Acabei de ler um livro chamado "Mil e um filmes pra ver antes de morrer", (mentira, já li faz algum tempo), com este vem uma coleção de outras mil e uma coisas pra se fazer antes de bater as caçoletas: mil e um livros pra ler, mil e um lugares pra conhecer, mil e uma músicas pra ouvir, mil e um discos, mil e um vinhos, mil e uma cervejas...
Alguns poderiam perguntar o porquê do número mil e um, talvez por indicar imponência, exagero, ou uma vida completa. Completa?
Aprendi muito sobre cinema com o livro "Mil e um filmes...", assim como aprenderia muito com o dos outros temas, o que me incomoda nesta história não é o número, mas a imposição, afinal, devemos fazer tudo isso antes de morrer.
Lembro-me de um velho ditado que dizia que um homem só estaria com a vida completa após escrever um livro, plantar uma árvore e ter um filho. A receita da vida ideal.
E a mulher como seria?
Tenho medo de receitas prontas por isso me indisponho quando alguém tem a fórmula da felicidade.
E ela está em todos os lugares, sempre com algo que temos que comprar e comprar e comprar. Cada vez mais. Ao infinito.
Quando vejo a coleção de livros citada eu não penso em mil e uma possibilidades, mil e uma experiências, penso em mil e uma tranqueiras que querem me vender. Sempre meu dinheiro ganhado cada vez com mais suor e sendo direcionado para a felicidade eterna, o fim desejado, quando completar a lista das coisas que preciso ver, ler, conhecer, comprar...
Também há um programa num canal imbecil denominado "Coisas pra fazer antes dos trinta". Já devem imaginar do que se trata. Ou não, pra mim pouco importa.
Quem deu a um programa de TV a decisão sobre o que deve ser feito de minha vida antes ou depois de trinta, quarenta ou cinquenta?
Sempre a idolatria à juventude, velhos que se orgulham de serem jovens, quando todos sabemos que os velhos têm que se orgulhar é de não serem mais idiotas como os mais jovens.
Mas o que se vê é aquele velhinho andando de montanha russa pra mostrar que não perdeu a juventude dentro de si, quando deveria (nessa altura da vida) questionar os motivos que levam uma pessoa a se divertir com tamanha futilidade.
Ou até mesmo pular de paraquedas, mas por outras razões: as corretas; outros motivos: os errados.
Quais motivos levam uma avó a querer se lipoaspirar pra parecer com a netinha e caber naquela mini saia?
Estou sendo ranzinza? Sempre fui conhecido por isso.
Você pode estar se perguntando sobre o que é este texto, afinal os assuntos vão se misturando, se avolumando.
Quero falar de vida e experiências.
Quando se é pautado num catálogo, mesmo que este catálogo não seja o impresso como os que citei no primeiro parágrafo, a vida vira uma bosta.
Estou falando das listas que nos aprisionam, nos fazem viver uma realidade que não é nossa, nos empurrando pra uma enxurrada de consumismo, alienação, perdas, futilidades, todas muito bem fundamentadas e justificadas com o argumento de que precisamos manter nossa jovialidade, morrer é pra velhos e ninguém quer este peso, nem eu, nem você, nem o Caetano.
Porque velho no Brasil é sinônimo de moribundo. Num país que trata mal a todos e reserva aos seus patriarcas a marginalidade da marginalidade da marginalidade. Porque é sabido que os jovens pertencem à faixa etária que mais consome, se não há como ampliar a vida, amplia-se a juventude, mesmo que fraudulentamente.
Houve uma época em que os grandes mestres da humanidade eram escritores como Oscar Wilde, Leon Tolstói, Vladimir Maiakovski, Machado de Assis, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Gertrud Stein; filósofos como Sócrates e Kant; compositores como Mozart e Stravinsk; dramaturgos como Shakespeare e Beckett.
Hoje os grandes mestres da humanidade são produzidos em série pela mídia que os constroem e os reconstroem infinitamente. A Ana maria Braga é o guru de muitos, a Oprah de outros tantos; assim como Diogo Mainardi, J. K. Rowling, Stephenie Meyer, Paulo Coelho, Zíbia Gaspareto. E sei lá... Quentin Tarantino, P. C. Siqueira, Bento XVI...
Não sou saudosista, mas lembro que na minha infância havia uma coleção de cadernos com capas estampadas com personalidades como Einstein, Freud, Graciliano Ramos. Qual a imagem que estampa os cadernos nas escolas hoje em dia?
Não sou saudosista, mas lembro que na minha infância havia uma coleção de cadernos com capas estampadas com personalidades como Einstein, Freud, Graciliano Ramos. Qual a imagem que estampa os cadernos nas escolas hoje em dia?
O problema de viver uma vida que não é nossa é que só percebemos quando é tarde demais "E não se engane não, tem uma só/Duas mesmo que é bom/Ninguém vai me dizer que tem/Sem provar muito bem provado/Com certidão passada em cartório do céu/E assinado embaixo: Deus/E com firma reconhecida!" (Vinícius de Moraes)
É engraçado como algumas pessoas têm as receitas da felicidade, ensinando como fazer viagens, emagrecer, estudar, viajar, comer, rezar e amar. Tudo isso desde que compre o livro, assista o filme, veja o programa, consuma, consuma, consuma.
Mas não é tão simples, ninguém vai se isolar no alto do Tibet abrindo mão desta sociedade imbecil e infantilizada. Ainda somos aquela criança que precisa de atenção pra se sentir amada, mesmo que para isso tenhamos que mentir com os milhares de amigos virtuais, as centenas de filmes assistidos e não pensados, os livros com argumento fraco e parcelado em três para o editor, o escritor e o lojista lucrarem seis vezes mais, as músicas fora de contexto, os museus que visitamos mundo afora mas que não compreendemos porque está tudo muito rápido.
O Bruno de Luca falou que a gente precisa conhecer aquele boteco em Madri porque ele é excepcional, e vou ficar com vergonha de dizer que achei uma droga porque gastei muito dinheiro lá. E dinheiro compra até opinião, ninguém vai falar que não gostou de um prato se pagou mil reais pra comê-lo.
O Bruno de Luca falou que a gente precisa conhecer aquele boteco em Madri porque ele é excepcional, e vou ficar com vergonha de dizer que achei uma droga porque gastei muito dinheiro lá. E dinheiro compra até opinião, ninguém vai falar que não gostou de um prato se pagou mil reais pra comê-lo.
Ou as velhas parábolas de pessoas que fizeram caminhos sagrados percorridos por grandes mestres e que voltaram infelizes pra casa porque aqueles não eras seus caminhos, mas os caminhos de outros, percorridos em outros momentos.
E mais do óbvio: o que faz a felicidade de um jamais fará - igualmente - a felicidade de outro.
Então, que se danem os conselhos, as listas. Estejamos todos soltos. E sem vergonha de se divertir num show do Justin Bieber, porque a opinião corrente é a de que ele é uma droga.
Já me diverti muito mais assistindo "Curtindo a vida adoidado" que contemplando aos filmes do Godard, já senti muita vergonha em declarar isto, nem sou tão velho pra começar a não me importar com a opinião dos outros, o problema é que os outros são tão infantis.
Até os potencialmente intelectuais - hoje chamados de geek: capitalizaram o pensamento, subornaram o cérebro, pagaram com mil e um games, mil e um sites e mil e outros tantos desejos pra comprar fazendo a roda do capitalismo girar.
Houve um tempo em que intelectual era quem lia, estudava, discutia o sentido da vida. Hoje intelectual é quem joga RPG, faz final no Street Fighter com o Zangief e discute o último episódio do The Big Bang Theory.
A realidade, pelo menos pra mim é uma só: nem tudo precisa ser divertido e quase nada é.