As aulas de história nunca foram tão importantes para entender um
movimento literário quanto neste momento. Vou tentar resumir:
A Igreja Católica toda poderosa do período medieval vinha perdendo poder
ao longo de séculos de intenso processo científico e racionalizador conhecido
como Renascimento, esta visão de mundo trouxe novas perspectivas (não à toa uma
das grandes marcas das pinturas desse período ser a profundidade visual, isto
é, o fundo não é mais chapado, claramente notado na Mona Lisa de Da Vinci),
estas perspectivas tiveram muito a ver com o fato de a igreja proibir o lucro e
controlar as pesquisas científicas (vale lembrar que foi no seio da Igreja
Católica que surgiram as universidades como as compreendemos hoje).
Em suma, o Renascimento modernizava as relações humanas e cobrava o preço
ao catolicismo: ou a Igreja mudava ou perdia poder. Aconteceu ambos.
No século XVI houve a consolidação das conquistas científicas, culturais,
sociais e humanas do Renascimento e a tentativa do poder estabelecido, na
figura da Igreja Católica, de controlar as pessoas – corpos e mentes, com o fim
de continuar mantendo-se no controle.
O conflito entre esta visão racional de homem renascentista com a reacionária
da igreja forma o caldo de cultura traduzido em um sentimento desesperador de
inadequação ao mundo.
Este homem que sabe que a terra não é plana ou achatada, mas que não sabe
como se portar ante esta nova informação porque se continuar confirmando a
ciência será condenado ao inferno.
Se não o inferno espiritual o real, pois a Inquisição perseguia os que repetissem
tais heresias, como o fato de o Sol ser o centro do sistema solar, a Terra
girar em torno dele, nosso minúsculo planeta ser apenas um entre tantos outros
astros, a própria impressão da Bíblia numa tentativa involuntária de tentar
popularizar a leitura – sim, o livro, no formato como o concebemos, foi
impresso por Gutenberg em 1455 inaugurando um novo momento na história humana.
Enfim, o inferno na fogueira era bem real aos que se opunham aos caminhos da
igreja.
Assim, é compreensível um pensamento exterior e outro interior, como o
fato de as pessoas terem de se comportar de maneira a serem aceitas pela
sociedade que as vigiava tendo de reprimir seus desejos mais recônditos. Não
como ocorre hoje em que convivemos muito bem com nossas neuras: dentro da
igreja crentes de nossa fé pela manhã e nos embriagando com drogas lícitas e
ilícitas ao cair da tarde.
O homem do barroco acreditava mesmo no inferno e nutria do fundo do
coração a sensação de que perdia seu tempo tentando fugir deste destino, enquanto
uma esperança ainda o alcançava, orações eram feitas, a vaidade, a luxúria, a
gula, tudo o que atrapalhava o caminho à redenção era condenado numa tentativa
de buscar o paraíso. E quanto mais próximo disto mais ciente do quão difícil,
porque para aceitar as palavras da bíblia tinha que renegar a realidade que o
cercava: inventos, descobertas, ciência.
Imaginem buscar o paraíso bíblico no Brasil de 1600, um lugar cheio de
pessoas andando peladas de um lado a outro, buscar catequizá-las é um caminho,
mas não pensem vocês que os padres jesuítas que vinham ao território brasileiro
com esta função eram santos. Nem eles nem os demais degredados que ajudaram a
formar nosso povo brasileiro. A mistura entre índios (tenho de chamar de
indígena hoje porque tem muita gente chata por aí), pois bem, a mistura entre
indígenas e portugueses não ocorreu sem nenhum remorso. E é por aí que temos
que entender o barroco, como um grande remorso.
Pérolas Baroques |
Os artistas dessa época retratam este sentimento de forma a transparecer
essa ressaca moral, tipo quando nos divertimos muito à noite e passamos do
ponto. Na manhã seguinte bate aquela bad. Ou seja, o barroco foi o século da
bad.
Encare isto de forma bem objetiva. Você já deve ter se perguntado de onde
veio o gosto por retratar tanta imagem de sofrimento, como o Cristo
Crucificado. Não me ocorre a mente de forma espontânea uma escultura, quadro,
afresco renascentista com a imagem de Jesus sangrando na cruz. Este gosto pelos
aspectos mórbidos da Bíblia veio com o barroco.
Ocorreu no século XVI a cisão da Igreja, ou antes, a consciência de que o
importante não era a igreja, mas a fé. E que uma obra sem fé não é válida. É
preciso ler a bíblia, acreditar em Jesus Cristo. Crenças de uma nova religião,
a Protestante, formada pelos insatisfeitos com o Status Quo católico. Afinal,
era necessária uma religião mais moderna, adaptada ao novo momento, que exigia
aceitação do lucro e não cobrasse por indulgências, métodos mais amenos de
alcançar o paraíso, alternativas, enfim, perspectivas. Esses pensamentos formam
até hoje a base da maioria das religiões evangélicas.
Basta notar como o sucesso financeiro é celebrado dentro e fora destes
templos: a fila de automóveis na porta da igreja, mesmo a distância entre o
templo e a casa do fiel ser de dois ou três quarteirões, todos indo ao culto
com a melhor roupa: terno, gravata, cabelo feito, barba asseada, a imponência
do Templo de Salomão em São Paulo, por outro lado o valor dado dentro da
cultura católica ao sofredor, que ganha status de santo conforme se aproxima
mais e mais sofrimento, as penitências, cruzar a passarela de Aparecida de
joelhos, levar uma cruz a Juazeiro do Norte aos pés do padinho Padre Cícero. O
próprio ato eucarístico representando em cada missa os momentos finais de Jesus.
Nenhum julgamento de valor, apenas observação da realidade.
Nas igrejas católicas as imagens sangram: São Sebastião atingido por
flechas, Jesus com pregos nas palmas das mãos, o Martírio da Virgem Maria. Vou
além. O Barroco é a Igreja Católica relembrando que a vida é curta e Deus é
justo. Sendo Deus justo e as pessoas pecadoras o fim é o inferno e as imagens
mostram claramente várias formas de sofrimento, porque o foco aqui não é em
Davi apedrejando Golias, o que já seria uma imagem forte, seguindo na leitura
do livro bíblico de Samuel descobrimos que após acertar a pedra em sua cabeça,
Davi toma de uma espada e degola o gigante: o quadro barroco mostra a cabeça de
Golias nas mãos de Davi. Também a de João Batista entregue numa bandeja a
pedido de Salomé. Imagens atingidas por espadas no coração como a da Virgem
Maria.
A mudança temática e de cores é palpável.
Coitados os que se afastem da Igreja, eis o Barroco anunciando a que
veio.
Eu tive formação católica e lembro-me bem do medo que sentia ao me
aproximar de certas estátuas sempre cobertas de muito sangue.
Lembro-me que fomos uma vez, eu com minha família, a uma igreja maior e
nela havia uma estátua de Cristo, um corpo num caixão de vidro. Assemelhava-se
mesmo a um corpo real o que atrapalhou meu sono por semanas. Acho que era essa
a experiência desejada ao compor estátuas e quadros tão mórbidos.
Mas voltando ao homem dos seiscentos: ele não escolhia entre um caminho e
outro. Queria todas as glórias do céu, porque jamais duvidou da existência de
Deus (isso é coisa de três séculos à frente), e quer também os benefícios da
carne. Daí os professores de História, Arte e Literatura do mundo inteiro
definirem o Barroco como a arte do conflito: carne/espírito, bem/mal,
céu/inferno, claro/escuro, pecar/perdoar, Palmeiras/Corinthians...
E o homem do Barroco não escolhe. Daí o conflito.
Fica, não no meio do caminho, mas com ambos. E tendo ambos perde o melhor
dos dois mundos: não se satisfaz totalmente nos prazeres da carne e não recebe
as graças do Sagrado.
O nome Barroco não vem da palavra barro, tem sua etimologia numa pedra de
nome baroque que tem um formato impreciso, deformado; ao mesmo tempo bela e
feia. Com uma natureza impossível de se adaptar, mas ainda assim uma pérola. É
feia, mas é linda. Contraditória, totalmente barroca.
Num momento tão voltado à religiosidade, natural um dos maiores
escritores ser justamente um padre, o Padre Antônio Vieira. Típico homem de seu
tempo expulso de todo lugar que habitava por sua verve crítica. Dono de sermões
geniais que valem a pena serem lidos.
Recomendo mesmo sem nenhum apelo a religiosidade do leitor. Padre Vieira
escreve de forma a convencer, doutrinar, ensinar. E se muitas notas zero
aparecem nas redações do ENEM, e se muitos professores também não sabem ensinar
a seus alunos a batida estrutura de um texto de convencimento é porque
escritores como Vieira são relegados aos espaços obscuros do conteúdo escolar.
Leia ao menos o sermão da Sexagésima! Esplendoroso.
O Vieira vem de uma linha de textos barrocos conhecida como conceptista
que grosso modo significa pegar um conceito e explicá-lo, deixando claro a
todos até que não haja dúvidas. A outra linha predominante é chamada de
gongorismo ou cultismo, que também grosso modo significa encher o texto de uma
linguagem acessória, formal, labiríntica, repleta de inversões, rebuscada a
ponto de todo o conteúdo poder se resumir a um verso, não raro menos. Seria
como o aluno que não sabe o conteúdo, mas precisa escrever trinta linhas.
O maior expoente do gongorismo brasileiro é um poeta conhecido como o
Boca do Inferno – Gregório de Matos. Isso porque escrevia e falava mal de tudo e
todos. Notável como muito deste poeta chegou até os dias de hoje num país em
que os livros eram proibidos e a leitura quase que vista como um mal a ser
extirpado.
Neste contexto, muito do que se atribui ao Boca do Inferno pode nem ter
sido escrito por ele, visto que seus textos eram espalhados pelos bares e
igrejas que frequentava, aqueles com mais frequência que estes.
Gregório de Matos é um típico escritor politicamente incorreto para os
dias de hoje. Mostra muito da alma do povo brasileiro. A inveja que sentia ao
ver mulatos em cargos de comando e ele, “branco” e de “família”, tendo de viver
quase na miséria. O ódio pela cidade da Bahia, o desprezo pelos cônegos e
freiras claramente hipócritas, a sensualidade reprimida, o retrato de um
período com a propriedade de quem sabia perceber com acuidade e tinha os
atributos artísticos para escrever bem e falar mal.
Sempre que ensinei o Barroco na escola a aula beirava um curso de
catecismo, visto que muitos dos meus alunos, apesar de se dizerem religiosos,
quer dizer, pertencerem a uma religião, conheciam e conhecem bem pouco das
doutrinas de suas crenças.
Como o fato de porque não ser católico cremar os mortos, a diferença
entre o batismo para um evangélico e um católico, o que é o sexo para cada uma
dessas religiões, no que acredita um judeu (visto a maioria dos brasileiros
serem cristãos), qual o papel do Papa atualmente e qual a diferença deste papel
para o exercido secularmente?
Estudar o Barroco é um momento privilegiado para isto. Mas acredito que
se apegar aos textos é sempre mais importante.
Gosto de um poema religioso em que Gregório de Matos tenta enganar a Deus
dizendo que em Sua palavra está dito que o Reino dos Céus se perderá por um
único pecador. Portanto perdoá-lo é salvar o Reino dos Céus. Escrito de forma
gongórica, é claro, e excelente.
PEQUEI, SENHOR....
Pequei, Senhor, mas não porque hei pecado,
de vossa alta clemência me despido;
porque quanto mais tenho delinquido,
vos tenho a perdoar mais empenhado.
Se basta a vos irar tanto um pecado,
a abrandar-vos sobeja um só gemido:
que a mesma culpa, que vos há ofendido,
vos tem para o perdão lisonjeado.
Se uma ovelha perdida e já cobrada,
glória tal e prazer tão repentino
vos deu, como afirmais na sacra história,
eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada,
cobrai-a; e não queirais, pastor divino,
perder na vossa ovelha a vossa glória.
Gregório de Matos
No mais é uma viagem no tempo a um período que deixou marcas indeléveis
em nosso inconsciente coletivo e que continuam vivas nas igrejas barrocas ou
não, em toda cultura ocidental.
Também em filmes que indico a assistirem, cito estes dois “A paixão de
Cristo” claramente barroco, com sua
ênfase nos aspectos mais sangrentos e dolorosos da morte de Jesus e “Seven, os
sete crimes capitais” que conta a história de um serial killer que se arvora a
juiz e carrasco daqueles que em sua ótica vivem com o objetivo de satisfazerem
seus desejos e paixões vistas como nocivas à sociedade. Narrativas que não
explicam o movimento, mas que deixam clara sua influência ou ênfase.
Recomendo também uma viagem pelos sites dos melhores museus do mundo.
Você se surpreenderá com a quantidade de obra barroca retratando o que parece
ser um verdadeiro festival de decapitações de santos bíblicos, impossível ver a
Bíblia com os mesmos olhos.
Também uma visita ás cidades históricas mineiras: Ouro preto, mariana,
Diamantina. Lá o Barroco é temperado ouro e com muitas esculturas do escultor
Aleijadinho. Neste caso um barroco um pouco atrasado já que outra estética se
avizinhava no 1700. Fartos do excesso de
sangue e sofrimento os poetas do século XVIII pediam flores.
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