domingo, 2 de novembro de 2014

Mingau, Balzac e Kennedy

     Conheci o Mingau numa tarde enquanto esperava o ônibus para o trabalho, tinha (eu) dezoito anos e sabia todas as coisas do mundo, tanto que convidei meu amigo e parceiro Sant'Anna para a elaboração de um fanzine para escrever todas as coisas que nós sabíamos.
     Coincidentemente esperando o ônibus o Mingau desceu a rua e, ao me ver vestido uma camiseta do Iron Maiden, me entregou o fanzine que ele produzia sozinho. 
     Dono de um texto maravilhoso, o Mingau foi (e é) a maior tradução da periferia guarulhense dos anos 1980 e 90, ou do que deveria ser e nunca foi. Erro. O Mingau não foi a tradução, foi o tradutor. Me envergonhei do meu texto ao ler o dele e percebi o óbvio.
     O Mingau não disse nada, mas apontou suas letras em riste na minha cara e declarou: você não sabe nada.
     Meu chão desapareceu, mas não tive medo, caminhava sempre com cópias da minha publicação, trabalho que chamava de "O clandestino", nome presunçoso e romântico. Me sentia feliz distribuindo fanzines e doutrinando os meus colegas. Sendo "o inteligente", bem entre aspas.
    Travei uma amizade com o Mingau que durou algo em torno de dois meses. Durante esse tempo ele mais escutava que falava: queria ouvir sobre minhas opiniões políticas, queria ler o que eu escrevia, dizia-se fã do meu fanzine de quatro folhas (oito páginas) e condensava em apenas uma frente e verso muito talento em seu próprio fanzine que nunca teve um título. Talento que jamais alcancei.
     O Mingau era grandioso. Sei disso porque anos depois ainda encontro gente que foi tocada por sua vida.
     Mais de dez anos se passaram e sempre que encontro alguém que morou no mesmo bairro que eu nos anos 80 e 90 diz ter conhecido o Mingau e o quão espetacular ele era.
     Era? É? Ninguém sabe. Está vivo? Morreu? Ainda é o Mingau? Ou atende por seu nome civil: Sérgio Miguel?
     Nunca soube nada do Sérgio, sempre fui fã do Mingau. dos meus dezoito anos de idade até aqui fui conhecendo pessoas que me contavam sobre festivais de rock na periferia organizados por ele (shows que havia assistido sem nunca saber que era ele o organizador), de como o Mingau reunia as pessoas ao redor de festas, debates, militância (não a tosca militância de hoje, a verdadeira, propositiva, provocadora, supra e apartidária).
    O Mingau foi a personalidade mais importante da vida de quase todas as pessoas que eu conheci que o conheceram. Conversar sobre ele é enfiar as mãos bem abertas dentro do subconsciente delas e chacoalhar, esfregar, bater.
     Vi lágrimas nos olhos de muitos lembrando de como o Mingau era amigo do namorado e apresentou-a a ele e a partir daí começou a história de amor que culminou em casamento, outro que me contou como ele o incentivou a ter aulas de guitarra, continuar na escola, procurar um emprego, fazer poesia.
     Um rapaz nunca havia tido uma festa de aniversário e teve sua primeira no meio de um festival de rock, com o parabéns pra você cantado com um "wish you were here" mal executado ao fundo e tudo organizado pelo Mingau.
     Um grande cara.
     Não sei mais que isso dele. Histórias. Ótimas histórias. Dúzias delas.
     Egoísta e falso intelectual que eu era, assim como todo adolescente leitor, era mais interessado com o meu nariz e nunca perguntei se tinha irmãos, se morava com o pai ou com a mãe, ou ambos, se trabalhava, estudava. O que fazia além de ser o cara mais legal do mundo.
     Será que era um alienígena? Um duende? Um mago? Talvez um espírito errante, anjo decaído...
     Que nada. Era tão simplesmente a melhor tradução do que as pessoas gentis podem causar no próximo quando fazem o mínimo para causar uma boa impressão por onde passam.
     Sem esforço. Honestamente.
     Tenho certeza que o Mingau - o Sérgio, vá saber como é conhecido hoje - tenho certeza que ele não lerá nada do que está contido nesta crônica. O Mingau era um cara do mundo real, um sujeito do bem, maior que a internet, ele não caberia neste espaço cibernético que nos apequena, nos limita, destruindo nossa sensibilidade para o outro.
     Talvez tenha morrido e já foi tarde. Vá saber a depressão que estaria ao ver o que estamos nos tornando.
     Quiçá vivo. Se adaptando ou adaptado aos novos tempos em que a gentileza é tão rara e confundida com pedidos de favor, interesses...
    Será que o Mingau caberia num mundo em que a crítica, a provocação e o pensamento são desvalorizados, ridicularizados, degredados.
     Neste mundo inorgânico faz-nos falta uma pessoa boa, honestamente boa.
     Posso dizer que tenho amizades mais longevas e fortes, muito mais do que a que tive com o Mingau. Também posso dizer que fui influenciado por Machado, Balzac, Whitman, Clarice, Pessoa...
     Posso dizer que muita coisa foi importante na minha vida, mas o cara do apelido estranho, que nunca tive a oportunidade de perguntar o  porquê, me esfregou textos maravilhosos na minha cara e disse que os que eu fazia eram bons.
     Relendo o que eu escrevia há tanto tempo percebo o quanto ele foi generoso e incentivador. E é isso o que faço até hoje como professor e escritor.
     Pois enquanto muitos sonham em ser tanto, pelos lugares que passo eu não quero ser Gandhi, Ozzy, Marley ou Kennedy eu apenas quero fazer o bem, inspirar as pessoas, ser o Mingau de alguém.

Por: Mauro Marcel

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