sexta-feira, 21 de julho de 2017

O Arcadismo - (Escute o podcast no link)

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https://anchor.fm/mauro-marcel/episodes/Arcadismo--Lagoa-azul-e-o-Segredo-de-Brokeback-Mountain-e317do/a-a9cdog
        Há um filme muito interessante chamado “O segredo de Brokeback mountain” do diretor Ang Lee que conta a história de dois pastores de ovelhas contratados para pastorear durante o inverno. Ao longo da história os dois cowboys vão criando um laço de amizade que se transforma em paixão apenas interrompido pela descoberta do patrão que percebendo o relacionamento entre os dois empregados os demite e dá a entender que o faz por não aceitar que ambos pudessem se relacionar. Isto acontece com ambos ainda jovens e ao longo de suas vidas os dois sempre se encontram durante o inverno na montanha Brokeback para reviver o amor proibido naquele local idílico, em meio à natureza, mesmo no frio que não era problema. Os únicos entreveros surgiam quando algo ou alguém da cidade se punha entre ambos: preconceito, obrigações, cobranças.
O filme “A lagoa azul”, conhecido hit da sessão da tarde, também mostra como a felicidade é possível em meio à natureza na paradisíaca lagoa que dá título à história. Neste roteiro, um casal de crianças sobreviventes de um naufrágio cresce sozinho numa ilha e, em meio a quedas d’água, frutas tropicais, nudez e muito bucolismo, descobrem o amor. Que novamente é atrapalhado quando da influência do mundo exterior, motivo de preconceitos e degeneração do ser humano.
Esta dicotomia sempre ocorreu desde que as primeiras cidades modernas se desenvolveram.
Resultado de imagem para a lagoa azulNo poema épico brasileiro “Caramuru”, de Santa Rita Durão a personagem Moema vive feliz no idílico e natural Brasil colonial, ela é irmã de Paraguaçú que acaba por casar-se com Diogo Álvares Correia. O problema é que enquanto os três vivem seu triângulo amoroso sem reservas e todas as liberdades possíveis tudo tranquilo, tudo muito bem; a questão é quando Diogo decide levar Paraguaçú a Portugal para ser batizada e poderem casar-se. Moema pula no mar perseguindo o navio em que estavam sua irmã com seu cunhado e acaba por afogar-se tendo seu corpo jogado na praia pelas ondas. Exemplo claro de que preferir a cidade em detrimento de um ambiente idílico, bucólico e natural não seja uma boa ideia. (Há um filme homônimo do diretor Guel Arraes, que perde muito de sua força dramática já que na telona a Moema se salva e voltando à natureza é feliz servindo-se sexualmente de todos os demais portugueses que aportariam pelas terras tupinambás, vale como entretenimento).
No romance “Iracema” de José de Alencar dá-se a mesma situação: o português Martins e a índia Iracema se apaixonam em meio à natureza. Na busca por seu amor Iracema abre mão de sua cultura e encontra morte parindo o primeiro cearense Moacir, de significado o filho do sofrimento.
A Pocahontas da Disney passa pelo mesmo processo de encantamento pelo Capitão John Smith, com um final delicadamente mais ameno que o de Iracema.
Quase absurdo, mas é o mesmo plot do filme “Avatar” de James Cameron. Salvo o final feliz a história é basicamente a mesma. E clara a dicotomia urbano/selvagem, campo/cidade.
Já notaram como nos filmes clássicos da Disney as personagens se harmonizam de forma tão bela com a natureza, já imagino uma cena clássica com a princesinha valsando com um pássaro. Ou nas cenas de amor sob quedas d’água, fazendo amor nas cachoeiras, rolando num beijo apaixonado na areia da praia, correndo atrás do grande amor entre as flores de bosque sem fim.
Resultado de imagem para avatarNo romance “A cidade e as serras” do português Eça de Queirós o rico Jacinto tem todas as tecnologias e facilidades que a modernidade da época podem proporcionar, mas é infeliz, depressivo; apenas vê lampejos de felicidade quando, por força da ocasião, se vê preso em meio às serras sem nenhuma das tais tecnologias. No campo descobre que a felicidade está nas pequenas coisas, que é possível extrair alegria do correr do rio, do rasante de uma borboleta. Fica claro inclusive no próprio título a dicotomia campo/cidade.
O Arcadismo é uma estética um tanto quanto requentada. Chamada por alguns de neoclassicismo por retomar certas características do estilo de Camões, inova ao conferir poder sem par ao espaço natural. Aqui a vida em meio ao campo é tudo o que se espera, o que se almeja. Até a infelicidade no campo é menos infeliz e impossível satisfação em áreas urbanas. Também pudera, as primeiras cidades não eram exemplos de sanidade e organização.
Resultado de imagem para iracemaInflando devido ao impulso mercantilista, ou pré-capitalista, as cidades eram a única alternativa para fugir da extrema miséria e do abandono. O arcadismo é em si um grito pelo retorno à vida simples no campo, um grito um tanto quanto ingênuo, que ignora todas as dificuldades próprias da vida rural. Somos, a humanidade, basicamente urbanos porque gostamos de estradas, telefone, televisores, shopping centers e mesmo tudo isso não existindo no século XVIII havia o poder da coletividade mesmo em meio às fezes espalhadas pelas ruas, assaltos, prostituição e tudo aquilo que sempre foi próprio de áreas densamente povoavas. Mesmo em áreas extremamente degeneradas há a esperança de algum apoio humano, onde há bonança há restos. Triste constatar coisas deste tipo, mas raramente se observam cracolândias em meio a plantações de café, por exemplo.
Um exemplo interessante de como eram as cidades neste período vem da origem da palavra Water Closet (o WC de banheiro). Sempre que alguém passasse por alguma janela usada para despacharem o conteúdo dos penicos era alertado que passaria perto do quartinho da água (water closet em inglês). Isso mesmo, as pessoas faziam no penico e jogavam pela janela, dá pra entender como a ideia de uma vida no campo seria melhor. Lá pelo menos havia áreas abertas e pisar em cocô, se não raro, pelo menos longe de casa, perto de um rio com a possibilidade limpar-se após as necessidades, menos densidade demográfica, pensamento que degringolou no naturalismo da segunda metade do século posterior. Mas me adianto.
Resultado de imagem para moema índiaAs pessoas morando mais distantes umas das outras, como acontecia no campo não era fácil de perceber seus vícios, sua imoralidade, ou amoralidade. É o filósofo Jean-Jacques Rousseau o dono da frase “o ser humano é bom e a sociedade o corrompe” influenciando de forma cabal a literatura da época. Se a sociedade é ruim o que nos resta é nos afastarmos dela – o fugere urbem, ou fuga da cidade dos livros didáticos de literatura. Junto a isto o mito do bom selvagem, quer dizer, os índios brasileiros, por exemplo, seriam pessoas maravilhosas vivendo uma vida maravilhosa tal qual uma eterna Lagoa azul, ou uma montanha Brokeback. O que estraga tudo é a sociedade dita civilizada.
Esse pensamento ignora um monte de coisa, como muitas tribos indígenas vivendo em pé de guerra mesmo antes da chegada dos europeus, também o fato de alguns costumes selvagens merecerem mesmo a definição de selvagem como a antropofagia que Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral enfeitaram como um costume ritualístico, e que mesmo assim sendo não passa de homens devorando carne humana. Não importando a desculpa, isso é selvagem pra cacete.
Também o costume que algumas índias de determinadas tribos tinham de matarem o recém-nascido após o parto porque não poderiam arcar com o peso de uma jornada com a criança (este costume é muito bem retratado no filme “Brava gente brasileira” de Lúcia Murat).
A palavra Arcadismo vem do grego e quer dizer local de poesia para pastores, o neoclassicismo tem no convite do pastor à natureza seu principal mote. Isso e outros elementos como a busca de uma vida amena em recursos materiais, mas plena de realizações espirituais (áurea mediócritas), fuga da cidade como dito parágrafos acima (fugere urbem), aproveitar a vida enquanto possível (carpe diem).
Resultado de imagem para pocahontasO “carpe diem” merece um parêntese. (Carpe significar colher, diem significa dia. Colher dia é muito mal interpretado pela ótica romântica de aproveitar bebendo, transando, experimentando tudo porque a vida é curta e o amanhã improvável.
Pois é isso e algo mais.
Carpe diem para um árcade significa entender que a vida traz a degeneração do corpo, porque é óbvio que envelhecemos: olhos, pernas, mãos, enfim. Não é possível extrair o mesmo de quando jovem, portanto colher o dia também significa trabalhar com ardor porque os braços falharão na velhice, ler em exagero ora, ainda não haviam se popularizado os óculos. E sim, experimente os sabores, os dentes cairão. Carpe diem é um convite à reflexão devido ao processo degenerativo do tempo.) Fecha parêntese.
Os pseudônimos são comuns neste período, afinal são poetas urbanos relatando as felicidades do campo. Como no lindo trecho abaixo de Marília de Dirceu. Nele Dirceu convida sua Marília a viver com ele no campo aproveitando todos os instantes até que ao fim chegue aos dois a morte, e sim, quando olharem para eles os demais pastores, o casal servirá de exemplo: uma vida simples, longe da cidade, extraindo das pequenas alegrias a extrema felicidade.
Eu, Marília, não fui nenhum vaqueiro,
 fui honrado pastor da tua aldeia;
vestia finas lãs e tinha sempre
a minha choça do preciso cheia.
Tiraram-me o casal e o manso gado,
nem tenho a que me encoste um só cajado.
Para ter que te dar, é que eu queria
de mor rebanho ainda ser o dono;
prezava o teu semblante, os teus cabelos
 ainda muito mais que um grande trono.
Agora que te oferte já não vejo,
além de um puro amor, de um são desejo.
Se o rio levantado me causava,
levando a sementeira, prejuízo,
eu alegre ficava, apenas via
na tua breve boca um ar de riso.
Tudo agora perdi; nem tenho o gosto
de ver-te ao menos compassivo o rosto.
Propunha-me dormir no teu regaço
as quentes horas da comprida sesta,
escrever teus louvores nos olmeiros,
toucar-te de papoilas na floresta.
Julgou o justo céu que não convinha
que a tanto grau subisse a glória minha.
Ah! minha bela, se a fortuna volta,
se o bem, que já perdi, alcanço e provo,
por essas brancas mãos, por essas faces
te juro renascer um homem novo,
romper a nuvem que os meus olhos cerra,
amar no céu a Jove e a ti na terra!
Fiadas comparei as ovelhinhas,
que pagarei dos poucos do meu ganho;
e dentro em pouco tempo nos veremos
senhores outra vez de um bom rebanho.
Para o contágio lhe não dar, sobeja
que as afague Marília, ou só que as veja.
Se não tivermos lãs e peles finas,
podem mui bem cobrir as carnes nossas
as peles dos cordeiros mal curtidas,
e os panos feitos com as lãs mais grossas.
Mas ao menos será o teu vestido
por mãos de amor, por minhas mãos cosido.
Nós iremos pescar na quente sesta
com canas e com cestos os peixinhos;
nós iremos caçar nas manhãs frias
com a vara enviscada os passarinhos.
Para nos divertir faremos quanto
reputa o varão sábio, honesto e santo.
Nas noites de serão nos sentaremos
cos filhos, se os tivermos, à fogueira:
entre as falsas histórias, que contares,
lhe contarás a minha, verdadeira.
Pasmados te ouvirão; eu, entretanto,
ainda o rosto banharei de pranto.
Quando passarmos juntos pela rua,
nos mostrarão co dedo os mais pastores,
dizendo uns para os outros: - Olha os nossos
exemplos da desgraça e sãos amores.
Contentes viveremos desta sorte,
até que chegue a um dos dois a morte.
Tomás Antônio Gonzaga
                Um ponto curioso é o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) fazer bastante uso de poemas deste período em suas questões. O soneto abaixo é um exemplo que já serviu para esta prova e que serve como poema exemplar do arcadismo, assinado pelo pseudônimo Glauceste Satúrnio, nome artístico do poeta brasileiro Cláudio Manoel da Costa :
Torno a ver-vos, ó montes; o destino
Aqui me torna a pôr nestes outeiros,
Onde um tempo os gabões deixei grosseiros
Pelo traje da Corte, rico e fino. 

Aqui estou entre Almendro, entre Corino,
Os meus fiéis, meus doces companheiros,
Vendo correr os míseros vaqueiros
Atrás de seu cansado desatino.  
    
Se o bem desta choupana pode tanto,
Que chega a ter mais preço, e mais valia
Que, da Cidade, o lisonjeiro encanto,

Aqui descanse a louca fantasia,
E o que até agora se tornava em pranto
Se converta em afetos de alegria.
Cláudio Manoel da Costa

                Outra curiosidade é que o Arcadismo brasileiro ocorreu em Minas Gerais e estes dois escritores acima tomaram parte do que convencionou-se chamar de Inconfidência Mineira, aquela mesma que enforcou e esquartejou Tiradentes.
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                Enquanto isso Portugal retomava sua autonomia, inclusive literária com um dos poetas mais interessantes de sua história: Manuel Maria Barbosa du Bocage, ou simplesmente Bocage.
                Neste ensaio não caberá descrever toda a profundidade e genialidade deste autor, que anteviu em sua obra elementos próprios do Romantismo várias décadas antes do próprio movimento Romântico. Quanto aos seus textos árcades, tem tudo o já citado parágrafos acima. Mas a graça está na boca suja deste poeta de geniais travessuras.
                Em Portugal dizer uma piada du Bocage é o termo para tirem as crianças e as mocinhas da sala porque lá vem sujeira. Então, tirem as crianças e as mocinhas da sala porque transcrevo abaixo dois poemas du Bocage.

É pau, e rei dos paus, não marmeleiro.
Bem que duas gamboas lhe lombrigo;
Dá leite, sem ser arvore de figo,
Da glande o fruto tem, sem ser sobreiro:

Verga, e não quebra, como o zambujeiro;
Oco, qual sabugueiro tem o umbigo:
Brando ás vezes, qual vime, está consigo;
Outras vezes mais rijo que um pinheiro:

Á roda da raiz produz carqueja:
Todo o resto do tronco é calvo e nu;
Nem cedro, nem pau-santo mais negreja!

Para carvalho ser falta-lhe um u;
Adivinhem agora que pau seja,
E quem adivinhar meta-o no cu.
Bocage

Lá quando em mim perder a humanidade
Mais um d′aqueles, que não fazem falta,
Verbi-gratia — o teólogo, o peralta,
Algum duque, ou marquês, ou conde, ou frade:

Não quero funeral comunidade,
Que engrole sub-venites em voz alta;
Pingados gatarrões, gente de malta,
Eu também vos dispenso a caridade:

Mas quando ferrugenta enxada idosa
Sepulcro me cavar em ermo outeiro,
Lavre-me este epitáfio mão piedosa:

«Aqui dorme Bocage, o putanheiro:
Passou vida folgada, e milagrosa;
«Comeu, bebeu, fodeu sem ter dinheiro. »
Bocage

                O Arcadismo deixou em nossa cultura as marcas da dicotomia campo cidade, mas também o prenúncio das novas relações humanas. Foi influenciado não apenas por Rousseau, mas também por outros filósofos chamados iluministas: Montesquieu, Voltaire, Diderot, Kant...
Resultado de imagem para arcadismoCom eles ideias de igualdade, liberdade, fraternidade, autonomia do homem, queda do absolutismo. Assuntos excelentes que talvez retorne em outro texto, mas que pertencem bem mais a aulas de história, sociologia e filosofia. Se é que há local propício para se questionar o destino e o surgimento do homem burguês. Este ser que desenvolve processos mecânicos cada vez mais dinâmicos de produção, mas que se entedia por não saber o que fazer com seu tempo livre.

                Assunto para um ensaio sobre o Romantismo. Até lá.

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