Não
dou muita importância a datas em minhas explicações sobre os períodos
literários, na verdade explanações sobre estilos de época servem apenas de
apoio ao que de fato interessa na literatura – o texto. Vá até um livro de
história e pesquise dois termos (ou vá à internet e faça o mesmo): Idade Média
e Renascimento.
Grosso
modo, mas bem grosso modo mesmo, tem-se no período medieval uma época com forte
poder da igreja, não que isso tenha desaparecido no momento histórico
posterior, mas com o Renascimento a importância dada às habilidades humanas não
teve paralelo até então, somo nós, os americanos, frutos diretos deste período,
afinal chegaram à América com o uso de caravelas, bússolas, astrolábios, mapas
e muito mais.
Não
cito datas específicas, mas estes dois momentos históricos são relevantes para
o que o tema de agora traz, pois o Humanismo foi justamente o momento de
transição entre este mundo medieval e o chamado Moderno – Renascentista.
No
humanismo se percebe o que se pode pensar de uma trajetória nova, mas estou
parecendo aquelas aulas chatas e longas, vou tentar ser mais objetivo: no
trovadorismo a música e a poesia eram uma coisa só, então o que temos que perceber
logo de cara é que há neste movimento o primeiro instante de separação entre
música e poesia.
Note
bem, existe música e existe canção. Canção é a música com letra, algo pra se
cantarolar enquanto os instrumentos musicais são tocados. A música independe do
alfabeto. A poesia está para a canção como a música está para ela, mas no outro
ponto, entendeu?
Assim:
não é preciso música num poema, muito embora a alma do poema seja musical. O
verso não é uma linha trivial de texto, há ritmo, métrica, alternância entre
sons fortes e fracos. E essa força independente da palavra surgiu aí, que eu
gosto de pensar como o início do divórcio entre música e poesia. (Mesmo
divorciada fazem como aqueles casais que vez por outra se encontram para
recordar os bons momentos, entre música e poesia nunca há a ressaca moral dos
apaixonados divorciados da vida real).
Chamado
de Humanismo, este período tem em seu nome o humano, acho que por falta de
classificação mais apropriada, (quem sou eu pra falar isso), muitos classificam
o humanismo com o singelo nome de Segunda Época Medieval, em contraponto com o
Trovadorismo que seria a primeira, sendo o aquele um mero desdobramento deste,
quando na realidade foi muito mais.
Era comum nesse
tempo os escritores não assinarem seus textos, ainda mais se tratando de teatro
o tipo textual de Gil Vicente. Fazia parte da profissão do ator inventar falas,
criar momentos, circunstâncias que fizessem a cena girar. Não à toa os grupos
teatrais de melhor qualidade eram compostos pelos melhores atores, o que nosso
querido Vicente fez foi tirar dos atores a responsabilidade pelo sucesso ou
fracasso de uma empreitada teatral, mais ou menos como no período grego com as
aclamadas tragédias. Édipo, por exemplo.
Calma
leitor, Gil Vicente não é nenhum Sófocles e Portugal nunca foi Grécia. Mas é
importante notar que o Renascimento que veio logo depois, fez-se inspirado nos
moldes gregos que tinham no teatro um de seus maiores tesouros culturais. E
mesmo tendo se moldado para um período de mudanças, fome, pestes (como a
bubônica), criou personalidade própria e tem em alguns textos enorme
atualidade.
Muito para um
idioma que ainda não tinha nem se estabelecido como Língua Portuguesa – com L
maiúsculo.
Sim,
no humanismo ainda é um português em desenvolvimento. Muito próxima estava a
gramática que daria voz às obras primas lusitanas e brasileiras, mas O auto da
barca e os demais autos foram escritos ainda sem gramática normativa. É claro
que serviu de base para sua construção afinal não é possível impor a um povo,
do vazio, uma gramática. Entretanto é curioso ler a língua se formando nas
falas de Inês Pereira na farsa que leva seu nome.
O
teatro vicentino é dividido em dois tipos de peças: autos e farsas. Os autos de
cunho religioso e doutrinário, as farsas eram voltadas às críticas de costumes.
Fico
imaginando um mundo bem diferente do de agora em que as pessoas não conheciam
coisas básicas como água encanada, antibiótico, avião, automóvel, telefone,
alfabetização...
Verdade.
As pessoas eram analfabetas porque não tinham motivação para gastarem tanto
tempo em escolas, raros passavam da casa dos trinta, com a vida voltada para a
lavoura aprender a ler e escrever podia soar como uma enorme perda de tempo.
Uma verdadeira heresia dita por um professor de língua portuguesa – com
pretensões a escritor, o que apenas piora o efeito herético.
Mas
era bem isso. Para entender como funcionavam as peças de Gil Vicente você
precisa pensar não apenas um mundo sem livros, mas também um em que as pessoas
não sabem nem que existe a língua escrita. Há uma cena em “A farsa de Inês
Pereira” em que um personagem convidado a sentar-se à mesa senta no chão, pois
não sabe o que é uma cadeira. Neste mundo peças teatrais bem objetivas, claras,
curtas e simples não eram apenas necessárias, mas a única opção para alguém que
queria viver de teatro.
Gil
Vicente foi genial porque aprendeu a se comunicar com as pessoas que o cercavam
sem parecer doutrinário. Muito embora hoje não consigamos ler de outra forma.
Imagine
aquele menino de doze anos, trabalhador braçal que vai à igreja no domingo
porque não tem outra alternativa, nem quer ter outra, pense assim. E após a
missa tem meia hora de uma peça em que o diabo julga quem vai ou não para o
inferno de acordo com seus pecados. (Dante fez o mesmo, séculos depois, em A
divina comédia, me aprofundo quanto a isso em outro momento). Esse menino vai
pra casa conhecendo um pouco da moral católica, da mitologia bíblica e de
quebra sobre cultura teatral. No próximo domingo tem mais.
Na
semana seguinte a peça versa sobre uma moça que quer casar pra não mais
precisar fazer os serviços domésticos. A já citada “A farsa de Inês Pereira”
tem nisso um de seus motes, isso e o famoso desafio do “mais vale um burro que
me carregue que um cavalo que me derrube”.
Ao longo de
uma vida esse menino teria assistido à quantas peças teatrais? Quanto dessa
moral teria passado para seus filhos quando estes surgissem em sua vida? Talvez
um de seus rebentos, netos, bisnetos tenham descoberto muito mais que o texto
falado, tenha aprendido a escrever, ler e produzindo literatura tenha escrito
as mais nobres e espetaculares obras da cultura lusitana.
Gil Vicente
escreveu muito, recomendo a leitura de tudo o que estiver ao seu alcance sobre
ele, todos os autos e farsas e um pouco de sua vida que tem alguns fatos
curiosos também. Como a história de como conseguiu tornar-se o teatrólogo
oficial do rei, ou de como vencera o desafio do mote envolvendo cavalo e burro
citado linhas acima.
O fato é que o
humanismo abriu possibilidades para a literatura mundial, aqui especificamente
falando em língua portuguesa – o foco deste texto.
Também cabe
ressaltar que os momentos de transição são, por vezes, traumáticos. O que não
se percebe neste momento da história humana. Salvo algum equívoco meu e levando
em consideração alguns pontos de tensão, naturais como em qualquer momento, o
período medieval caiu de velho, não digo caiu de podre porque trouxe enquanto
durou muito desenvolvimento cultural, conhecimento e pesquisa científica.
Mesmo os
historiadores velhos e ultrapassados insistindo em chamá-lo de período das
trevas. Logo o período medieval, o momento da história em que mais se pensava
em Deus. (sim, eu quis ser polêmico, me julguem...)
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