Hoje
é dia dois de novembro, dia dos mortos. Minha falecida avó não gostava que
disséssemos mortos. Preferia dia de finados. Talvez aliviasse um pouco do peso
da morte, porque fulano não morreu, fulano passou dessa para outra, é um finado.
Está vivo em nossos corações. Etc...
Tenho
muitos mortos para lembrar, alguns amigos de infância que embarcaram por um
caminho errado e caíram na guerra do tráfico, um primo bem mais velho que eu
que não viveu até a idade que eu tenho morto em situação estranha cravejado de
balas na frente da minha casa, meu amado avô que me ensinou a dar nó em
gravatas, sentar cruzando as pernas e passou devido a um câncer no palato que o
minguou durante quase quatro anos, minha avó, já citada, que não aguentou ficar
muito tempo sem ele e foi-se um par de anos depois, tios, tias, conhecidos.
Tem
uma personagem da minha infância muito peculiar: tinha aproximadamente a minha
idade, loira, bonita, éramos educados um com o outro, nos cumprimentávamos.
Nunca estudamos juntos, mas sua mãe, às vezes, me buscava na escola fazendo um
favor pra minha mãe que sempre ocupada na criação dos três filhos tinha que se
desdobrar para ser pai, mãe e fazer direito. Essa menina que não vou citar o
nome porque era real, desapareceu da minha vida como as pessoas desaparecem das
vidas umas das outras: normalmente.
O
que me chama a atenção foi que numa manhã de natal, vários anos depois, todos
já adultos, recebi a notícia de que essa menina (agora mulher) havia cometido
suicídio por envenenamento durante a noite. Era casada, sem filhos e pelo visto
sem motivo aparente para viver.
Me
chocam coisas assim: a menina alegre que corria na frente gritando o nome da mãe,
com o rosto pintado com o desenho de uma borboleta, cantando ostra lá lá lá lá
lá ô...
Suicida.
Não
quero que esta seja uma crônica lúgubre, desde que descobri que morreria tenho
problemas irremediáveis com o meu subconsciente, e até com o consciente. Como
alguém pode ficar em paz sabendo que vai morrer, sabendo que todo dia vivido é
um dia a menos e querem que o fim de semana chegue logo, o tempo passe rápido,
o final do ano que não chega, a hora que não passa, ansiosos por um momento que
aproxima a todos de tornarem-se o que todos tornar-se-ão: finados.
Tem
um livro do José Saramago chamado “As intermitências da morte”. Excelente assim
como todos os escritos por ele, narra a fábula de um país em que a morte para de
cumprir com as suas obrigações não levando mais ninguém.
Apesar
de todos os problemas causados pela falta da morte, nada neste livro serviu
para me conformar com o meu próprio passamento. Foi um fim de ano que fiquei
pensando na menina que se suicidou no natal, muito senso comum, é no natal que
aumentam os casos de suicídio. E auto atentados são ações mais comuns do que
qualquer um poderia imaginar, mas é uma espécie de tabu. Algo proibido de ser
discutido, que não nos preocupa até acontecer ao nosso lado, com algum amigo,
conosco... Conosco?
Vá
saber.
São
essas reflexões e outras do tipo que o dia de finados me traz. Penso em como
vou levando a vida, como será no fim a minha morte (a única certeza que temos),
penso em como devem estar em outro plano as pessoas que fizeram parte da minha
vida, questiono a existência deste outro plano assim como toda pessoa racional
faz, não vou a cemitério, mas vivo numa cultura em que a morte é tida como algo
triste, e motivo de luto.
Diferente
de outras culturas, no Brasil, quando alguém morre, não fazemos uma elegia, um
memorial; rezamos o terço para encomendar o morto para o outro mundo e quando é
o dia de finados lembramos dele com orações, velas e flores. Chorando, porque
somos latinos e é assim que somos. Passionais. Choramos muito.
O
que me leva a questionar a forma como a morte está sendo tratada na nossa
sociedade virtualista, infantilizada, desmemoriada,... burra.
Acordei
neste dia com a notícia de que um cemitério no Rio de Janeiro contratou
personagens para alegrarem o local: Chacrinha, Santos Dumont, Carmem Miranda e
outros tantos fantasiados faziam as vezes de mortos que andam, dando um ar de
leveza ao ambiente, não nos deixando esquecer de figuras tão importantes para o
engrandecimento da nação.
Em
São Paulo, o já tradicional, desfile de zumbis também vilipendia a morte.
Muitos adolescentes de todas as idades, inclusive alguns com mais de trinta e
quarenta anos, se fantasiam de morto vivo e saem caminhando pelo roteiro
pré-estabelecido pelos organizadores. Ao final todos se confraternizam e, se
der, é possível na troca de fotografias e selfies um beijo na boca, um amasso,
muita risada. A leveza do dia está garantida.
Não
quero nem falar de como estamos aos poucos perdendo nossa identidade cultural.
Pergunte a qualquer criança de doze anos porque o dia 12 de outubro é feriado e
se surpreenda se ela responder dia de Nossa Senhora Aparecida. Não é porque é o
dia das crianças que é o feriado.
Sem
qualquer caráter religioso. Não é disso que estou falando. Falo de como nossa
cultura se perde dando lugar a uma ordem mercadológica idiota, que transforma
um dia por mês em uma data de consumo, temos um natal por mês e assim girando a
economia, anestesiando-nos da realidade.
Criamos uma fantasia com data de
início, fim e reinício. A cada ano a mesma coisa, e como temos memória curta,
nos repetimos ao infinito, ou até a morte. Damos sentido à nossa medíocre existência
sorrindo, desesperados, sem nunca pensar no mistério que nos cerca.
Tudo na vida é mistério e quando
você olha pra ele, ele te olha de volta.
Estamos com outras preferências:
o natal é o aniversário do Papai Noel, a Páscoa o do coelhinho, quarta-feira de
cinzas é o último dia de festa, em finados brincamos de zumbi e por aí vai.
Nunca entramos em contato com
nosso eu-filosófico. Aquele que se pergunta de onde viemos, para onde vamos e
se angustia porque não tem resposta para nenhuma dessas perguntas loucas e
absurdas.
Mas mesmo assim temos a
convicção de que não estaremos sozinhos, porque há outras pessoas dividindo um
feriado conosco, indo na mesma direção, pensando coisas positivas porque quando
lembramos é isso que fazemos. Mantemos contato, mesmo que de forma indireta,
com outras pessoas, e contato humano é muito do que nos falta hoje.
Gostamos de enganar nossas
angústias porque não haverá quem as escute, tanto o fazemos que acabamos por
mentir para nós mesmos, então nos vestimos de zumbi, compramos presente no
natal, chocolate na páscoa e a cada trinta dias um novo motivo para esquecer
que não estamos levando nossa vida a lugar nenhum, andamos em círculos e sem
olhar para os lados.
Ir ao campo santo e encontrar
alguém fantasiado de quem já morreu naquele cemitério é de muito mal gosto e
uma falta de respeito sem tamanho. Mas estamos tão afundados nesta nossa
psicopatia social que nem reparamos no que estamos nos tornando. E quer saber,
não damos a mínima.
A morte chega para todos, mas
viver seguindo a manada já é uma forma de morrer. Então temos os zumbis que
seguem andando sem rumo, com uma fome insaciável, dia a dia...
Queria ter algo mais animador
pra falar por hoje, mas por enquanto é só.
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