sábado, 15 de novembro de 2014

Noruega, Bozó e a agente de trânsito

                Há alguns anos, ou muitos, li “Os Miseráveis” de Victor Hugo e não consegui alcançar o que o autor propunha em termos de injustiça. Não me entenda mal, caro leitor, é um livro excelente: compreendi o poder estético da obra: aquele policial incansável atrás do injustiçado querendo reconstruir sua vida: os marginalizados, a injustiça.
                Mas tudo ficava no campo do literário, a minha discussão comigo mesmo versava sobre como o escritor conseguia exprimir dramaticidade e força, como ele nos leva por caminhos narrativos extraindo emoção.
                A realidade é outra coisa.
                Houve o caso na semana passada, ou retrasada; de uma agente de trânsito no Rio de Janeiro que processou um juiz pelo fato de o mesmo a ter desrespeitado no exercício de sua função e como o caso foi revertido tendo ela que pagar multa no valor de cinco mil reais ao magistrado por desacato.
                A história não é surreal, é até prosaica: parado em uma blitz o cidadão não portava carta de habilitação, documentos do veículo, o carro novo estava sem placa e o cidadão (o juiz da história) se recusou a cumprir a lei, pois segundo esta o carro seria apreendido sendo devolvido após o emplacamento e pagamento das multas devidas. Isso sem contar que era uma blitz de lei seca.
                O juiz se recusou a entregar o veículo e chamando a polícia deu voz de prisão à agente que se recusou ir presa alegando que não havia cometido crime. Perguntando sobre o motivo da prisão hugoana, a moça, já descendo dos saltos, disse que o juiz não era Deus para fazer o que bem entendesse, não estava acima da lei.
                Este foi o argumento “divino” que a fez ter de pagar os cinco contos de réis.
 Devo ter acrescentado algo à narrativa, retirado um tanto, alterado a ordem de alguns fatos, mas grosso modo foi o que aconteceu e indignou a sociedade brasileira, sendo notícia em todos os jornais respeitáveis ou não, falados e escritos, marrons, preto e branco, ou coloridos.
Fizeram até uma vaquinha para auxiliá-la (coitada) no pagamento da injusta multa, mesmo havendo possibilidades infindas de recurso.
Porém, o que me chama a atenção nesta história brasileiríssima e rasteira não é o fato, nem a injustiça em si, mas a cultura da carteirada. O motorista fantasma (sem lenço, sem documentos, nada no bolso ou nas mãos e deus, já que dizer o contrário é desacato).
A cultura da carteirada não é nova e foi encarnada de forma magistral pelo personagem Bozó de Chico Anysio: era um fulano medíocre (o personagem, não o Chico) vivia com um crachá com o símbolo da globo pendurado no pescoço e querendo, portanto, as prerrogativas deste mérito.
Na República Federativa do Brasil, onde rege o princípio democrático, o Bozó entre os iguais era o mais igual porque trabalhava na globo, assim o juiz é mais igual que os outros por ser juiz.
Errado? Muito. Porém (outro porém) se eu estivesse na posição do juiz, será que teria agido de maneira diferente e sido menos Bozó?
Toda vez que vamos a uma repartição pública rezamos para conhecer alguém que conhece alguém que conhece alguém que nos poupará tempo de fila e dinheiro, tornando nossa vida mais fácil. Enquanto os meros mortais continuam presos no labirinto burocrático.
O que me falta, às vezes, é a cara de pau e aquilo que chamo de psicopatia social pelo fato de não perceber que passar na frente dos outros numa fila de hospital é condenar, por vezes, pessoas à morte.
Conhecer alguém que conhece alguém que pode te encaixar num emprego público, te liberar da multa, acelerar o tratamento, dar um melhor atendimento, te possibilitar um curso, um mestrado, acesso a bens e equipamentos públicos.
A ética.
Será que tendo as mesmas condições do juiz eu faria diferente? Será que eu tendo o poder na mão, eu: O juiz! Deixaria uma reles agente de trânsito levar meu carro, forçando-me a voltar pra casa ao lado da minha digníssima esposa? Seria o auge da castração do poder, quase um capamento físico. Será que eu cumpriria a lei e voltaria de ônibus pra casa? Eu o juiz, voltando com o meritíssimo rabo entre as pernas.
Não. Eu não aceitaria.
Eu estou na média do ser humano, não sou tão mau a ponto de matar alguém, nem tão bom para abrir mão de minhas prerrogativas. Dar sopa aos pobres é fácil, difícil é não aceitar aquela ajudinha, aquele acordo, aquela pequena quebra do acordo social quando ninguém está vendo e se estão que diabo poderão fazer?
Se eu fosse aquele juiz seria tão ou mais Deus. (Tive vontade de escrever um adjetivo para qualificar o magistrado, mas se a moça foi condenada por dizer que ele não era o todo poderoso, o que faria comigo se o qualificasse?) Se eu fosse o Juiz eu faria pior: não só não deixaria a moça não levar o meu carro como apreenderia o automóvel da agente, confiscaria sua casa, exonerava-a do cargo público, comeria sua mãe. Se eu fosse o juiz não mandaria matá-la,  revogaria a lei Áurea e a escravizaria, colocá-la-ia no tronco, dava uma surra de chico doce pra ela ver quem é que manda.
Sem hipocrisia. Quando estamos aqui embaixo é fácil se identificar com os mais fracos. Mas imaginem a vida desse juiz: assim como o Boris Casoy humilhando os lixeiros às vésperas de natal ele cresceu tendo tudo o que queria, “conquistando”, “batalhando”, sendo “ajudado” e “ajudando”. Entende das leis. Confia nelas. Sabe quem manda.
Obedece quem tem juízo.
Imagino o coitado do juiz chegando em casa e sem sono, lembrando-se da empáfia daquela agente. E da noite tranquila que teve ao saber que os seus conhecidos do fórum cumpriram com o combinado. Não foi ela por elas, o troco foi rápido e rasteiro.
Tudo isso eu penso muito triste, lutando comigo a cada dia para ser um ser humano melhor. Todos ficaram chocados com a mocinha sendo hostilizada pelo malvado, mas no lugar do malvado ninguém age como mocinho. Se assim agissem porque há tanta corrupção? Tanto troco errado e ninguém devolve à moça do caixa. O conhecido na frente da fila, o amigo que trabalha no serviço público, o funcionário do vereador, a compra de voto, o Tiririca eleito, a caixinha dentro do documento do carro, a operação Lava Jato, o cargo de confiança, o acordo obscuro, a cola no ENEM.
Uma das coisas que mais encarecem o Brasil é a falta de honestidade de seu povo: eu, tu, ele, ela, nós vós, eles e elas. A quantidade cadeados que colocamos nos portões, a quantidade de portões, o segurança particular, a segurança pública, a escolta armada, o crime, o narco-crime, o jeitinho, o tapinha nos ombros, a troca de favores.... não percebemos porque estamos inseridos nessa cultura assim como para um Ianomâmi deve ser difícil conceber o mundo de outra forma que não na selva.
Eu fiquei tocado, sinceramente emocionado com a indignação pública diante da atitude do juiz, mas fico muito mais ao perceber que sua atitude faz parte da nossa selva diária, e o Senhor da Lei, deus encarnado, é apenas parte da engrenagem cultural tupiniquim que prevê prerrogativas especiais a quem ascendeu ou já nasceu ascendido na escala social. Lutamos por isso, queremos nossos “direitos”.
Triste.
A bastilha caiu há tanto tempo e por aqui ainda aceitamos seres com tratamento nobre, que podem sair sem pagar a conta, podem beber e dirigir, atropelar, matar e não ir pra cadeia, roubar, mas fazer e ser reeleito e nunca ver o sol nascer quadrado. Numa sociedade de castas tão ridícula quanto qualquer sociedade de castas.
A ilustre agente fez o que qualquer agente de trânsito norueguês faria. Na Noruega. E o Juiz fez o que qualquer um de nós faria. No Brasil.


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