régis lá , lendo e relendo a revista, tomando banho, lavando a cueca no lavatório, escovando os dentes, fazendo freqüentemente seu pipizinho, seu cocozinho, barbeando-se a cada duas horas e com a mesma lâmina. E desesperando-se a cada novo fracasso de seus salvadores.
A rede globo até passou uma mini câmera pela janelinha e deu com exclusividade uma entrevista com o pobre homem que descreveu seu drama de proscrito em seu próprio privativo.
E foram meses de tentativa de tirar o “toillete man” do banheiro. Até que a imprensa deixou o caso de lado, os bombeiros, a polícia, a defesa civil, a NASA e pentágono desistiram, a mulher se cansou de passar comida pela janela e, exausta, passou a papelada do divórcio.
Sozinho, sem amigos, sem esposa, e preso no banheiro, Régis pensou em suicídio, mas a lâmina estava tão cega de tantas barbeadas que nem o pulso conseguiu cortar.
Até que um dia, na altura da página 23, a porta sem mais nem menos se abre. Simples como num passe de mágica, abre sozinha, sem bombas, socos ou pontapés.
O homem sorri. Levanta-se da privada. Livre enfim, não podia acreditar.
Revê cada coisa como da vez que entrou: o espelho, o chuveiro, a saboneteira, o creme dental close up, tudo como se estivesse se despedindo de uma fase ruim da vida.
Espreguiçou-se e tomou o rumo da saída. Mas ao chegar ao batente, antes de transpor-se para fora, bateu a porta e trancou-se novamente no banheiro, sentou e retomou a leitura na página vinte e três. A página com uma matéria muito elucidativa sobre a vida em sociedade e suas conseqüências na personalidade do homem moderno.
(Publicado originalmente em "A divina tragicomédia humana" de Mauro Marcel)