
No final do ano passado organizamos, um café filosófico na escola que trabalho com o tema: Música e funk. O texto que segue é uma tentativa de sintetizar um pouco do que foi aquele momento.
A música começou de forma primitiva. Um cara nas cavernas bateu uma madeira na outra e bateu de novo e de novo e anoiteceu. A fogueira acesa, as madeiras batendo, as pessoas se remexendo, alguém trouxe um tambor, outro começou a fazer sons incompreensíveis com a boca, algumas meninas em cima de uma árvore começaram a bater palmas.
Na manhã do dia seguinte só comentavam a noite do batuque, prometeram repetir a festa e repetiram, alguns trouxeram pedras, outros chifres de animais mortos, pessoas vinham de longe e aprendiam a batucar. Alguém serviu o que sobrou do javali morto do dia anterior, um rapaz trouxe uma bebida fermentada de restos de arroz, ficaram alimentados e bêbados.
Assim inventaram a música, a festa, a confraternização, o transe hipnótico que só o ritmo é capaz de trazer. (Grosso modo, bem grosso modo, foi assim que aconteceu).

Também grosso modo a nossa música, a escutada hoje, tem raízes europeias, africanas, indianas, árabes, vivemos num caldeirão de sons e ritmos.
Hoje é tudo muito diverso, as rádios não tocam mais músicas, as canções estão agonizando (há muito e muito tempo). A extensão MP3 nos permite acumular mais de 10.000 canções em um aparelhinho do tamanho de um dedo médio.

Talvez essa banalização é o que tenha retirado o caráter de celebração da música e explique um pouco do vazio presente nos argumentos das canções.
E é nisso que está o cerne da questão: o funk é vazio. E qual é o problema?
Quero falar de um ritmo que nasceu nos morros cariocas, som de negro, de favelado. Um ritmo que era escutado de forma marginal por gente de baixa renda, não era aceito pelas grandes gravadoras, símbolo de pouca qualidade musical, de pouco nível intelectual do apreciador.

As festas consideradas orgias, as dançarinas chamadas de prostitutas, os compositores detratados. Até que alguns brancos descobriram o que acontecia e começaram a apreciar o ritmo, primeiro alguns brancos ricos, depois espalharam a notícia, o ritmo foi escutado, apreciado e enfim aceito como baluarte da cultura nacional.
Estou falando de que ritmo? Sim, dele mesmo: o samba.

Não tenho o menor medo da comparação.
Com o funk de Tati Quebra barraco e Claudinho e Boxexa acontece o mesmo que aconteceu com o samba de Noel, Cartola e Martinho da Vila.
Há muita gente que deveria estar mais interessada em olhar o próprio nariz, ler um pouco de história (do Brasil, da América Latina, da arte, do mundo).
Música não é argumento, o nome disso é livro. Música é outra coisa.
E nem tudo é narrativa, se música de qualidade fosse música com boa letra Beethoven seria um nada, ele e os demais clássicos, assim como os mestres do Jazz.
Infelizmente o Brasil é um país de memória curta, uma nação que não está habituada aos livros, com uma porção de gente com opinião, pessoas que não sabem que opinião sem argumentos é boato.
Dizer que o funk é uma porcaria é semelhante ao que diziam do samba quando este começou.

O funk não conversa comigo, não é minha música, mas chamá-lo de barulho se equivale ao que os pais da geração beatnik diziam do rock.
Arnaldo Antunes tem uma canção maravilhosa que na letra diz que há "música para ouvir no trabalho, música para jogar baralho, música para arrastar corrente, música para subir serpente" e nesse mundo de banalização da canção há até "música para ouvir".

Qual é a música para ouvir?
Ouvidos preconceituosos que querem ouvir música para ouvir na hora de ouvir música para dançar. Querem música para tocar no estádio na hora da música para ninar nenê.
E no fim é só música.
Demorou muito para mim e meu heavy metal aprendermos que a minha mãe evangélica tem outra história de vida e não vai ouvir comigo o "The number of the beast" do Iron Maiden. O caminho é outro.
E que papo de velho esse de que "essa dança só ensina o que não presta". "Baile funk é lugar de sexo e drogas".
Infelizmente, esse papo de sexo e drogas é coisa de juventude.

Quem se incomoda com isso é porque não é mais jovem. Já foi Jazz, drogas e sexo. Rock, drogas e sexo. O ritmo da vez é o funk. E é sempre bom procurar informações idôneas. Há um exemplo bacana: o filme "Grease" tem um baile em que se dá uma mostra de como eram as danças em bailes dos anos 50 ao som de rock. A dança é a do funk.
Voltando um pouco seria o jazz. Voltando mais seria alguma outra dança mais antiga, até chegarmos naquele cara batucando as pedras, os tambores e as madeiras. Não é música para ouvir, é música para dançar.
Nunca entendi a música eletrônica, até que aceitei o convite e fui a uma rave. Tudo fez sentido. A música eletrônica é maravilhosa, na rave, num clube noturno, numa festa, dançando com muitas luzes pipocando. Nunca na sala da minha casa, no auto falante do meu aparelho de som.

Há ritmos muito menos perseguidos pela mídia e senso comum, mas que são verdadeiras latrinas musicais como o lixo do sertanejo universitário, o excremento daquele negócio chamado sambô e muita merda musical criada pela mídia com a função única de vender discos, shows, modas, carros, carroças. Não há personalidade alguma num cara que veste bota, fivela, chapéu e nunca montou num cavalo. Não tem o menor direito de ser chamado de sertanejo. De que sertão?
O Funk (assim mesmo em maiúsculo) é uma expressão legítima da população carioca, conquistou espaços, abriu caminhos e não precisa argumentar, mas argumenta: "é minha, é minha, a porra da buceta é minha" é o que grita a Tati Quebra Barraco.
A Rita Lee com seu rock/pop bem água com açúcar melodiava nos anos 70: "me vira de ponta cabeça, me faz de gato e sapato, me deixa de quatro no ato, me enche de amor, de amor e lança perfume".

Se uma filha da classe média paulista canta pra ser deixada de quatro e pedir lança perfume pode, porque uma filha dos morros não pode dizer que a buceta é dela e ela dá pra quem ela quiser?
Falta poesia? Falta educação? Falta noção? De quem? De quem canta ou de quem escuta?

E eu não estou esquecendo dos idiotas que ligam o som no último volume empurrando-nos ouvido adentro o funk deles de cada dia. O problema é que há mal educados ouvindo tudo que é tipo de música: sei todas as canções do Amado Batista graças ao vizinho que morava ao lado da minha casa em minha infância, e não só ele: forró, reggae, pagode, axé. Até eu ter o suficiente pra comprar o meu aparelho e destilar o vil metal nas orelhas da vizinhança. Não sei se incomodei, acredito que sim, mais provável que não.
E não se engane: uma coisa é música, outra é canção.

Canção envolve letra (voz) e melodia com instrumentos musicais.
Música é muito mais.
E não se engane de novo:
Há safadeza em letras de canções desde que elas foram inventadas. O Funk não inventou isso, se assim fosse, seria até um ponto a mais a ele. Pena não ser. Há letras sacanas na França, Estados Unidos, Inglaterra, Arábia Saudita, Irã, Austrália.

Afinal, até as abelhas, os pássaros e os insetos transam. E foi Ella Fitzgerald quem cantava canções assim.
Enfim, o Funk não é pra mim, nem ele, nem o sertanejo universitário, o pagode do sapato caramelo dos anos noventa, ou a perdida esfregando os ovários na boca da garrafa tentando ganhar a vida dançando no programa dominical da rede Globo. Nada disso é pra mim, não por eu ser melhor, mas simplesmente porque não conversam comigo, com minha história, minha personalidade, meu jeito de ser. No fim é só música, apenas isso.

Mas quando discriminamos, deixa de ser apenas e passa a ser outra coisa. Quando um cantor grita e assim conquista sua voz, a canção passa a ser muito mais. Não é meu jeito de gritar, mas não vou tampar os meus ouvidos.
Vou escutar Reggae, Rap, Rock, Jazz e quando der vontade, por que não? Funk. O do James Brown e do Tim Maia, afinal, ainda acredito que um pouco de classe seja preciso.