Há mais ou menos três décadas alguém
ouviu um vinil com um coelho desenhado na capa que continha vários rocks em
versões remixadas. Tais mixes tocaram exaustivamente nas FMs, nos bailes de
formatura, nas vitrolas existentes e até em elevadores.
Para esse alguém o rock surgiu ali.
Há mais tempo ainda, algumas crianças
dançavam aos finais de semana uns sons que pareciam músicas de filmes de
cowboy. O disco tinha uma capa amarela com cinco rapazes vestidos de terno
intitulado Os Incríveis.
Para aquelas crianças o rock surgiu
ali.
Certa feita, um programa no dial da
FM apresentou um especial de ano novo dos Beatles. No momento que tocou Twist
and Shout um casal vizinho quebrava o pau e panelas que voavam.
Para alguns vizinhos do casal, que
ouviam a música e assistiam às cenas, o rock também tinha seu início ali.
Cada qual carrega a sua versão para o
início do rock em suas vidas. E mesmo para a História e para os historiadores
não seria diferente.
Talvez você já tenha ouvido falar que
o rock surgiu com um gordinho chamado Bill Halley cantando Rock Around the
Clock, ou mesmo que o ritmo teve sua origem com os negros norte-americanos
destilando suas dores no Blues. Ou ainda nasceu ao som dos violões acelerados
da música country. Desse liquidificador musical admitimos que todos colaboraram
com o nascimento da criança.
Mas alguma coisa soa bem familiar aos
ouvidos no som de In the Mood – música de uma Big Band originária da década de
1940 comandada por Glenn Miller – (se você nunca ouviu falar desse sujeito,
pergunte ao seu pai ou avô).
Pois bem: o que tem a ver o Jazz de
Glenn Miller com nossa análise? O ritmo, o compasso, as estripulias dos metais
– (metais aqui são os pistons, as cornetas, saxofones, etc.) – e a dança bem
semelhante ao que seria Rock’n roll.
E podemos atrasar o relógio de Bill
Halley mais algumas décadas e chegarmos aos anos de 1920 com o Charleston e o
Foxtrote. Se quiser fazer um teste é fácil: basta pegar uma filmagem do pessoal
dançando esses sons, tirar o áudio original e colocar um Rock do Elvis. Assista
e terá o resultado.
E por falar em Elvis, não poderíamos
deixar de falar em Chuck Berry.
Sim, Chuck Berry, um rapaz negro,
músico excepcional que compôs uma música autobiográfica denominada Johny B.
Goode. Canção que conta a história de um jovem semianalfabeto com um único
talento: tocar guitarra. E as pessoas vinham de todos os lugares para ouvi-lo.
Chuck Berry deu uma grande coisa ao rock, o grito. Cantar rock não basta, tem
que haver o grito, a postura, o jovem Chuck nos ensinou gritando “vai Johny vai
vai vai” (go Johny go go go).
Mas foi Elvis o primeiro ícone
roqueiro. Foi ele, cantor excepcional, quem misturou a voz negra à figura do
homem branco unindo os Estados Unidos racistas em torno de uma imagem
rebolativa. A pélvis de Elvis foi
proibida de ser mostrada na TV, eram os anos 50, a segunda guerra tinha acabado
há pouco e os jovens se inspiravam enquanto as meninas transpiravam.
Os rapazes o invejavam ao redor de
todo o mundo.
Todo menino levantava a gola das
camisas, comprava uma jaqueta de couro, levantava o topete e não queria que
ninguém pisasse em seus novos sapatos de camurça.
Para Erasmo Carlos o rock começou
quando veio parar em suas mãos alguns discos de Elvis, para o jovem Paul
McCartney ouvir “Heartbreack hotel” fez despertar em sua mente possibilidades
nunca imaginadas “era como se ele cantasse das profundezas do inferno”. Isso
fez um verdadeiro milk shake na mente de Paul, George, John, Ringo, Mick, Keith
e muito mais.
O rock ainda era ‘n roll até o início
dos anos 60, o termo vinha de uma gíria inventada por um DJ americano, nunca
ouvi uma tradução digna, seria algo como “botar pra quebrar”, ao dançar, o
rock’n roll nasceu como um estilo dançante, ousado, abusado, na pélvis de Elvis
quase erótico.
O rock “and roll” é o grito do Chuck
na pélvis de Elvis. Entendeu?
Tem uma cena exemplar no filme
“Grease”, em que há uma festa em plenos anos 50, assista e perceberá qual o
clima que predominava num recinto pleno de pedras rolando, aí traduza rock’n
roll do seu jeito.
Na segunda metade dos anos 60 veio a
invasão britânica aos Estados Unidos liderada por Beatles e Rolling Stones;
depois hippies, contracultura, LSD, Woodstock e muito mais.
O rock perdeu o sobrenome ‘n roll
transformando-se num caleidoscópio chamado simplesmente de rock, longe dos
primeiros acordes do Bill Haley ou Chuck Berry, e mesmo o Elvis do hotel do
coração partido. Falar de rock não é apenas falar de música, é necessário ir
além de estilos, modas passageiras, falsos ícones, pseudoverdades, gostos
pessoais.
O rock se construiu através de
canções, cantores, músicos, produtores, arranjos, instrumentos, invenções,
capas de discos, atitudes, sexo, drogas, loucuras, festivais, mídia e mais,
mais e mais.
Deste caleidoscópio trataremos nos
capítulos que seguem, sem nos preocuparmos com a história. O pontapé foi dado
pelos caras do hotel, do relógio e das grandes bolas de fogo, mas não
precisamos seguir uma linha histórica para entender nosso assunto. Nossa
proposta é bem leve e solta.
Mas quero deixar meu leitor um
pouquinho mais nervoso comigo, sim, não vou te poupar, escolheu este livro e
quero que vá até o final, mas não farei grandes esforços para deixá-lo com ele
aberto, a não ser o fato de dizer que você é a sua razão, assim como o público
e não a música é a razão do rock.
O rock teve sim um início, mas teve
um fim? Claro que não, diriam os mais afoitos, ainda existe rock sendo feito,
há música pipocando por toda parte. Mas não é o que pensa este velho (não tão
velho) roqueiro. E não é aquele papo tão velho quanto o rock de que o rock
morreu. Ainda existem tropicalistas soltos por aí, mas não vejo ninguém
chamando MPB de tropicalismo. Nem chamando Luis Fernando Veríssimo de escritor
modernista porque ele usa linguagem coloquial em seus textos.
Ainda há rock sendo feito, ainda há
pélvis, ainda há gritos, mas existe uma palavra alemã “zeitgeist” que explica
bem o que quero dizer. Significa “espírito do tempo”, algo como modo de pensar,
agir, falar, momento histórico, seres humanos, tudo o que envolve uma época.
E o rock que falamos aqui não é o
rock que é feito por aí, muito embora exista muita música boa sendo feita. O
rock enquanto música está vivo, enquanto movimento cultural está morto, não
está enterrado porque a música ocupa os espaços, está em todos os lugares, e cá
para nós, a música é muito boa, mas a música é só uma parte do zeitgeist.
O rock é a única música que se vivia,
se comia, se cheirava, se transava, se morria.
Desculpa novamente, hoje em dia o
funk carioca faz o papel que o rock fazia muito melhor que o rock. Deixa eu
arrumar a frase, ela ficou meio torta, mas não me arrependo de tê-la escrito: o
funk carioca exerce o papel de sexo e drogas que pertencia ao rock. O problema
é que o funk é tão primário que não nos serve como música, mas haverá um
capítulo sobre o funk, se quiser vá direto a ele, eu recomendo que siga nosso
roteiro. Ou faça do seu jeito, como os
roqueiros faziam (e fazem).
O rock, como todo movimento cultural,
teve um marco inicial, que definimos como o grito do Chuck e a pélvis
rebolativa do Elvis. Ponho como marco final do rock um evento mais estático no
tempo: o suicídio de Kurt Cobain. Nada seria igual a partir dali.
Mas este é o meu marco, escolha o
seu. Alguns marcos possíveis e impossíveis que já ouvi:
O rock acabou quando:
-John Boham morreu;
-Os Beatles acabaram;
-Elvis foi para o exército;
-John Lennon foi assassinado;
-Renato Russo morreu de aids;
-Inventaram o rock’n rio por um mundo melhor;
-Alguém teve a infeliz ideia de misturar rock com rap;
-Surgiu a MTV;
-Alguém cantou “Anarchy in the UK;
-O Metallica cortou o cabelo;
-O Blitz berrava “você não soube me amar”
-Michael Jackson, Madonna e Tina Turner foram aclamados como
ídolos rock nos anos 1980;
-A Legião Urbana cantou Menudo;
-A primeira distorção foi feita;
-Um negro foi assassinado na frente das câmeras no festival
de Altamont durante a apresentação dos Rolling Stones;
-Surgiu o Axé;
-Surgiu a expressão pop rock.
Brincadeiras
à parte, todos os pontos acima citados podem ser considerados o fim de algo ou
o início de outra coisa. Como a Blitz cantando “você não soube me amar”. Música
que infernizou as rádios nos anos 1980, ainda hoje toca vez ou outra,
considerada a decadência da juventude brasileira, mas que representa na verdade
o início da popularização do rock no Brasil. Graças à Blitz surgiram Barão
Vermelho, Cazuza, Titãs, Ira!, Engenheiros do Hawaii, João penca e seus
miquinhos amestrados, Paralamas do Sucesso, Gang 90, Camisa de Vênus, e muito
mais. Mas também graças à Blitz surgiram, Kid Abelha, Mamonas assassinas, PO
Box, Virguloids e muito menos.
Deixemos pra
você as conclusões, tiramos as nossas. Vamos para o próximo capítulo.
(Texto introdutório do projeto "Manual do rock para as novas e velhas gerações" de Fábio Sant'Anna e Mauro Marcel)
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