segunda-feira, 10 de julho de 2017

Humanismo, Auto da Barca do Inferno e Gil Vicente – não necessariamente nessa mesma ordem

                Não dou muita importância a datas em minhas explicações sobre os períodos literários, na verdade explanações sobre estilos de época servem apenas de apoio ao que de fato interessa na literatura – o texto. Vá até um livro de história e pesquise dois termos (ou vá à internet e faça o mesmo): Idade Média e Renascimento.
                Grosso modo, mas bem grosso modo mesmo, tem-se no período medieval uma época com forte poder da igreja, não que isso tenha desaparecido no momento histórico posterior, mas com o Renascimento a importância dada às habilidades humanas não teve paralelo até então, somo nós, os americanos, frutos diretos deste período, afinal chegaram à América com o uso de caravelas, bússolas, astrolábios, mapas e muito mais.
Resultado de imagem para diabo                Não cito datas específicas, mas estes dois momentos históricos são relevantes para o que o tema de agora traz, pois o Humanismo foi justamente o momento de transição entre este mundo medieval e o chamado Moderno – Renascentista.
                No humanismo se percebe o que se pode pensar de uma trajetória nova, mas estou parecendo aquelas aulas chatas e longas, vou tentar ser mais objetivo: no trovadorismo a música e a poesia eram uma coisa só, então o que temos que perceber logo de cara é que há neste movimento o primeiro instante de separação entre música e poesia.
                Note bem, existe música e existe canção. Canção é a música com letra, algo pra se cantarolar enquanto os instrumentos musicais são tocados. A música independe do alfabeto. A poesia está para a canção como a música está para ela, mas no outro ponto, entendeu?
                Assim: não é preciso música num poema, muito embora a alma do poema seja musical. O verso não é uma linha trivial de texto, há ritmo, métrica, alternância entre sons fortes e fracos. E essa força independente da palavra surgiu aí, que eu gosto de pensar como o início do divórcio entre música e poesia. (Mesmo divorciada fazem como aqueles casais que vez por outra se encontram para recordar os bons momentos, entre música e poesia nunca há a ressaca moral dos apaixonados divorciados da vida real).
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                Chamado de Humanismo, este período tem em seu nome o humano, acho que por falta de classificação mais apropriada, (quem sou eu pra falar isso), muitos classificam o humanismo com o singelo nome de Segunda Época Medieval, em contraponto com o Trovadorismo que seria a primeira, sendo o aquele um mero desdobramento deste, quando na realidade foi muito mais.
                Com esta segunda época medieval surge o primeiro grande escritor em língua portuguesa: Gil Vicente. O que não é pouco.
Era comum nesse tempo os escritores não assinarem seus textos, ainda mais se tratando de teatro o tipo textual de Gil Vicente. Fazia parte da profissão do ator inventar falas, criar momentos, circunstâncias que fizessem a cena girar. Não à toa os grupos teatrais de melhor qualidade eram compostos pelos melhores atores, o que nosso querido Vicente fez foi tirar dos atores a responsabilidade pelo sucesso ou fracasso de uma empreitada teatral, mais ou menos como no período grego com as aclamadas tragédias. Édipo, por exemplo.
                Calma leitor, Gil Vicente não é nenhum Sófocles e Portugal nunca foi Grécia. Mas é importante notar que o Renascimento que veio logo depois, fez-se inspirado nos moldes gregos que tinham no teatro um de seus maiores tesouros culturais. E mesmo tendo se moldado para um período de mudanças, fome, pestes (como a bubônica), criou personalidade própria e tem em alguns textos enorme atualidade.
Muito para um idioma que ainda não tinha nem se estabelecido como Língua Portuguesa – com L maiúsculo.
Resultado de imagem para humanismo                Sim, no humanismo ainda é um português em desenvolvimento. Muito próxima estava a gramática que daria voz às obras primas lusitanas e brasileiras, mas O auto da barca e os demais autos foram escritos ainda sem gramática normativa. É claro que serviu de base para sua construção afinal não é possível impor a um povo, do vazio, uma gramática. Entretanto é curioso ler a língua se formando nas falas de Inês Pereira na farsa que leva seu nome.
                O teatro vicentino é dividido em dois tipos de peças: autos e farsas. Os autos de cunho religioso e doutrinário, as farsas eram voltadas às críticas de costumes.
                Fico imaginando um mundo bem diferente do de agora em que as pessoas não conheciam coisas básicas como água encanada, antibiótico, avião, automóvel, telefone, alfabetização...
                Verdade. As pessoas eram analfabetas porque não tinham motivação para gastarem tanto tempo em escolas, raros passavam da casa dos trinta, com a vida voltada para a lavoura aprender a ler e escrever podia soar como uma enorme perda de tempo. Uma verdadeira heresia dita por um professor de língua portuguesa – com pretensões a escritor, o que apenas piora o efeito herético.
                Mas era bem isso. Para entender como funcionavam as peças de Gil Vicente você precisa pensar não apenas um mundo sem livros, mas também um em que as pessoas não sabem nem que existe a língua escrita. Há uma cena em “A farsa de Inês Pereira” em que um personagem convidado a sentar-se à mesa senta no chão, pois não sabe o que é uma cadeira. Neste mundo peças teatrais bem objetivas, claras, curtas e simples não eram apenas necessárias, mas a única opção para alguém que queria viver de teatro.
                Gil Vicente foi genial porque aprendeu a se comunicar com as pessoas que o cercavam sem parecer doutrinário. Muito embora hoje não consigamos ler de outra forma.
Resultado de imagem para ac dc                Imagine aquele menino de doze anos, trabalhador braçal que vai à igreja no domingo porque não tem outra alternativa, nem quer ter outra, pense assim. E após a missa tem meia hora de uma peça em que o diabo julga quem vai ou não para o inferno de acordo com seus pecados. (Dante fez o mesmo, séculos depois, em A divina comédia, me aprofundo quanto a isso em outro momento). Esse menino vai pra casa conhecendo um pouco da moral católica, da mitologia bíblica e de quebra sobre cultura teatral. No próximo domingo tem mais.
                Na semana seguinte a peça versa sobre uma moça que quer casar pra não mais precisar fazer os serviços domésticos. A já citada “A farsa de Inês Pereira” tem nisso um de seus motes, isso e o famoso desafio do “mais vale um burro que me carregue que um cavalo que me derrube”.
Ao longo de uma vida esse menino teria assistido à quantas peças teatrais? Quanto dessa moral teria passado para seus filhos quando estes surgissem em sua vida? Talvez um de seus rebentos, netos, bisnetos tenham descoberto muito mais que o texto falado, tenha aprendido a escrever, ler e produzindo literatura tenha escrito as mais nobres e espetaculares obras da cultura lusitana.
Gil Vicente escreveu muito, recomendo a leitura de tudo o que estiver ao seu alcance sobre ele, todos os autos e farsas e um pouco de sua vida que tem alguns fatos curiosos também. Como a história de como conseguiu tornar-se o teatrólogo oficial do rei, ou de como vencera o desafio do mote envolvendo cavalo e burro citado linhas acima.
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O fato é que o humanismo abriu possibilidades para a literatura mundial, aqui especificamente falando em língua portuguesa – o foco deste texto.
Também cabe ressaltar que os momentos de transição são, por vezes, traumáticos. O que não se percebe neste momento da história humana. Salvo algum equívoco meu e levando em consideração alguns pontos de tensão, naturais como em qualquer momento, o período medieval caiu de velho, não digo caiu de podre porque trouxe enquanto durou muito desenvolvimento cultural, conhecimento e pesquisa científica.

Mesmo os historiadores velhos e ultrapassados insistindo em chamá-lo de período das trevas. Logo o período medieval, o momento da história em que mais se pensava em Deus. (sim, eu quis ser polêmico, me julguem...)

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