O rock mudou de estilo, influenciou estilos, foi influenciado por outros tantos, porém alguns estereótipos permanecem e seguem fortes ao longo dos anos. Um dos mais fortes é do roqueiro com cabelo comprido.
O cabeludão está presente em toda a
cultura rock a partir dos anos 60, sobreviveu aos 70, verdadeiras orgias
capilares aconteceram nos palcos dos 80 e até mesmo os 90 com Nirvana e
companhia grunge ou o século XXI com Strokes e outros tantos sobreviventes de
várias décadas que continuam tocando e fazendo as cabeças, chacoalhando as
madeixas e balançando as tranças.
Rastafáris como Bob Marley,
bagunçados como outro Bob, o Dylan. Cabelos de boneca Barbie como de Sebastian
Bach (Skid Row).
Havia uma época em que seria uma
verdadeira heresia uma banda de heavy metal subir ao palco com os cabelos
cortados. Jogar o cabelo para a frente e descer o braço na guitarra e sentir o
público fazer o mesmo com a chamada “air guitar”, a famosa guitarra imaginária
que todo headbanger (e não headbanger) já tocou.
Foi o Metálica uma das primeiras
grandes bandas metaleiras a ter seus integrantes com cabeças depiladas.
Mas se me permitem uma opinião, devo
dizer que com as bandas envelhecendo não é raro encontrar roqueiros calvos, a
velhice chega para todos e o que fica pelo caminho é a lembrança das madeixas
que foram. Inclusive pra você que agora lê e vê seus cabelos crescerem
sentindo-se poderoso por ser um contestador, um verdadeiro roqueiro.
Mas muito shampoo e intensa briga com
os pais depois, será que você já se questionou a respeito do motivo que levou o
primeiro roqueiro a ter seu cabelo crescido?
Entretanto é esta a história que
explica o cabelo comprido balançando de Janis Joplin, Jim Morrison, Bono Vox
(dos anos 80), Europe, Iron Maiden, Queen, The Who, Sepultura, Motorhead,
muitos, muitos, quase todos, até nosso Paulo Ricardo de ombreiras e olhar 43 a
enlouquecer as menininhas de outrora, matriarcas de famílias de hoje.
Falando sério, um cara no palco com
uma guitarra nos braços e cabelo curto quase pensamos em jazz, blues e afins,
talvez um engomadinho de terno da banda de apoio do Frank Sinatra.
Eu sei, estou reproduzindo
estereótipos, mas é assim que vemos o mundo, temos que questionar e foi o que
os roqueiros começaram a fazer nos anos 90, 2000 e adiante. Talvez essa
confissão não impressione a ninguém, mas para mim foi um choque quando o
Sepultura cortou o cabelo, o Metálica, outros e outros. Eu, que nunca tive
cabelo comprido, senti que o rock começava a morrer, se esfacelar com as
tranças do metal.
Essa história de cabelo começou com a
II Guerra Mundial. Os primeiros roqueiros eram filhos de soldados aleijados,
proletários, pobres e que sofriam na pele as consequências do fim da guerra.
Muitos órfãos sem a menor condição de ascender socialmente, não à toa essa é a
história de John Lennon, órfão de pai, abandonado pela mãe vivendo a infância
na Inglaterra do pós-guerra.
Sabemos que as gerações mais jovens
buscam questionar as anteriores, o cabelo comprido é a perfeita antítese do
soldado dizendo “sim senhor”.
Dizer “não senhor”, e não cortá-lo
era uma maneira de se afirmar como ser pensante e questionar o Estado. Não por
acaso no musical “Hair”, que retrata com muita simpatia os hippies dos anos 60,
o personagem se entrega pra morte num campo de batalha, não sem antes ter seu
cabelo cortado, perdendo assim sua identidade hippie – o estereótipo do
roqueiro dos 60. Assim como a primeira cena do filme de Stanley Kubrick “Full
Metal Jacket” em que vários jovens têm seu cabelo raspado ao chegar numa base militar.
Cabelo caindo, identidade se esvaindo.
Por que o roqueiro tinha o cabelo
longo nos anos 60 e 70? Outra guerra surgiu, o Vietnã levava jovens carecas às
trincheiras com um rifle nas mãos, olhar infantil e sensação de medo.
O rock nesta época transcendeu a
questão musical, cultural, comportamental. O cabelo comprido de um rapaz que
tinha um irmão morto no Vietnã era uma questão política, esta postura se
completava quando vestia o uniforme baleado em que o irmão foi morto, a mesma
roupa suja de sangue e com furos de bala. Dando início a outro estereótipo
roqueiro: a roupa rasgada, o desleixo com a imagem.
Há no cabelo desgrenhado e longo todo
um questionamento com o sistema. O roqueiro é o cara do não.
“Era” o cara do não, algo mudou no
rock (’n roll) nos anos 2000, mas isto será assunto de outro capítulo.
Embora questionar seja diferente em
diferentes épocas o roqueiro começa questionando em casa: a religião dos pais,
os horários dos pais. Passa a questionar o sistema educacional: o professor, os
horários de aula, os livros que o professor obrigou a ler. Questiona o Estado:
exército, a música, o emprego, o corpo com tatuagens impedindo-o de entrar no
mercado de trabalho.
Uma das características mais marcantes
do rock é a forte associação do ritmo ao protesto de maneira geral.
Desde seu início quando o rock ainda
era n’roll já se podia perceber o estranhamento que causava e a maneira que os
roqueiros encontravam para protestar. Muito embora no início essa subversão
estivesse muito mais ligada em como os astros do rock se vestiam ou se
penteavam do que com a sua música propriamente dita.
Na América puritana na década de 1950
casar-se com a prima de 13 anos levou a carreira de Jerry Lee Lewis à
decadência.
E o que dizer do pai da matéria Chuck
Berry e suas peripécias com menores de idade? – (ouça Sweet little sixteen!).
Mal sabiam eles que os tempos seriam
outros, onde Lou Reed, mais um roqueiro radical em atitude, se casaria com um
travesti. Ou Marilyn Manson que num arrojo de contestação, dizem as más
línguas, retirou uma das próprias costelas para, ainda segundo as más línguas,
praticar sexo oral consigo mesmo.
Outro precursor do ritmo também foi
rechaçado por tentar “sair do armário”: Little Richard. Preferiu, ao invés de
assumir sua homossexualidade, entrar para a religião protestante a pedir ao
outro (a) que saísse de seu corpo que não o pertencia.
Até Elvis Presley, embora tentasse,
nunca se manteve tão radical. No princípio era até chamado de Elvis – The Pélvis,
dado o provocante rebolado, tendo aparecido no programa de televisão focalizado
apenas da cintura para cima. O que será que pensaria dos bailes funks
realizados hoje nas grandes capitais do Brasil?
E retomando a questão capilar, Elvis
Presley teve até que se alistar no exército e “tosar” seu topete, tudo por
imposição de um empresário, o Coronel Parker. O Rock até que tentava ser
contestador e radical, mas quase sempre esse freio já era acionado pelos
empresários dos roqueiros, tema para mais um capítulo.
Se você perguntar para um cabeludo de hoje porque ele deixa o cabelo
comprido ele responderia: “ ora, é pra agitar”. Mas se fizéssemos essa mesma
pergunta para um cabeludo dos idos 1960 ele te responderia que é um protesto
que ele encontrou para ir de encontro aos soldados americanos que raspavam as
cabeças e empunhavam armas na desculpa de estarem servindo a pátria e matando
milhões de inocentes.
Os negros também encontraram na música uma forma de expor toda a
contestação, sobretudo no tocante aos valores raciais.
Você já deve ter ouvido falar de um
ritmo chamado Break. Pois é, os negros utilizavam vários passos curiosos ao
dançarem como aquele em que se apoiam com a cabeça e giram as pernas para cima.
Segundo os antropólogos da música, tal movimento também fazia uma alusão aos
helicópteros que se aproximavam do Vietnã, Laos e Camboja depositando lá de
cima o mortal napalm.
Sem contar os enormes cabelos black
power, étnicos, maravilhosos, construidores de identidade cultural e individual
dentro de uma sociedade de consumo opressiva e deprimente.
Aqui no Brasil o rock nem sempre foi visto com bons olhos e se hoje sua
tia ouve a Rita Lee ou você liga o rádio e escuta guitarra num samba, saiba que
a coisa nem sempre foi tão democrática assim.
Pra se ter uma ideia do quanto a
guitarra elétrica causou barulho, a denominação MPB só apareceu para
diferenciar das demais músicas que se fazia na época, ou seja, os rocks tocados
pelo pessoal da Jovem Guarda. (Naquela época ninguém o conhecia por rock, era
conhecido (traduzido) aqui como iêiêiê).
Talvez o episódio mais patético que
tenha acontecido nesse período foi uma passeata em São Paulo de vários artistas
contra o uso da guitarra elétrica na música brasileira. Até Gilberto Gil estava
lá.
E você pode até discordar, mas a primeira grande canção de protesto de
nossa terrinha foi sem sombra de dúvida Asa Branca interpretada por Luiz
Gonzaga, um verdadeiro heavy metal que de tão popular foi motivo de uma
brincadeira aprontada por Carlos Imperial, um papa na propaganda de novos
ídolos dizendo que os Beatles gravariam Asa Branca no Álbum Branco.
Podem até não ter gravado, mas não
seria surpresa se fizessem, afinal Rod Stewart plagiou uma canção de Jorge Ben,
Sid Vicious gravou Sinatra, Ozzy Osborne teve seu próprio reality show.... É um
mundo estranho, vamos tentar definir o rock, a postura rock.
Ter uma postura contestadora criou o
eterno slogan do rock: “sexo, drogas e rock’n roll”. Lema que é mais forte em
certos roqueiros que em outros, uns mais pra drogas, outros sexo, alguns nem
rock. Como no caso de nosso tupiniquim Cazuza, que declarou estar numa banda de
rock por acaso. Na realidade Cazuza é um exemplo puramente brasileiro de outro
slogan do rock: “viva rápido e morra jovem”. Com muito sexo, muitas drogas e
pouquíssimo rock. De fato, algumas canções de Cazuza são Bossa Nova,
românticas, o roqueiro Cazuza gravou até Cartola - ícone máximo do samba
carioca. Estava e ainda está muito à frente de seu tempo.
A contestação como marca do rock está
presente em todos os anos 60, 70, 80, 90, talvez se arrefeça agora com a onda
do politicamente correto.
Afinal, entre lendas e verdades, a
onda de absurdos que ocorreram em palcos é vasta: Jim Morrison se masturbando,
Ozzy Osborne mastigando um morcego, John Lennon pedindo que o público dos
lugares mais baratos aplaudissem e o de lugares mais caros chacoalhassem as
joias, o Kiss pisando em pintinhos de galinha, Renato Russo instigando um
quebra-quebra no meio de um show, Amy Winehouse agredindo um fã, Marcelo D2
fumando maconha a público aberto; isso e o que se passava em hotéis,
aeroportos, ônibus, aviões, turnês interrompidas, até assassinatos cometidos
(há o famosíssimo caso do Sid Vicious do Sex Pistols), ou sofridos (Marvin Gaye
morto pelo próprio pai) .
A lista pode crescer muito mais se
esticarmos o comportamento roqueiro à sua vida. Pois são famosas as orgias
organizadas pelo Led Zeppelin após os shows, no filme produzido pelo Kiss
“Detroit Rock City” a própria banda faz questão de ressaltar o caráter sexual
da vida roqueira ao mostrar um fã invadindo os bastidores e perceber que seus
integrantes participam de orgias antes e após os shows, há uma história curiosa
sobre Os mutantes, a pioneira banda roqueira tupiniquim, numa das loucas
atitudes roqueiras deram LSD para um cachorro que vivia solto na vizinhança,
roubaram uma estátua de um cemitério. Caetano Veloso pelado na capa do disco
“Jóia”.
Durante muito tempo o rock esteve
ligado ao comportamento desregrado e os músicos, produtores e empresários
faziam questão de reafirmar este estilo de vida, pois é o que vendia mais e
gerando lucros, pouco importava se o próprio músico servisse de lenha para a
fogueira pop.
Nesta bagunça do que seja ou não
contestação o próprio Bob Dylan, o primeiro grande contestador do rock começou
a contestar o próprio rock, desenvolvendo uma música com letras religiosas,
buscando uma solução metafísica para o caos roqueiro, não à toa Dylan tenha
desaparecido por um bom tempo da mídia, na realidade seu retorno pede mais
questionamentos, veio para o Brasil em 2010 e 2012 com show custando até mil
reais o ingresso. Mas essa é outra contestação. Dylan fez mais pelo rock, sem
fazer rock, do que qualquer outro roqueiro de carteirinha jamais fez.
Foi Renato Russo que não permitiu que
sua Legião Urbana se apresentasse no festival Holywood Rock, por se sentir por
demais hipócrita em cantar o que cantava com um maço de cigarros Holywood
estampado nas suas costas no palco. O mesmo Renato Russo que cantou uma canção
do Menudo num momento de descontração no acústico para... a MTV. Vá saber o que seja contestação hoje
em dia. Pelo menos ele não há nenhuma imagem sua pedindo a benção para nenhum
integrante da máfia do dendê. Isto sim atitude imperdoável.
O fato é que surgiu por volta dos
anos 70 um novo conceito para classificar os roqueiros. Havia os de verdade e,
segundo alguns xiitas do rock, havia os traidores do movimento.
Esses traidores seriam os que tinham
suas músicas executadas nas rádios, vendiam milhões de cópias de discos,
tocavam em festivais patrocinados por grandes companhias de cigarro e bebida,
no Brasil os traidores do movimento eram conhecidos por participarem dos
programas de TV da rede Globo.
O simples fato de uma banda mudar o
seu estilo musical poderia ser considerado por fãs, que encaravam o rock como
uma arma de contestação, uma forma de traição. Havia uma camisa de força que
prendia os músicos, o público pedia muito mais aos roqueiros que apenas rock.
Tanto que bandas com musicalidade punk como Os titãs, Ultraje a rigor e outras
tantas, não eram consideradas punks por punks, assim como ícones internacionais
do movimento como Ramones e Sex pistols, consideradas por demais pop para o que
fosse, ou o que é um punk.
Afinal, o que é um punk?
Talvez um cara sem dinheiro para
comprar o shampoo que o riquinho comprava. Não ganhava os mesmos brinquedos dos
pais, se é que ganhava algum. Desta maneira podemos ver que está tudo conectado:
a música do menino da periferia seria, nos anos 70, a música punk, pois com
apenas três acordes na guitarra saíam músicas atrás de músicas, ao contrário
das complexas canções metaleiras.
O que isso tem a ver com cabelo,
contestação, rock, trair o movimento, titãs e iê iê iê? Tudo. Talvez até com o
rap, pois se o jovem da periferia dos anos 70 não tinha dinheiro para aprender
a tocar, por isso músicas simples, o jovem negro dos 80 não tinha dinheiro nem para
instrumentos musicais, isso explica o rap se apoiando em seu principal
instrumento: a voz. Se formos mais longe isso explicaria até o funk carioca que
assombra as mamães de família protetoras da virgindade das filhinhas.
Roupas rasgadas só se transformam em
estilo porque o dinheiro é curto na casa de um menino da Freguesia do Ó. A
necessidade é a mãe da invenção, é claro que um menino rico do centro olhou para
a roupa do ferrado da periferia e achou bacana, e quis pra ele também.
Até foi ao show de música punk da
banda do menino da periferia, até comprou a fita k7 da banda, até leu o fanzine
distribuído na porta e até montou uma banda para ele também, e com o apoio dos
pais comprou instrumentos legais, aprendeu a tocar com um professor de música,
foi aos shows das bandas punks internacionais que visitaram o Brasil, gravou um
LP e foi à rádio de um amigo do pai que pagou pra música do filho tocar.
Fez sucesso. Vendeu milhares, talvez
milhões de discos. Começou a ser conhecido como o poeta de uma geração, mas
nunca mencionou que se não fosse aquela ferrada banda punk, suja e pobre e com
mínimos recursos da periferia, jamais sua história teria acontecido.
Com o rap é a mesma coisa, assim como
os hippies.
Entender a história do rock e o
próprio rock é entender que tudo faz parte da história da cultura humana e
dentro de tal história, tudo faz parte de um mecanismo que é interessante
entender. Porque ser roqueiro, ao contrário do que o senso comum quer fazer
seus pais pensarem, é ser um intelectual. Desde Bob Dylan, John Lennon e Jim
Morrison que é assim.
E você lendo este livro só reforça
essa afirmação. Nunca vi um pagodeiro indo a um pagode com um livro nas mãos,
nem um cantor sertanejo indicar uma boa leitura para o fim de semana, mesmo
sendo chamado de sertanejo universitário.
Ou mesmo essa conversa de defesa
apaixonada ao movimento, parece coisa de futebol, amor ao time do coração. Pode
ser, o roqueiro veste a camisa da banda assim como o torcedor veste a do time,
com a diferença de que o torcedor perde feio em se tratando de qualidade de
espetáculo, raramente um apaixonado por certa banda volta infeliz de um show
como o torcedor do Corinthians voltando infeliz das semifinais da libertadores.
Porém o rock está muito além de
apenas paixão e revolta vazia. Ele tem em sua história a tentativa de soluções
de problemas, busca reivindicar soluções, alterar rumos e não estou falando
aqui do Rock’n Rio “Por um mundo melhor”, nem de qualquer outro festivalzinho
temático, estou falando de quebras de preconceitos reais, luta por um fim a
guerras como a do Vietnã.
É isso mesmo meu querido leitor
roqueiro escutador de “Restart”, esses meninos embora empunhem guitarras e
gritem como doidos, estão mais para boy bands que para roqueiros de verdade. O
verdadeiro roqueiro tem de ter uma postura, tem de contestar algo, alguém,
mesmo a si próprio.
E você meu outro querido leitor
escutador de Jefferson Airplane, deixa os meninos pensarem que foram eles (o
Restart) que inventaram o cabelo comprido, a roupa colorida, a rebeldia sem
causa, ou o bom mocismo idiota. Há muito mais rebeldia hoje em um download
ilegal que no acendimento de um baseado. Foi Zeca Pagodinho quem apoiou a venda
de CDs piratas, seus próprios discos.
Zeca Pagodinho postura rock? Acho que
já estou forçando a amizade. Para o próximo capítulo, por favor. O tema será
justamente este: Postura rock.
(Do projeto "Manual do rock para as novas e velhas gerações" de Fábio Sant'Anna e Mauro Marcel)
(Do projeto "Manual do rock para as novas e velhas gerações" de Fábio Sant'Anna e Mauro Marcel)
Nenhum comentário:
Postar um comentário