
https://anchor.fm/mauro-marcel/episodes/Arcadismo--Lagoa-azul-e-o-Segredo-de-Brokeback-Mountain-e317do/a-a9cdog
Há um filme muito interessante chamado “O segredo de Brokeback mountain” do diretor Ang Lee que conta a história de dois pastores de ovelhas contratados para pastorear durante o inverno. Ao longo da história os dois cowboys vão criando um laço de amizade que se transforma em paixão apenas interrompido pela descoberta do patrão que percebendo o relacionamento entre os dois empregados os demite e dá a entender que o faz por não aceitar que ambos pudessem se relacionar. Isto acontece com ambos ainda jovens e ao longo de suas vidas os dois sempre se encontram durante o inverno na montanha Brokeback para reviver o amor proibido naquele local idílico, em meio à natureza, mesmo no frio que não era problema. Os únicos entreveros surgiam quando algo ou alguém da cidade se punha entre ambos: preconceito, obrigações, cobranças.
O filme “A lagoa azul”, conhecido hit da sessão da tarde, também mostra
como a felicidade é possível em meio à natureza na paradisíaca lagoa que dá
título à história. Neste roteiro, um casal de crianças sobreviventes de um
naufrágio cresce sozinho numa ilha e, em meio a quedas d’água, frutas
tropicais, nudez e muito bucolismo, descobrem o amor. Que novamente é
atrapalhado quando da influência do mundo exterior, motivo de preconceitos e
degeneração do ser humano.
Esta dicotomia sempre ocorreu desde que as primeiras cidades modernas se
desenvolveram.

No romance “Iracema” de José de Alencar dá-se a mesma situação: o
português Martins e a índia Iracema se apaixonam em meio à natureza. Na busca
por seu amor Iracema abre mão de sua cultura e encontra morte parindo o
primeiro cearense Moacir, de significado o filho do sofrimento.
A Pocahontas da Disney passa pelo mesmo processo de encantamento pelo Capitão John
Smith, com um final delicadamente mais ameno que o de Iracema.
Quase absurdo, mas é o mesmo plot do filme “Avatar” de James Cameron.
Salvo o final feliz a história é basicamente a mesma. E clara a dicotomia
urbano/selvagem, campo/cidade.
Já notaram como nos filmes clássicos da Disney as personagens se
harmonizam de forma tão bela com a natureza, já imagino uma cena clássica com a
princesinha valsando com um pássaro. Ou nas cenas de amor sob quedas d’água,
fazendo amor nas cachoeiras, rolando num beijo apaixonado na areia da praia,
correndo atrás do grande amor entre as flores de bosque sem fim.

O Arcadismo é uma estética um tanto quanto requentada. Chamada por alguns
de neoclassicismo por retomar certas características do estilo de Camões, inova
ao conferir poder sem par ao espaço natural. Aqui a vida em meio ao campo é
tudo o que se espera, o que se almeja. Até a infelicidade no campo é menos
infeliz e impossível satisfação em áreas urbanas. Também pudera, as primeiras
cidades não eram exemplos de sanidade e organização.

Um exemplo interessante de como eram as cidades neste período vem da
origem da palavra Water Closet (o WC de banheiro). Sempre que alguém passasse
por alguma janela usada para despacharem o conteúdo dos penicos era alertado
que passaria perto do quartinho da água (water closet em inglês). Isso mesmo,
as pessoas faziam no penico e jogavam pela janela, dá pra entender como a ideia
de uma vida no campo seria melhor. Lá pelo menos havia áreas abertas e pisar em
cocô, se não raro, pelo menos longe de casa, perto de um rio com a
possibilidade limpar-se após as necessidades, menos densidade demográfica,
pensamento que degringolou no naturalismo da segunda metade do século
posterior. Mas me adianto.

Esse pensamento ignora um monte de coisa, como muitas tribos indígenas
vivendo em pé de guerra mesmo antes da chegada dos europeus, também o fato de
alguns costumes selvagens merecerem mesmo a definição de selvagem como a
antropofagia que Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral enfeitaram como um
costume ritualístico, e que mesmo assim sendo não passa de homens devorando
carne humana. Não importando a desculpa, isso é selvagem pra cacete.
Também o costume que algumas índias de determinadas tribos tinham de
matarem o recém-nascido após o parto porque não poderiam arcar com o peso de
uma jornada com a criança (este costume é muito bem retratado no filme “Brava
gente brasileira” de Lúcia Murat).
A palavra Arcadismo vem do grego e quer dizer local de poesia para
pastores, o neoclassicismo tem no convite do pastor à natureza seu principal
mote. Isso e outros elementos como a busca de uma vida amena em recursos
materiais, mas plena de realizações espirituais (áurea mediócritas), fuga da
cidade como dito parágrafos acima (fugere urbem), aproveitar a vida enquanto
possível (carpe diem).

Pois é isso e algo mais.
Carpe diem para um árcade significa entender que a vida traz a
degeneração do corpo, porque é óbvio que envelhecemos: olhos, pernas, mãos,
enfim. Não é possível extrair o mesmo de quando jovem, portanto colher o dia
também significa trabalhar com ardor porque os braços falharão na velhice, ler
em exagero ora, ainda não haviam se popularizado os óculos. E sim, experimente
os sabores, os dentes cairão. Carpe diem é um convite à reflexão devido ao
processo degenerativo do tempo.) Fecha parêntese.
Os pseudônimos são comuns neste período, afinal são poetas urbanos
relatando as felicidades do campo. Como no lindo trecho abaixo de Marília de
Dirceu. Nele Dirceu convida sua Marília a viver com ele no campo aproveitando todos
os instantes até que ao fim chegue aos dois a morte, e sim, quando olharem para
eles os demais pastores, o casal servirá de exemplo: uma vida simples, longe da
cidade, extraindo das pequenas alegrias a extrema felicidade.
Eu, Marília, não fui nenhum vaqueiro,
fui honrado pastor da tua aldeia;
vestia finas lãs e tinha sempre
a minha choça do preciso cheia.
Tiraram-me o casal e o manso gado,
nem tenho a que me encoste um só cajado.
Para ter que te dar, é que eu queria
de mor rebanho ainda ser o dono;
prezava o teu semblante, os teus cabelos
ainda muito mais que um grande
trono.
Agora que te oferte já não vejo,
além de um puro amor, de um são desejo.
Se o rio levantado me causava,
levando a sementeira, prejuízo,
eu alegre ficava, apenas via
na tua breve boca um ar de riso.
Tudo agora perdi; nem tenho o gosto
de ver-te ao menos compassivo o rosto.
Propunha-me dormir no teu regaço
as quentes horas da comprida sesta,
escrever teus louvores nos olmeiros,
toucar-te de papoilas na floresta.
Julgou o justo céu que não convinha
que a tanto grau subisse a glória minha.
Ah! minha bela, se a fortuna volta,
se o bem, que já perdi, alcanço e provo,
por essas brancas mãos, por essas faces
te juro renascer um homem novo,
romper a nuvem que os meus olhos cerra,
amar no céu a Jove e a ti na terra!
Fiadas comparei as ovelhinhas,
que pagarei dos poucos do meu ganho;
e dentro em pouco tempo nos veremos
senhores outra vez de um bom rebanho.
Para o contágio lhe não dar, sobeja
que as afague Marília, ou só que as veja.
Se não tivermos lãs e peles finas,
podem mui bem cobrir as carnes nossas
as peles dos cordeiros mal curtidas,
e os panos feitos com as lãs mais grossas.
Mas ao menos será o teu vestido
por mãos de amor, por minhas mãos cosido.
Nós iremos pescar na quente sesta
com canas e com cestos os peixinhos;
nós iremos caçar nas manhãs frias
com a vara enviscada os passarinhos.
Para nos divertir faremos quanto
reputa o varão sábio, honesto e santo.
Nas noites de serão nos sentaremos
cos filhos, se os tivermos, à fogueira:
entre as falsas histórias, que contares,
lhe contarás a minha, verdadeira.
Pasmados te ouvirão; eu, entretanto,
ainda o rosto banharei de pranto.
Quando passarmos juntos pela rua,
nos mostrarão co dedo os mais pastores,
dizendo uns para os outros: - Olha os nossos
exemplos da desgraça e sãos amores.
Contentes viveremos desta sorte,
até que chegue a um dos dois a morte.
Tomás Antônio Gonzaga
Um ponto curioso é o Exame Nacional
do Ensino Médio (ENEM) fazer bastante uso de poemas deste período em suas questões.
O soneto abaixo é um exemplo que já serviu para esta prova e que serve como
poema exemplar do arcadismo, assinado pelo pseudônimo Glauceste Satúrnio, nome
artístico do poeta brasileiro Cláudio Manoel da Costa :
Torno a ver-vos, ó montes; o destino
Aqui me torna a pôr nestes outeiros,
Onde um tempo os gabões deixei grosseiros
Pelo traje da Corte, rico e fino.
Aqui estou entre Almendro, entre Corino,
Os meus fiéis, meus doces companheiros,
Vendo correr os míseros vaqueiros
Atrás de seu cansado desatino.
Se o bem desta choupana pode tanto,
Que chega a ter mais preço, e mais valia
Que, da Cidade, o lisonjeiro encanto,
Aqui descanse a louca fantasia,
E o que até agora se tornava em pranto
Se converta em afetos de alegria.
Cláudio Manoel da Costa
Outra curiosidade é que o
Arcadismo brasileiro ocorreu em Minas Gerais e estes dois escritores acima
tomaram parte do que convencionou-se chamar de Inconfidência Mineira, aquela
mesma que enforcou e esquartejou Tiradentes.
Enquanto isso Portugal retomava
sua autonomia, inclusive literária com um dos poetas mais interessantes de sua
história: Manuel Maria Barbosa du Bocage, ou simplesmente Bocage.
Neste ensaio não caberá descrever
toda a profundidade e genialidade deste autor, que anteviu em sua obra
elementos próprios do Romantismo várias décadas antes do próprio movimento Romântico.
Quanto aos seus textos árcades, tem tudo o já citado parágrafos acima. Mas a
graça está na boca suja deste poeta de geniais travessuras.
Em Portugal dizer uma piada du
Bocage é o termo para tirem as crianças e as mocinhas da sala porque lá vem
sujeira. Então, tirem as crianças e as mocinhas da sala porque transcrevo
abaixo dois poemas du Bocage.
É pau, e rei dos
paus, não marmeleiro.
Bem que duas
gamboas lhe lombrigo;
Dá leite, sem
ser arvore de figo,
Da glande o
fruto tem, sem ser sobreiro:
Verga, e não
quebra, como o zambujeiro;
Oco, qual
sabugueiro tem o umbigo:
Brando ás vezes,
qual vime, está consigo;
Outras vezes
mais rijo que um pinheiro:
Á roda da raiz
produz carqueja:
Todo o resto do
tronco é calvo e nu;
Nem cedro, nem
pau-santo mais negreja!
Para carvalho
ser falta-lhe um u;
Adivinhem agora
que pau seja,
E quem adivinhar
meta-o no cu.
Bocage
Lá quando em mim
perder a humanidade
Mais um
d′aqueles, que não fazem falta,
Verbi-gratia — o
teólogo, o peralta,
Algum duque, ou
marquês, ou conde, ou frade:
Não quero
funeral comunidade,
Que engrole
sub-venites em voz alta;
Pingados
gatarrões, gente de malta,
Eu também vos
dispenso a caridade:
Mas quando
ferrugenta enxada idosa
Sepulcro me
cavar em ermo outeiro,
Lavre-me este
epitáfio mão piedosa:
«Aqui dorme
Bocage, o putanheiro:
Passou vida
folgada, e milagrosa;
«Comeu, bebeu,
fodeu sem ter dinheiro. »
Bocage
O Arcadismo deixou em nossa
cultura as marcas da dicotomia campo cidade, mas também o prenúncio das novas
relações humanas. Foi influenciado não apenas por Rousseau, mas também por
outros filósofos chamados iluministas: Montesquieu, Voltaire, Diderot, Kant...

Assunto para um ensaio sobre o
Romantismo. Até lá.