terça-feira, 23 de abril de 2013

Meia entrada, enrabada e quarenta por cento

               O Brasil é um país sui generis. Diferente de muita coisa que acontece por aí. 
              No mundo sempre há alguém enrabando alguém, nos países capitalistas o capital sempre enraba o povo, no socialismo é o estado o enrabador. 
            Nos Estados Unidos a saúde é privada, funcionando ou não, eles sabem a quem reclamar quando algo não está certo; em Cuba a saúde é pública e quando não funciona sabe-se a quem recorrer. 
              E nem precisa o Estado ser socialista para a saúde ser pública, como no caso da Inglaterra, em que há o sistema de saúde universal: com problemas se recorre às ouvidorias.
              Então a escolha: o capitalismo puro, ou o socialismo (mesmo que nunca puro, mas com vistas ao social).
              No Brasil a saúde (que reza a constituição, deve ser um direito de todos) o acesso à medicina nem é público nem é privado. Pagamos impostos para ter médicos quando precisarmos, e pagamos convênios para não precisarmos dos médicos públicos.
         O caso é que somos enrabados pelos convênios particulares que nos deixam na mão quando precisamos e pela saúde pública que no Brasil é sinônimo de ineficácia. 
          E isto acontece com tudo por estas bandas: bancos, estradas, transporte, educação.
        É sabido que no Brasil a educação é melhor nas escolas particulares, mas pagamos impostos que financiariam uma educação de qualidade. 
      Em nossa nação temos os problemas do descaso com que o governo trata tudo, inclusive a educação. Os governantes são donos ou lobistas de emaranhados particulares. Desta forma você não pode esperar que um vereador queira instaurar creches e escolas públicas de qualidade na sua cidade se ele é dono de creches e escolas particulares. 
     O cara é votado pra defender os direitos do povo, mas no caso os interesses particulares, seus interesses, vão de encontro aos interesses mais urgentes da população. 
       Assim temos o nosso capitalismo de araque: um tremendo gang bang em que nos passam a mão na bunda, voltamos monotetos pra casa e sem comer ninguém.
          A população acredita que os caras se elegem pra roubar, mas nem é preciso. Se elegem pra defender interesses próprios. Interesses que nem são escusos, são óbvios e claros e abertos a todos. 
        No Brasil tudo funciona, engana-se quem pensa o contrário. Há uma política de organização do estado para servir a interesses particulares, e de controle ideológico para fazer a população não se incomodar com isso.
          Por isso ficamos tão entretidos com os espelhinhos e bugigangas que nos trouxe Cabral, assim como ficamos entretidos com os celulares que nos trouxeram Steve Jobs e coreanos, chineses e o camelô da Santa Ifigênia. 
          A próxima enrabada será com o sagrado direito do estudante à meia entrada em eventos culturais e artísticos.
           Uma lei que tramita no congresso e está pra ser aprovada limita o acesso a apenas 40% dos acentos para a meia entrada, e apenas carteirinhas de instituições oficiais, como a União Nacional dos Estudantes, por exemplo. 
         Este é o maior crime do estado brasileiro desde o Ato Institucional Número 5. 
       Apenas duas ou três instituições poderão emitir carteirinhas de estudantes, quem quiser ter a sua terá que pagar (o preço que eles estipularem, cobrado de estudantes, muitos deles carentes). Os professores estão excluídos dessa história, haverá uma lei federal que passará por cima de qualquer lei municipal ou estadual.
       O pobre professor tentará pagar meia entrada apresentando seu holerite e os caras do cinema, teatro, shows e concertos se recusarão, alegarão que respondem a uma lei federal que apenas permite venda de meia entrada aos portadores de Carteirinha de Estudante da UNE. 
          Os salafrários que propõem esta lei servem a vários lobbies. 

        Entre eles o dos cinemas que se dizem prejudicados com o excessivo número de carteirinhas falsas, que a regularização das carteirinhas reduziria os preços dos ingressos, porque assim somente estudantes  de verdade pagariam a meia entrada. O que é uma lavagem cerebral descabida.
          O preço de shows aumentou porque os cantores não vendem mais discos.
          O preço do cinema aumentou porque há DVDs piratas.
          Tudo isso mais os downlados ilegais.
          O preço do teatro está o mesmo, consigo assistir uma peça pagando 15 reais na praça Roosevelt, 7,50 se eu pagar meia. Agora se você quiser assistir a um monólogo do Antônio Fagundes, pode pagar 100 reais, o dinheiro é seu.         
      Quer dizer, não dá pra piratear o teatro. Não como pirateiam o cinema e a música.  Impossível fazer download de uma experiência teatral.
        Querer tirar dinheiro da população que paga meia pra compensar a pirataria é obsceno. E pior ainda: com a desculpa de que isso vai baratear o preço. Meus amiguinhos, isso aqui é o Brasil. O maior gang bang do mundo.
          No planeta inteiro é preciso que haja qualidade na produção artística para que público se apresente. O artista vai onde o povo está, mas o povo também vai até o artista. Acho que foi numa entrevista com o 
Fernando Meireles que ouvi dele a frase: "quer liberdade artística vai escrever um poema, não fazer cinema".
          Pois é, o cinema é uma indústria. E nos Estados Unidos é tratado como tal, lá e na Índia também. O produtor investe dinheiro e quer retorno. 
       O filme tem que ter alguém assistindo, caso contrário será um fiasco. Não há espaço tão largo a aventureiros. Ou a produção é boa, ou o diretor terá muitos problemas para filmar novamente. Há a captação de recursos, há a devolutiva aos patrocinadores; que tem seu lucro e o dinheiro devolvido para investir em outro filme. Assim a indústria cinematográfica funciona. 
          No Brasil os filmes são, em sua maioria, financiados com recursos públicos. (Quantas vezes você não viu a palavra Petrobrás no início da projeção, e mesmo se ver empresas adversas, o que há é o governo abrindo mão de recolher impostos porque estas empresas investiram em cultura). 
        O que eu quero dizer é que o Brasil é o único país do mundo, ou um dos poucos, em que um filme não precisa gerar lucro. O diretor não deve nada ao produtor, que não deve nada a ninguém. O filme não precisa ser assistido por nenhuma via'alma, porque já foi pago e com dinheiro dos nossos impostos.
           Uma vez eu fui a uma exibição do filme "A hora da estrela" da Susana Amaral. Houve uma entrevista com a diretora ao final da exibição e um idiota se levantou (um idiota bem intencionado) e disse que enquanto uma diretora maravilhosa como a Susana tinha dificuldades pra gravar, o governo investia dinheiro pra filmar filme espírita. "Uma vergonha".
             Acredito sim em muito deste argumento, mas o cinema tem que passar o que o povo quer assistir e ponto. 
           Tem que haver o espaço para o cinema "cult", mas não com financiamento de dinheiro público. Que buscassem investimentos na iniciativa privada e que deem retorno, porque é muito provável que você que agora me lê não tenha assistido ao "Hotel Atlântico", último filme da Susana Amaral, mas deve ter assistido ao "Chico Xavier", ao "Nosso Lar"; senão esses algum enlatado americano ou o "Tropa de Elite". Todos  filmes que deram lucro e geraram financiamento para outros filmes. O povo foi onde o artista estava.
          Onde eu quero chegar com isso? Simples. Nós deveríamos assistir a filmes nacionais de graça. Isso mesmo, sem pagar nada. Porque já pagamos por eles em forma de impostos, também àquelas peças teatrais financiadas pelo governo federal a custo de 300 reais a entrada, também aos shows obscenamente caros.
          Dei o exemplo de filmes, mas com alguns discos é a mesma coisa, livros, espetáculos circenses. Sabiam que o Cirque de Soleil captou recursos públicos? Quanto é o  ingresso pra assistir a esse espetáculo? Quanto é a meia entrada? Quanto o governo deu pra eles? Quantas pessoas precisam assistir ao espetáculo para que ele dê lucro? Nenhuma pessoa. O espetáculo está pago. Eles poderiam fazer o show a céu aberto que não teriam prejuízo algum. 
          Isso explica um pouco, mas não tudo, é claro que arte não é apenas lucro. Mas se enganam quem pensa que tudo que é arte é cultura e que tudo em cultura é arte.
          Um escritor não é escritor quando escreve, mas quando publica e é lido; pra ser lido alguém tem que pagar pelo seu livro e este autor tem que estar preocupado sim com a recepção da sua obra. Não se moldar ao público, mas perceber se é ou não aceito. Um livro que ninguém leu não é um livro, é um objeto pra juntar poeira e alimentar o ego do autor. Filme, música, teatro, cinema, idem.
          Limitar o acesso ao direito da meia entrada é um crime. Num país que paga tão mal aos professores pagar meia entrada é uma ridícula, mas maravilhosa, compensação.
           Compensação que nem é dado, é algo que já foi pago no país com a maior taxa tributária do mundo civilizado. Quando vemos um filme no cinema produzido com financiamento público e pagamos pelo ingresso, somos enrabados duas vezes. Se pagamos meia entrada, compensamos, mesmo que de forma irrisória isso.
            Temos que nos unir para impedir que isso siga adiante. Há sim muita fraude, mas não começa pela carteirinha, começa pelo filme pirata na banca do camelô, pelo diretor que faz o filme só pra ele assistir, pelo deputado que é dono de cinema, pelo sacana que faz uma carteirinha falsa. Retirar direitos com uma caneta, é o que está por acontecer, e o pior é que a UNE, que deveria ser a defensora dos estudantes, não está nem um pouco interessada em defender estudante nessa hora. Serão eles os maiores beneficiários, imaginem quanto dinheiro eles não cooptarão pra fazer um plástico com uma foto!!!
          Dinheiro suficiente pra fazer um filme, acho que até já sei um bom nome: Enraba o brasileiro, ele nem reclama.
        

6 comentários:

  1. Muito bem colocado seus argumentos. Essa questão de pagar meia entrada acredito que não favorece ninguém. Nós pagamos meia do dobro do ingresso. Ou você acha que uma entrada de cinema deve custar R$18,00 ou R$20,00? Só o que eles vendem de pipoca e refrigerante já bancava o filme.
    Com relação aos filmes, existe um mercado de filmes Cult. Eles estão ganhando até pra fazer filmes pra que as pessoas não assistam. A captação de dinheiro público para obras artísticas já virou o samba do crioulo doido. Como você bem disse, os caras só falam do dinheiro, pouco importando a obra em si. Creio que deve haver um comprometimento dos produtores que captam dinheiro público em exibir o fruto do trabalho para a população e esta, possa analisar se o seu investimento valeu a pena.
    PS: Quem vai pagar R$7,50 pra ver teatro na praça Roosevelt é pra ver gente pelada mesmo viu. Não tem nada a ver com o preço e nem com qualidade artística. É puro fetiche.
    Abraços.

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  2. Obrigado pelo comentário.
    É verdade, pagamos o dobro, por isso também torna-se lícito a compra de DVDs piratas em camelôs. Deveriam abrir mais cinemas, incentivar a indústria cultural com recursos privados, incentivar o pequeno produtor de arte, facilitar a vida do grande produtor artístico e nunca NUNCA mexer em direitos conquistados.
    E o pior é que vamos perder a nossa meia entrada, não vejo ninguém se mobilizando.
    Acho que é porque agora tem muito mais gente fazendo em cursos universitários, quando era para poucos podia, agora que pobre paga meia, não pode. Sempre assim. O próximo passo é retirarem o direito de quem tem curso superior a aguardar o processo preso em cela especial.
    Nos enrabam. Assim simples.

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  3. O quye mais me deixa chateado com a captação de recursos é que justamente quem tem uma máquina na mão é que consegue financiamento. Os filmes que a Rede Globo lança nos cinemas por exemplo vem eivado de patrocínio do Governo. Será que tal instituição - A Rede Globo- não tem recursos suficientes para arcar seus projetos? Duvido. Isso deveria ser proibido.

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  4. O que é permitido e antiético deveria ser proibido, mas fica a questão do mérito...

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  5. A renúncia fiscal beira o absurdo, não se enganem com o nome de empresas privadas como co-produtoras de filmes.
    Faz parte do discurso dos captadores de recurso o montante que a empresa não pagará de impostos investindo no produto cultural, no caso o cinema, num filme que ninguém vai assistir. Mesmo algum filme que ninguém vê, sendo bom às vezes.
    Stanley Kubrick e Hithcock cansaram de investir dinheiro do próprio bolso pra fazer cinema. No Brasil isso não acontece. É dinheiro dos outros investido - no caso dinheiro público.

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