sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

Realismo/Naturalismo

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                Há um livro chamado “Dom Casmurro”, você já deve ter lido ou ouvido falar, que conta uma história de amor impossível. Bento Santiago é apaixonado desde a adolescência por Maria Capitolina, sua jovem vizinha de “olhos de cigana oblíqua e dissimulada” na fala de um dos personagens.
                Mas ainda falta algo a este enredo, na verdade alguma complicação, coisa que impeça o amor grandioso das duas criaturas que seriam, no ideário romântico, fadados a sofrer. E a complicação é que Bento tem que seguir as ordens de sua mãe que o prometeu a padre.
                Eis aí o clássico romântico: Bentinho ama Capitu, Capitu ama-o, mas não podem fazer para ficar juntos por conta de uma promessa materna. Bentinho tem de ser padre. E se repito ad nauseam é com o intuito de frisar bem que este é um problema repetido e repetitivo na história da literatura mundial. No Brasil mesmo há um livro chamado “O seminarista” de Bernardo Guimarães, o mesmo autor de “A escrava Isaura” que conta a história do amor impossível entre uma singela moça e um padre.
                Mas o que Machado de Assis fez de diferente nesta narrativa para ser considerado por muitos, e quando digo muitos, digo muitos mesmo; o que Machado de Assis fez de tão excepcional nesta obra para ser considerada um dos melhores livros da história da literatura?
                Respondo:
Em “Dom Casmurro” a história extrapola o final feliz. Uma narrativa romântica se inicia com o casal se apaixonando, segue com o impedimento amoroso e termina com casamento ou morte.
Machado não se satisfaz com isto e continua o enredo após o felizes para sempre nos brindando com a verdade nua e crua de um jovem inseguro, neurótico, ciumento, que chega a tentar o assassinato do próprio filho ainda criança, com a desculpa de que o filho pode não ser seu (tudo bem matar um menino desde que ele não seja seu filho, ok?).
Resultado de imagem para amarelo mangaTambém a presença quase viva de uma personagem feminina que domina o enredo na primeira e mais longa parte da obra, apontando caminhos, mostrando-se capaz de tudo para conseguir o grande amor de sua vida, mas que pode tê-lo traído após o casamento, na segunda parte da obra, e o pior, com o melhor amigo do marido, Escobar.
                (O livro não é apenas um simples caso de adultério, pra ser sincero existem camadas e camadas nesta obra que vale a pena ser revisitada ao longo da vida, mas como a proposta deste texto é voltada para o Ensino Médio e de explicação sobre o Realismo, deixo a oportunidade para a discussão sobre o “traiu ou não traiu” e outros tantos para um outro momento”)
                Enfim, o Realismo é muito mais que apenas realidade, uma das principais chaves para compreendê-lo é pensar em um casal separado lutando para ficar junto – romantismo, quando o casal está junto eis o movimento literário de Machado de Assis – a realidade batendo à porta.
E por que comecei esta explicação com “Dom Casmurro”? Porque neste livro fica explicita a desconstrução do caráter romântico do relacionamento amoroso.
Por exemplo, há um livro português de um escritor chamado Eça de Queiroz, “O primo Basílio”, nele Amélia já começa casada com Pedro e vai traí-lo com seu primo, o tal Basílio do título. Outro do mesmo autor “O crime do padre Amaro” conta que quando um padre quer ter um relacionamento amoroso nada o impedirá, nem igreja, nem sociedade, nem a promessa da mamãe e muito menos a própria consciência.
E na palavra consciência chegamos ao ponto central da proposta realista. Aqui o personagem é mais vivo, e é assim porque jura amor eterno à pessoa amada e não cumpre, assim como na vida real, e fica com um remorso de dois dias, talvez uma semana e aquele amor eterno passa, porque outro amor eterno aparece e assim por diante porque assim é a vida.
Resultado de imagem para filme estômagoO que o realismo faz é apresentar os conflitos humanos de nós todos, apontar que não somos rasos como o Robin Hood, nem tão poderosos como o Rei Arthur. Acreditamos e desacreditamos, amamos a pessoa e causamos muito mal a sua vida, à nossa própria.
O que temos a nossa frente são os maiores clássicos da literatura universal, escritores do mundo inteiro desvendando as profundezas da alma humana: Charles Dickens, Dostoievski, Tolstói, Eça de Queiroz, Flaubert, Machado de Assis e muitos outros.
Há um conto de Machado de Assis (mais um) chama-se “Noite de almirante”. Na história o marinheiro Deolindo e sua namorada Genoveva trocam juras de amor eterno antes do rapaz sair numa missão de seis meses no mar. Pois bem, ao voltar todos os seus companheiros de embarcação conhecem a história de seu amor, de suas juras, e o felicitam pela maravilhosa noite de almirante que terá com Genoveva. O óbvio da situação real é que após seis meses sem notícia do namorado Genoveva não apenas não o esperou como casou-se com outro homem. E o óbvio mais que óbvio é que Deolindo volta ao seu posto no navio e quando questionado por seus amigos sobre a noite de almirante, mente a todos envergonhado por ter sido trocado, pelas promessas descumpridas por ela e cumprida por ele, aprende que a realidade não é um livro romântico com personagens de valores éticos elevados que cumprem as promessas porque são, simplesmente, pessoas melhores, mas melhores por serem simples objeto de ficção, personagens rasos para utilizar uma classificação quase do senso comum.
O ser humano de verdade é capaz de alimentar as crianças carentes embaixo de um viaduto, doar milhões à caridade e esbofetear a esposa ao chegar em casa.
Resultado de imagem para filme estômagoOs livros realistas apontam um lado obscuro da mente humana. Em “Dom casmurro” Bentinho expulsa a esposa de casa porque ela o traiu, mas não tem nenhuma evidência, apenas o olhar da moça para o finado amante no caixão e o filho que imita a todos, mas imita muito melhor a Escobar, o eventual pai. O mesmo Bentinho pelo qual torcemos pela felicidade eterna na primeira parte da obra senta seu filho no colo nas páginas finais forçando-o a tomar veneno, ato falho disse “seu” filho. Será que era mesmo seu? Será que Maria Capitolina traiu seu marido com seu melhor amigo?
Fato curioso, na vida real nem sempre temos todas as respostas, assim como nos livros realistas, não raros somos enganados por pessoas boas, e pessoas ruins fazem gestos nobres e ações horrorosas são praticadas por aqueles que temos na mais alta consideração. Nascemos no meio da vida dos nossos pais e, se tudo ocorrer bem, partiremos no meio da vida dos nossos netos, quem sabe bisnetos. Mas a verdade é uma apenas: nem todas as pessoas nos veem com os mesmos olhos. Somos eternos meninos fofinhos para a nossa mãe, mas o moleque endemoninhado que quebrou a vidraça do vizinho, não foi por mal ele apenas estava brincando, deixa ele ser criança, todos conhecem histórias assim. No trabalho para alguns o exemplo de seriedade que se transforma, na visão de outros tantos, o maior puxa sacos baba ovo de todos os tempos. Lutar pelo sonho de ser ator sendo exemplo para muitos, ou de vadiagem na visão pessimista (realista?) de seu pai.
O Realismo se assemelha a um jogo de futebol enquanto o Romantismo a um de basquete. No futebol nada grandioso acontece, às vezes empatam, um feio zero a zero sem nenhuma emoção. No basquete o jogador é obrigado a lançar a bola a cada ataque e no tempo devido, não existe empate, não existe zero a zero.  A vida não é um jogo de basquete.
O exagero dos românticos abriu margem à busca por uma visão mais real do indivíduo, aquela que assegure a percepção de que não somos movidos apenas por impulsos externos e paixões frívolas; não somos tão éticos como gostaríamos de ser.
Em “Hamlet” de Shakespeare há a famosa frase “ser ou não ser, eis a questão”, minha interpretação favorita para esta frase é a de que podemos agir ou não agir, fazer algo ou não fazer. Podemos viver ou optar pela passividade, a ociosidade. O caso é que o personagem do realismo é muito humano justamente por optar pelo não ser, opta por não matar, por não fazer, não se vingar, então o que resta aos escritores é a descrição de seus pensamentos, o que deu origem ao que no futuro foi chamado de “fluxo de consciência” – assunto para outro momento.
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Não apenas o contraponto ao Romantismo serviu de pretexto para o Realismo, seria muito pouco, também o desenvolvimento científico, conhecimentos não aceitos até hoje como verdadeiros, mesmo com todas as comprovações necessárias dadas pela ciência, como a teoria da evolução das espécies desenvolvida por Charles Darwin em seu maravilhoso livro “A origem das espécies”.
Você vai precisar de algumas aulas com seu professor de biologia para se aprofundar um pouquinho nesse assunto, mas grosso modo posso dizer que todas as espécies se desenvolveram a partir de seres mais simples e foram, ao longo de milhões de anos, repito: ao longo de milhões de anos, se modificando, adaptando-se ao ambiente, buscando sobrevivência. Ou seja, tanto um camaleão mudando de cor, ou uma girafa com seu longo pescoço, não são assim desde a criação por pura vontade divina, mas foram se adaptando ao meio e como tinham vantagens frente aos demais indivíduos, chegaram até o período atual. E isso coloca o homem em meio a esta estrutura gigantesca de adaptações, classificando-nos como pertencentes à família dos primatas, o que vale dizer que nos adaptamos ao mundo de forma adversa de nossos parentes chipanzés, orangotangos, micos leões dourados e afins.
Muito para um simples cidadão do século XIX digerir, na verdade muita gente não engole isso até hoje, rebatendo Darwin com os mais não científicos dos absurdos, como: se eu vim do macaco como é que uma mulher nunca deu à luz a um chimpanzé?
Escrevi acima que você precisa de aulas de biologia para se aprofundar no tema, portanto foco este ensaio no Realismo e não em Darwin, mas digo uma das frases que mais escuto quando se trata deste assunto porque dá para sentir como o debate sobre evolucionismo é raso no Brasil. Também escrevi, linhas acima, que as adaptações levaram milhões de anos, portanto não é possível ver o caminho percorrido senão por indícios e muita pesquisa, muita pesquisa mesmo.
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Entro neste assunto porque houve os que nunca aceitaram as descobertas de Darwin como verdadeiras e os que a leram muito mal. Daí o surgimento de uma pseudociência totalmente escrota conhecida como eugenia, que propunha a limpeza das raças buscando purificar e melhorar o ser humano. Décadas depois Adolf Hitler fez o que fez, mas décadas antes de Hitler outros fizeram tanto e conseguiram na leitura mal lida de Darwin um pretexto para sua imbecilidade.
Isto e outras tantas correntes de pensamento como o determinismo que pressupõe que todos os seres nasceram determinados, mesmo que fosse jogado num ambiente de miséria uma criança rica se sobressairia por ser determinada a tal, caso não prosperasse o problema não era de ninguém. Justificam-se as misérias do mundo. 
O determinismo foi inteligentemente criticado por Machado de Assis em duas de suas obras primas: “Memórias póstumas de Brás Cubas” e “Quincas Borba”. O determinismo e o positivismo. Esta última uma corrente de pensamento que consiste em ver um lado positivo em tudo, mesmo nas piores tragédias da humanidade, parafraseando um dos personagens: “a única tragédia seria não ter nascido”.
Assim o pensamento positivista crê que é necessário que pessoas passem fome para que outras possam se alimentar, “ao vencedor as batatas”. Aliás, cabe lembrar que o positivismo ficou tão popular entre os aristocratas brasileiros que seu maior lema foi parar na bandeira nacional. Isso mesmo, o “Ordem e progresso” quer dizer: que cada um fique no seu lugar para que tudo progrida (progredir seria sinônimo de evoluir?).
Pois bem: Darwinismo, muita ciência, evolucionismo no meio, eugenia, determinismo, positivismo; deu-se o caldo de cultura para o ser humano não ser tido como a maior das maravilhas. Daí o Realismo, também se formos um pouco mais a fundo e pensarmos o homem apenas como mais um dos habitantes deste ecossistema, cá estamos nós meros animais em meio a outros bichos.
E foi por esse caminho que os escritores realistas se afundaram até desenvolverem um realismo tão pesado, tão violento, tão realista (sic) que deixou de ser conhecido como realismo. Tratamos esta vertente com o nome de Naturalismo.

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                Antes de seguir pensando o Naturalismo temos que lembrar que naturalista e cientista são sinônimos para os habitantes do século XIX. Logo, quando dizemos que certo escritor é naturalista temos que ter em mente que ele se via como um cientista e como todo cientista tem que se propor a fazer experimentos e comprovar teses.
                As teses que os escritores naturalistas querem provar têm a ver com a percepção em voga na época de que o homem não é um ser isolado na criação, superior a todos os demais animais, mas somos eu, você, seus pais, seus professores e o Papa apenas organismos lutando pela sobrevivência.
                O homem é um animal coletivo, influenciado pelo meio, movido por impulsos (sexuais principalmente) e sem nenhum caráter elevado, permanecendo em si o simples desejo de elevar-se na sociedade; assim como você já deve ter visto naqueles documentários sobre chimpanzés ou leões marinhos lutando pelo privilégio em ser o macho alfa.
                Os livros naturalistas tratam seus personagens não para dentro, analisando seu psicológico, mas muito mais preocupados em suas relações sociais, porque entende o indivíduo enquanto fruto do meio, portanto aparecem livros como “A germinal” do Francês Émile Zola tratando da história dos mineradores de carvão e suas agruras tais quais doenças ocupacionais, miséria, velhice, riscos do próprio ofício, exploração do trabalho por outros homens assim como numa colmeia ou num formigueiro.
                E por falar em colmeia, o principal livro do Naturalismo brasileiro “O cortiço” de Aluízio Azevedo trata do tema da vida em coletividade tendo como foco principal o próprio cortiço, sinônimo de colmeia.
O escritor cientista/naturalista Aluízio Azevedo elabora sua narrativa contrapondo dois ambientes distintos: um cortiço e um sobrado. E à medida que o cortiço se desenvolve e cresce, vai ficando cada vez mais parecido com o sobrado. Os moradores de ambos antes tão distantes ao fim se assemelham, os donos de ambos os locais que não se suportavam começam a ter laços familiares, os ambientes se misturam e passam a ter um mesmo pensamento.
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Mas não foi sem nenhum esforço que tal acontece. Para obter o sucesso o dono do cortiço, João Romão, faz de todas as artimanhas legais e ilegais, o que acaba por ser um maravilhoso retrato do caráter do brasileiro (pra ninguém dizer que a corrupção é coisa de agora nem apenas de pessoas ricas). Rouba, trapaceia, engana, conspira casamento com a filha de seu vizinho o que leva ao suicídio de Bertoleza, sua esposa por merecimento, mas não por direito já que a mesma é negra num período de escravidão e escrava já que João Romão falsificara uma carta de alforria e a entregou a seus antigos donos após ter o casamento com a filha do vizinho resolvido.
Mas o livro tem de tudo o que é de maldade e perversão um pouco: prostituição, alcoolismo, pedofilia, traição, sexo, muito sexo, guerra de gangues (tal qual a do tráfico de hoje, não se esqueça que o filme se passa no Rio de Janeiro), papagaios gritando como seres humanos pedindo socorro em meio a um incêndio, seres humanos urrando como animais atropelando-se para fugir do mesmo perigo, assassinato, suicídios (sim, há mais de um na obra) e aquele papo de que o ser humano é influenciado pelo meio, justiçamentos, muito determinismo, darwinismo social, e por aí vai.
Há outros livros do autor que seguem a mesma linha, “O mulato” e “Casa de pensão” são os mais recorrentes nas aulas de literatura, mas um não tão citado  “O livro de uma sogra”, muito mais contido, mas com vários elementos de genialidade, próprios de Azevedo..
O naturalismo é uma corrente muito popular nas artes, você pode encontrá-lo em filmes, quadros, peças de teatro.
O filme “Cidade de Deus” de Fernando Meireles e o “Tropa de Elite” de José Padilha são excelentes exemplos de como o naturalismo continua rendendo bons frutos narrativos. A literatura da década de 1930 faz uso das técnicas naturalistas comparando homens a animais, zoomorfizando pessoas e antropomorfizando bichos, vide a cachorra baleia de “Vidas secas” de Graciliano Ramos; ou os filhos do Chico Bento em “O quinze” de Rachel de Queirós.
Resultado de imagem para ninfomaníacaLer um livro deste período, tanto naturalista como realista, é para muitos um desafio como seria para os contemporâneos de Machado de Assis ler a “Odisseia” de Homero: muita descrição, detalhes que passariam despercebidos aos olhos de um leitor pós-moderno, contato com um mundo sem internet, sem automóvel, sem telefone, sem shopping centers, sem aviões, sem antibióticos e tudo o que traz a velocidade à nossa vida.
 Mas assim como está entre os clássicos gregos muito do conhecimento humano e uma maravilhosa forma de nos conhecermos enquanto pessoas, indivíduos individuais e coletivos, também está entre estes clássicos não tão antigos, perspectivas de críticas ao ser humano e a busca por caminhos que podemos e temos de percorrer se quisermos dar um salto de qualidade nas relações humanas.
Nada tão frustrante quanto ler “O cortiço” e perceber que as favelas ainda existem tais quais as do livro, pasmem, com os mesmos incêndios, as mesmas lutas de quadrilhas armadas. Ler “A germinal” e ver que o ser humano continua escravizando outros seres humanos, tanto em confecções do Bom Retiro em São Paulo, quanto em pequenas províncias chinesas.
Sem contar tantos outros temas centrais para a agenda de um novo mundo que precisa aprender muito com os experimentos científicos realizados nas mentes desses escritores que souberam enxergar muito mais do que apenas verdades na sua realidade imediata. Talvez tenham enxergado dentro da verdadeira alma humana.


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