Primeiramente é
importante saber que o Trovadorismo não é a coisa mais maravilhosa do mundo e
nem tem esta pretensão. Tem o mérito de ser o primeiro movimento literário em
língua portuguesa, mas tenho certeza de que você já ouviu algo do tipo.
Quando penso em
Trovadorismo lembro do meu primeiro contato com as aulas de literatura no
Ensino Médio. Queria muito àquelas aulas, sempre fui um leitor de fôlego e não
me frustrei muito quando a professora veio com textos escritos numa língua estranha
à minha, um português em formação, de uma época longínqua e, com todo respeito,
uma professora que parecia pertencer à época dos poemas.
Mesmo assim gostei de
estudar a cantiga da Ribeirinha, o primeiro texto escrito em língua portuguesa,
o nosso idioma nascendo e num poema quase erótico, ao menos para os padrões da
época (o rapaz via a sua amada com roupas de baixo). Mas isso só consegui
entender depois. Com muita experiência de leitura.
Na verdade, acredito
que algumas coisas não deveriam ser estudadas com tanta profundidade nas aulas
de literatura, e antes que escute alguém levantando a primeira pedra digo
apenas como opinião pessoal e acredito também que o nível de profundidade tem a
ver com os objetivos estipulados entre professor, escola e alunos; não é o caso
da literatura medieval que já é estudada de forma superficial desde sempre.
E que ninguém pense que é impossível estudar
literatura sem conhecer os primórdios de nossas letras lusitanas. Mas deixa eu
continuar.
Portugal fazia parte de um reino chamado Leão e Castela
na Península Ibérica, onde hoje fica a Espanha e obviamente Portugal. Esses
dois países são irmãos de criação com suas histórias ligadas ao destino do
Império Romano.
A língua de Roma, o Latim, se desmembrou em outros
tantos idiomas como o espanhol, o francês, o armênio e o nosso português; são
conhecidas por línguas românicas.
O português sofre forte influência dos idiomas
árabes porque no local onde ficava um extenso território conhecido como Condado
Portucalense havia várias invasões de território por parte desses povos,
conhecidos como mouros. (Acho que dizer invasão é politicamente incorreto, mas
caguei pra isso).
Na verdade,
Portugal se formou muito da necessidade que o Reino de Leão e Castela tinha de
proteger suas fronteiras destas invasões. Uma fortificação foi erguida num
posto avançado deste condado e, longe da sede do reino, foi questão de pouco tempo
até declarar independência. (Você pode ler a respeito em um livro português muito
legal chamado “O bobo, de Alexandre Herculano”).
Pois bem: castelos, soldados, poder da igreja
(teocentrismo), essas coisas. Pensa comigo: não havia escolas, a língua era
preponderantemente a fala e quando surgiram as primeiras canções no idioma
desta terra, que ainda nem era um reino, nem tinha um idioma, elas (as canções)
passavam de boca em boca, sem nada escrito, e claro, também não havia caneta.
Imaginem a dificuldade em encontrar um pedaço de
papel. Essas canções, conhecidas por trovas, caminharam como num jogo de
telefone sem fio mudando, afinando e desafinando até que alguém as pusesse no
papel. Tipo um nana nenê que a cuca vem pegar...
Mas não havia regras pré-estabelecidas de como
escrever a língua daquela região, ou mesmo outras línguas românicas. Cada uma
teve sua própria história e é por isso que num mesmo poema deste período
podemos perceber, não raro, a mesma palavra escrita de formas diferentes no
mesmo texto. Em suma, não havia regras gramaticais como as de hoje e os poemas
têm sua autoria duvidosa, mesmo a cantiga da Ribeirinha, o primeiro texto em
língua portuguesa citado alguns parágrafos acima, mesmo ele, não podemos dizer
com cem por cento de certeza que foi composto por Paio Soares de Taveirós.
Podemos dizer que foi Taveirós quem o pôs no papel e isso, pra sua época, já
era um feito impressionante.
Os textos tinham uma função principal: animar as
festas, por isso eram canções, chamadas didaticamente de cantigas. E é claro,
assim como as canções do nosso tempo refletem a cultura do nosso período
histórico, as canções trovadorescas refletiam seu período: amor impossível
(isso, de fato, é muito pop ao longo da história de qualquer literatura),
sofrimento amoroso, distância da pessoa amada, amor palaciano...
Alguns estudiosos chegam a falar que o próprio
conceito de relacionamento amoroso foi pensado neste período.
Faz certo sentido porque estamos falando num período
em que a família decidia o destino sentimental de seus filhos, sentimental num
contexto em que não havia a cultura de escolher o parceiro de vida. Neste sentido,
o trovadorismo quando cria uma situação em que homem e mulher sofrem e querem
estar ao lado da pessoa amada, sim, é revolucionário.
Mas outros estudiosos apontam indícios desse tipo de
relacionamento com sofrimento, paixão, busca e idealização amorosa até entre os
gregos. Fica aqui um assunto legal pra pesquisar na biblioteca, o caso é que
essas canções, com esses temas foram importantes para o amadurecimento da nossa
língua, a formação do nosso idioma.
O trovadorismo, com suas canções de amor, amigo,
escárnio e maldizer faziam o painel cultural deste período, eram o Chitãozinho
e Xororó da época, as cantigas satíricas faziam as vezes de lambada, forró, e sei
lá, baile funk.
Tudo a seu modo, o período era o medieval, e esse
tipo de texto predominou em nossa língua durante mais de duzentos anos.
As cantigas escritas, isto é, os originais, foram
reunidos e guardados em compêndios chamados cancioneiros. Lá dá pra perceber,
não apenas a ortografia, como também a caligrafia dos escritores trovadores.
Pra quem se interessa, um prato cheio.
Também, para os alfabetizados desse período havia
algumas versões de novelas de cavalaria, como aquelas do Rei Arthur, nada muito
original.
O Trovadorismo serviu mesmo como pontapé inicial da
nossa literatura. Tenho certeza que ninguém senta na cadeira de praia em frente
ao mar lendo “ó flores do verde piño sabedes novas de meu amigo, ai deus eué?”,
a maioria das pessoas, as “normais”, não literatos, escutam sobre isso no
Ensino Médio e nunca mais. Porém a história de nosso caminho até aqui passa
pela palavra e para nós brasileiros a palavra está no idioma português e
aprender sua origem é muito importante.
Como, por exemplo, o uso da palavra amigo, que
significa amante para os trovadores medievais e tem o sentido de proximidade,
intimidade e cumplicidade do período contemporâneo. Ou do vocábulo coitado,
oriundo de coita de amor, o sofrimento do eu-lírico masculino nas cantigas de amor.
Nunca pesquisei, mas creio que a palavra coito (sexo) tem a mesma origem. Será?
Sexo e sofrimento vindo da mesma palavra? Que seja. Permita-me ir para a
conclusão deste artigo.
Mas antes uma pequena palavra sobre o que seja o
teocentrismo que a minha querida professora explicava como sendo ter Deus como
o centro do universo e eu ficava imaginando muito o que aquilo poderia querer
dizer.
Mas teocentrismo é muito mais que isso. O período
medieval era teocêntrico porque numa definição bem objetiva e simplista
significa que todos os aspectos da vida das pessoas eram voltados para Deus.
Assim: hoje você acredita em Deus, vai à igreja, mas é vacinado, toma
antibióticos, tem plano de saúde.
Ter uma mentalidade teocêntrica significa dizer que
qualquer doença se explica a partir da influência divina: dor de dente, gripe,
lombriga, câncer. Iria a um padre e este apontaria qual penitência a se
realizar, hoje não funciona assim. (Penso eu)
Por mais religiosa que seja a pessoa não há quem
acredite que seja Deus e não o esgoto não tratado o causador de verminoses.
Todo Papa se trata ou se tratou com muitos médicos, não somos mais
teocêntricos, impossível ter um pensamento totalmente medieval nos dias de
hoje, embora eu saiba que muita gente se esforça muito para tal. (Aff, falei,
vamos mudar de parágrafo.)
Qualquer conhecimento adicional sobre todo assunto é
muito bem-vindo e recomendo mesmo que você leia mais e mais sobre trovadorismo.
Geralmente os livros a respeito são muito bons, os melhores são de editoras
portuguesas, mas ler os poemas no original é uma verdadeira diversão. Difícil,
mas divertido.
Também é muito legal buscar características das
trovas medievais portuguesas nas cantigas de hoje, tanto as lírico-amorosas
quanto as satíricas: Geni e o Zeppelin é quase uma cantiga de maldizer, alguns
funks também, a canção Juazeiro de Luís Gonzaga se encaixa perfeitamente como
cantiga de amigo e quase todas as canções que envolvem sofrimento amoroso tem
no trovadorismo sua raiz. A Legião Urbana canta uma cantiga trovadoresca na introdução de seu disco V vale a pena conferir.
A separação entre poesia e canção representou um
grande avanço para a língua escrita. Entender a poesia como parte de uma qualidade
específica de arte valoriza o português e nos amadurece enquanto povo, daí a
criação da identidade linguística, depois identidade cultural até chegar aqui
no nosso Brasil. Tudo parte de um todo.
É claro que deixei muita coisa pra trás no caminho,
mas estou certo que este ensaio serve como um pontapé inicial para o estudo do
primeiro passo de uma jornada que tem de Gil Vicente a José Saramago. Passando
por muita gente excelente e alguns gênios como Eugênio de Castro e Fernando
Pessoa, escritor que pôs a poesia portuguesa nascida no trovadorismo num
patamar nunca alcançado por nenhum outro escritor lusitano, e raro de outras
nacionalidades.
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