Ontem passei por uma rua e vi algumas crianças
cantando uma velha cantiga que eu também cantava em tenra idade, não apenas eu,
com certeza o meu querido leitor também deve tê-la cantado, essa e outras que a
meninice sempre canta e nos dá a nostalgia e o desejo de voltar a ser criança;
mesmo sendo a infância o pior período de nossas vidas.
Sim, verdade. Quem diz que a
infância é um período doce é porque não se lembra dos medos, pesadelos,
inseguranças, tudo o que cerca os primeiros anos. Isso uma infância normal. Mas digo todas. Não
à toa tem várias ciências que se sustentam tratando estes traumas. Teorias
sobre como surgem os psicopatas, neuroses, esquizofrenia, insanidades...
A infância é o período em que não
sabemos e o não saber apavora e depois sabemos e saber também apavora. Estamos
frágeis, não que as crianças sejam vítimas, mas precisam de um cuidado extremo
porque não sabem onde pôr as mãos, o dedo, o pé, a cabeça, e tem fogo,
eletricidade, pregos, dentes caindo, primeiro dia de aula, chegada do novo
irmão, pai chegando bêbado em casa, mãe fumando na sala, assassinato na casa
vizinha, amiguinho que morreu, disco voador na televisão, Teletubbies, Bozo,
sexualidade, pulsões de vida e morte, mingau de aveia, lego, inveja, sonhos,
pesadelos, sangue escorrendo do machucado, mertiolate que arde assim como ter
de lavar o machucado após o corte, o galo na testa, ter de dormir sozinho no
quarto ou ter de dormir amontoado de um monte de gente no meio da sala,
acampado em um abrigo para desabrigados, carente de pais, acordado chorando
ainda com o cordão umbilical pingando sangue numa caçamba de entulho...
Mas também pode ser as travessuras
de Pedro e Narizinho em um sítio cheio de magias adentrando o reino das águas
claras, ou dentro de uma parede numa estação ferroviária entrando num mundo de
magia e aventuras, ou descendo pelo encanamento de uma velha casa abandonada e
encontrando um navio pirata cheio de tesouros, ou indo pelo super fantástico
balão mágico onde tudo fica bem mais divertido.
A infância não morre em nós. Estará
para sempre viva. Voltaremos nela para lembrar nossos pais, avós, tios, primos.
Pessoas que estiveram lá beirando o parto e estarão também velando a morte; e
estava por aí o caminho do meu raciocínio quando me dei conta de que houve uma
subversão na cantiga: um menino gritou para atirar o pau no gato e a menina
disse que a professora ensinou que aquilo era errado. “Não podemos cantar essa
música porque ela ensina crueldade com os animais”.
Mas ora ora. Pensei eu. Como pode
ser tão cruel a canção. Eu sei que atiraram o pau no gato. Mas o gato, querida
professora, o gato não morreu. E a Dona Chica ainda ficou admirada com o berro
que o gato deu. Tudo bem que nada consta sobre ela ter levado o bichano para o
veterinário, mas uma admiração, já é muito para uma cantiga cantada pelos
nossos avós e que chega aqui de forma espontânea para sofrer a censura escolar,
e as crianças nem na escola estavam.
Continuaram cantando, agora outra
música, quando a mesma criança gritou impedindo a continuação do jogo infantil:
o boi não podia ser da cara preta. “Mas por quê?” gritou desesperada a
interlocutora da cantiga “A professora falou que quem tem cara preta é bonito.”
“Tá, mas é só cantar.” “Mas a professora disse que está errado”.
Não pode mais cantar a canção do boi
cara preta que pega a menina que tem medo de careta. Absurdo. Ou eu que devo
estar por demais ignorante sem me ater para as mensagens subliminares nas
canções infantis.
E o nana nenê? Será que pode?
Acho que não. Acredito que alguém
vai entrar com um processo por ameaça de abandono de incapaz, ou tortura
psicológica, afinal: mandar o nenê dormir e ficar ameaçando que uma bruxa
chamada Cuca vai pegar, o papai está longe [na roça] e a mamãe foi trabalhar.
Mais ainda. Tem uma brincadeira em
que os meninos colocavam outras crianças na roda e no final quem sobrasse era
chamado de lixeiro, lixeiro, lixeiro... Será que ainda pode ou o sindicato dos
coletores de lixo tem algo a declarar a respeito, ou alegarão ser bullying e
perigoso ao psicológico das crianças.
Fiquei com medo da menina que
impedia as outras de cantarem as singelas músicas da minha infância, tinha uma
autoridade que sinto que a acompanhará por toda a vida. Estava toda altiva,
posso imaginar sua mãe alegre por saber ser a filha tão jovem defensora do
direito dos animais, das minorias, dos desvalidos enquanto esquece que
problemas como estes só existem na cabeça de idiotas velhos como nós, não de
menores de cinco anos de idade que jamais jogarão um pau em um gato
influenciados por uma canção estúpida, nem discriminarão alguém por conta do
boi ter a cara preta.
Esta higienização que começa na
infância perpassa toda a nossa formação e nos atinge de forma tão grande que no
futuro será difícil dizer se o que estamos falando é um dado de cultura
histórico legítimo ou é invenção de algum desocupado num curso raso de
pedagogia ou ciências sociais. Parece coisa de economista. Eles são os piores.
Esta formação em partes, gente que lê a orelha
do livro, assiste a palestra e se acha digno profissional com formação
universitária.
Posso estar escrevendo sobre o nada
aqui. E, de fato, faço muito isso. Mas creio que o principal problema quando
falamos em preconceito está dentro de casa na forma como o pai e a mãe educam a
criança. Se o cara que está no início da vida dele tem uma referência de
qualidade, se na hora de ir dormir a mãe está com um livro pra lhe contar
histórias, se quando todos estiverem em casa a TV for desligada e for dado ao
menino mais opções que vídeo game ou mini game.
Não posso falar muito sobre o
assunto, minha experiência com crianças é a minha própria infância, que aliás,
não foi nada fácil. Mas acredito que mudar o passado, moldar a cultura e
transfigurar as cantigas de roda são um pequeno passo para a destruição de um dado
verdadeiro de cultura, dado este que não é como o Didi chamando o Mussum de
criolo, ou o Seu Madruga apagando um cigarro na palma da mão do Quico. É sobre
higienização cultural que estou falando, mais conhecido como lavagem cerebral. Sempre
o Gramsci sendo o Papa de toda uma geração. Que segue suas ideias sem nunca
tê-lo lido, ao menos os executores, pois dentro das torres de marfim do
universo acadêmico há uma legião de seres podres e mal intencionados
sentindo-se no direito de ditar o que é ou não legítimo.
Começa na infância, mas em breve
estarão invadindo terreiros, igrejas, churrascos, bailes, rodas de capoeira...
quando menos percebermos estaremos assépticos, limpos como o Logan fugindo no
século XXIII.
Mauro Marcel
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