Conheci
o Ensino Público na década de 1980 (sim, já estou bem velho) e naquela década
havia por meio do estado um debate a respeito de proteção à criança através de
uma nova lei que seria aprovada para proteger meninos e meninas de maus tratos praticados
nas escolas, ambientes públicos e até pelos próprios pais. O Estatuto da
Criança e do Adolescente retirava dos professores, por exemplo, o direito de
dar uma palmada no aluno caso o mesmo incorresse em desinteresse, birra ou
agressão ao coleguinha. Era o fim da palmatória, ainda praticada em alguns
muitos colégios, públicos e privados.
Conheci
o Ensino Público numa época em que as escolas da periferia (sim, estudei em
colégio público de periferia), numa época em que as escolas de periferia
funcionavam em quatro períodos, cada aula durava quarenta e cinco minutos,
cinco delas por dia e não raro faltavam professores para lecionar tais
disciplinas. Funcionando em quatro períodos uma das pessoas mais importantes da
escola era a senhora do portão, era ela quem passava o dia inteiro atendendo aos
sinais, abrindo e fechando, mandando entrar ou deixando sair.
Conheci
o Ensino Público no fim dos governos militares (sim, eu sou do período
militar). As escolas nesta época ainda não entendiam muito a sua função. Eu
tive na sexta série B a disciplina de Educação Moral e Cívica, teria tido OSPB
na sétima, mas foi retirada para a inclusão de um conteúdo chamado Desenho
Geométrico, que nunca entendi direito pra que servia e tenho absoluta certeza
que nem a professora.
Conheci
o Ensino Público numa escola com aulas da Primeira Série do Primário ao
Terceiro Ano Colegial. (Sim, estudei a minha educação básica integralmente numa
mesma escola). A Lei de Diretrizes e Base da Educação (Lei 9394/96) foi
promulgado no fim da minha jornada escolar. Não tive tempo de receber suas
benesses como ter o ensino dividido em períodos conhecidos como Ensino
Fundamental, Médio e Superior, progressão continuada, escolas divididas para
alunos dos ciclos iniciais.
Quando comecei minha
alfabetização, os alunos do nono ano do hoje chamado Fundamental II tiveram de
fazer uma espécie de Vestibulinho para serem admitidos no primeiro ano do
Colegial da escola que já frequentavam. Não havia garantia nenhuma de vagas
para todos os que terminavam o ciclo anterior. Nenhum deles.
Felizes os que estavam nas
escolas quando as havia. Tive, na medida do possível, por ser morador do lugar
que morei, uma relativa sorte por ter concluído os estudos básicos sem nenhum
entrevero maior. Salvo a escandalosa falta de qualidade de ensino.
Conheci
o Ensino Público com os professores preparados para ensinar de forma militar e
repetitiva, livros didáticos que incentivavam o acúmulo de conteúdos sem a
preocupação em criar significado em nada, com a desculpa de que aquilo serviria
para o futuro. O futuro, o futuro...
Lembro que olhava para a
vizinhança e não via muito sentido em estudar as primeiras civilizações se
formando às margens dos Rios Tigre e Eufrates, que recebeu o nome de
Mesopotâmia “que significa terra entre rios”. A professora falava que as
pessoas da antiguidade escolhiam as proximidades de rios para construírem suas
casas.
Eu morava ao lado de um rio, um
córrego que transbordava toda vez que chovia e eu que tinha minha casa alagada
constantemente precisava estudar os efeitos da cheia do Rio Nilo para o
progresso da Civilização Egípcia.
Não conseguia atinar sentido em
nada que via na escola, mesmo sendo considerado por todos um bom aluno, nunca
fiz nada além de replicar os conhecimentos enciclopédicos propostos.
Achava o colégio uma perda de
tempo e na época culpava os professores, hoje sei que a questão é muito mais
complexa.
Conheci
o Ensino Público vendo meu colega que estudou comigo todo o Primário ir fazer o
Colegial em escola particular porque seu pai podia dar uma educação de melhor
qualidade para ele (sim, tive muita inveja do colega que foi para uma escola
melhor porque o pai podia pagar). Acho que, podendo voltar no tempo,
recriminaria meu eu criança dizendo que a escola é muito importante e que mais
importante que o local onde se estuda é
a disciplina para se organizar, se preparar, se concentrar, tendo metas e
objetivos concretos. Não sei por onde anda o coleguinha que mudou de escola,
mas se tivesse um filho também pagaria colégio particular.
Estudei
em faculdades públicas e privadas. Me especializei de diversas formas, mas o
momento da vida que mais aprendi foi no hiato que tive entre o término da minha
Educação Básica e o início do Ensino Superior. Foram quatro anos de frequência
absoluta à biblioteca: duas, três, quatro vezes na semana. Lia de forma
alucinada como um alucinado. Dormia com livros, comia com livros, andava com
livros, sonhava com livros.
Desta forma conversei com vários
mortos: Machado, Tolstói, Lispector, Sérgio Porto, Nelson Rodrigues. Alguns
vivos à época: Garcia Marques, Jorge Amado, Ferreira Gullar, Phillip Roth, Décio Pignatari. Outros ainda
vivos, ao menos enquanto rabisco este artigo: Adélia Prado, Rubem Fonseca, Luís
Fernando Veríssimo. Tive os melhores professores nas páginas dos livros que
frequentei enquanto caminhava nos corredores da singela e simples biblioteca
pública Monteiro Lobato no centro de Guarulhos.
Minha mãe tem um orgulho cruel de
mim, diz que sou inteligente e que isso é uma benção. Eu sei das minhas
limitações e que, se aprendi algo, devo a horas e horas de leitura aficionada.
(Não sei jogar vídeo games, não consigo calcular equações muito complexas, nunca aprendi a tocar nenhum instrumento musical, nem
assobiar, não tenho a menor habilidade esportiva ou coordenação motora, apenas
sei o que os livros que escolhia podiam ensinar).
Na escola sempre fui “zoado”
pelos “colegas” e nunca fui reclamar com a professora ou direção. Não por ter
resiliência, simplesmente por não saber que assim podia proceder e das vezes
que reclamei que era agredido física e moralmente fui chamado de fraco e
mariquinha até por professores, inclusive quando cortaram meu cabelo com uma
tesoura afiada ou me ameaçaram de morte por ser homossexual, sendo que não sou
homossexual. Mas assim eram tratados os meninos de óculos aficionados por
leitura.
Pois
bem, se me ative tanto ao relato da minha experiência escolar é por conta do
debate exposto no título deste texto sobre a doutrinação nas escolas e se é
necessário combatê-la por meio de um projeto chamado Escola Sem Partido.
Neste
projeto, muito mal explicado, diga-se de passagem, seria afixado na parede de
cada escola um cartaz com as obrigações dos professores em sala de aula. O
objetivo seria evitar a doutrinação esquerdista e consequente partidarização
política dos alunos. Os educandos seriam chamados a denunciar se o professor
passasse do ponto nas explicações que envolvem gênero, sexo, posicionamento
político e um etc difícil de entender.
Fui sim
levado a acreditar que o pensamento de esquerda era o adequado para um menino
pobre e futuro proletário em empresas que me expropriariam do fruto do meu
trabalho, a mais-valia. Porém esta doutrinação não estava apenas nos livros,
mas nas novelas da Rede globo apontando os empresários como vilões, nos filmes do
cinema novo apontados como clássicos nas revistas semanais como Veja e Isto é,
nas listas da FUVEST com livros de escritores com viés socialista como
Graciliano Ramos e Jorge Amado (nunca Rachel de Queirós ou Nelson Rodrigues), na insistência da
minha própria leitura de uma coleção chamada “Primeiros Passos” com o ponto de
vista de certos assuntos dados por professores, escritores, estudiosos,
especialistas de esquerda, dando o pontapé inicial para cada assunto como nos
livros que lia e relia: o que é comunismo, o que é ideologia, o que é cinema, o
que é anarquismo, o que é mais-valia, o que é retórica, etc, etc, etc...
A
questão de haver uma corrente dominante de pensamento no Brasil passa um pouco
por Gramsci, assim como apontam os que atacam a dita doutrinação nas escolas,
mas passa muito mais pelo descaso na educação que foi e é corrente no Brasil
desde antes de seu nascimento como país independente.
O que
quero dizer com toda essa conversa?
Quero
dizer que tive muita sorte de ter uma escola péssima para me formar e conseguir
me alfabetizando minimamente entrar num curso superior mais ou menos e a partir
disto pensar em traçar uma carreira docente, talvez escritor, e assim por
diante.
Essa escola péssima que tive foi
o melhor que uma criança pobre poderia ter à época. Se eu tivesse nascido dez
anos antes provavelmente nem alfabetizado seria, talvez quatro anos de escola,
o que era a média.
Tivesse
eu nascido trinta anos antes teria passado longe dos bancos escolares,
cinquenta anos antes não saberia o que era um professor, mais trinta anos antes
disso teria morrido de verminose no interior do mato de uma cidadezinha
qualquer do Espírito Santo.
No
Brasil Colônia não apenas a educação era difícil mas proibida por decreto real.
Jornais e livros vetados também. Este território que convencionou-se chamar
Brasil era uma empresa a serviço do Império Português e qualquer coisa que não
levasse ao enriquecimento imediato da coroa e sua corte era desmotivada.
Os
primeiros livros chegaram oficialmente aqui com a Biblioteca Real de Portugal
transplantada para o Brasil durante a fuga da família real trazendo D. João, o
único a enganar Napoleão, segundo o próprio. Este momento representou muito
mais que apenas o início do processo de independência do Brasil, mas também o
começo da construção de um conceito de identidade nacional: um país
conservador, católico, rural, aristocrático, sebastianista, atrasado, obtuso e
muitos outros adjetivos do gênero. Vou deixar umas lacunas para que o leitor
complete como desejar, e descordando possa se expressar _____________________,
_________________________, ___________________________,
_________________________, _________________________.
O que
estou querendo dizer com todas essas voltas é que não é esta a discussão que
deveríamos estar travando. Há coisas mais urgentes no horizonte próximo que
discutir na educação a doutrinação ideológica nas escolas.
Lembro
do Euclides da Cunha denunciando que havia no sertão brasileiro uma população
enorme que vivia à margem do processo civilizatório. Eram favelados em Canudos,
mortos de fome, tuberculose, verminose, moribundos com sede, lepra, morte; e em vez de civilização levaram bombas, canhões, tiros, soldados e mais morte.
Há toda
uma população nas escolas públicas brasileiras sofrendo de escassez de tudo o
que pode faltar num colégio: corpo docente, corpo gestor, mobiliário, segurança
pública, saneamento básico, água limpa, livros, cadernos, canetas, lápis, teto
(algumas escolas funcionam ao ar livre, em paredes de latão, em meio a favelas tomadas pelo tráfico, e os problemas não se resumem num
parágrafo).
Por que
é tão gritante que num universo como este os alunos comecem a questionar o
capitalismo, que para eles sim está sendo selvagem e se alinhem ao pensamento
de pensadores esquerdistas? Nada mais óbvio do que os que não tem nada querer
dividir o que percebem como seu por direito. Mesmo sendo uma ideia errada e
fruto de estruturas mentais preconcebidas.
O Estado Brasileiro foi criminoso
ao longo de séculos. Proibiu as escolas, depois as ofereceu aos filhos das
classes mais altas e quando a universalizou proporcionou aos estudantes as
disciplinas que não careciam de muito investimento, as humanas. Isso mesmo.
É muito caro um curso com foco em
química, biologia, física, matemática. Laboratórios custam os olhos da cara. Construíram-nos
próximos aos grandes centros, longe das periferias, perto das famílias de mais
posses. Para as escolas do Capão Redondo filosofia, sociologia, geografia,
história, língua portuguesa para os poucos que conseguiam frequentar.
Não faço aqui julgamento de valor
em relação a um conteúdo em detrimento a outro. Falo de gastos e é
óbvio que um livro de filosofia é um investimento mais barato que um kit de
química. O Ensino Médio tradicional é quase um curso de humanas, o professor
destas disciplinas, em geral são combativos, politizados. Está na raiz de
sua formação docente, retirar isso deles é como proibi-los de ensinar. E
utilizando sua liberdade de cátedra, posicionam os alunos da forma que
acreditam ser a certa. Afinal, é Paulo Freire mesmo quem diz em seu Pedagogia
da Autonomia que o professor deve sim se posicionar e levar o aluno a ver o
erro que incorre em apoiar certos políticos.
E sei sim que tudo isso é muito e
muito discutível. Mas o que quero dizer mesmo é que antes de pensar em
doutrinação nas escolas é preciso oferecer às crianças do Brasil uma educação
de qualidade, é preciso reformar e modernizar prédios, investir em aparelhos de
ar condicionado (impossível se concentrar para estudar no calor de certos
locais do Brasil), investir em equipamentos específicos para cada disciplina,
dar autonomia para os gestores administrarem os recursos das escolas e vigiar
sua adequada aplicação, reformar sistematicamente os livros didáticos, é
necessário investimento maciço nos primeiros anos do Ensino Fundamental (na alfabetização, sim na alfabetização, inclusive na alfabetização matemática fundamentando os professores com projetos de capacitação e aprimoramento), (vou
ser polêmico) privatização urgente das universidades públicas brasileiras,
valorização da profissão docente com plano de carreira claro, aumento
expressivo de salários e bonificações tornando assim a carreira de professor
atrativa para as melhores cabeças. Isso e muito mais. Combate ao tráfico de
drogas nas portas das escolas, fortalecimento de cursos técnicos e fim desta
balela de escola de período integral. Manter os alunos nas escolas o dia
inteiro não funciona. Vou repetir: manter os alunos nas escolas o dia inteiro
não funciona (alguém digita Pier Luigi no Youtube pra saber do que eu estou
falando – se o fulano fica o dia todo tendo aula, quando é que ele vai parar pra estudar???)
Depois de resolvermos tudo isso e
muito mais, talvez, e apenas talvez, possamos começar a questionar se o professor
X ou Y leva o aluno a pensar de forma A ou B e sim, isto tem consequências nefastas sim.
Gritar que o professor só ensina
Marx e isto é errado é coisa de gente que vive em bolha e não entende nada do
Brasil real. Neste país real os alunos terminam o Ensino Médio sem decorar a
tabuada do três, ignoram o conceito de fração, não sabem quem foi D. Pedro I,
não leem um texto básico, não escrevem um simples bilhete com coerência, não
compreendem um comando vindo de um período composto por subordinação, não
desenham um ó sentando na areia, não entendem por que sua escola é tão pobre em
relação ao do morador dos bairros ricos, não veem perspectiva e não sabem o
significado da palavra perspectiva.
Não entendem o conceito de ironia.
Não sabem o que é Constituição Federal. Não sabem aprender a aprender e o poder do autodidatismo. Não se
tornam o que poderiam ser. Nunca serão seres autônomos e livres prontos para a
cidadania e o mercado de trabalho como rege a LDB.
No Brasil o professor é mais uma
vítima de todo esse processo vil, não adianta querer transformá-lo no vilão
enquanto grupos econômicos disfarçados de universidades e sistemas de ensino
jogam na bolsa o destino de mais uma geração deformando o conceito de ensino universitário.
Eu aqui parabenizando os
professores pelo que conseguem extrair de bom dos alunos apesar de terem tudo
contra si e vem você preocupado com doutrinação ideológica?
Faça-me o favor.
É uma alegria e tanto poder ainda mergulhar num texto tão sóbrio e equilibrado sobre um assunto já tão batido e marcado por discursos incoerentes motivados por inclinações político-partidários.
ResponderExcluirAqui o Mauro vai além, muito além do pragmatismo que temas dessa ordem costumam trazer, ao nos permitir passear pelos caminhos de sua própria alfabetização, ao nos conduzir a visitar as memórias da nossa própria trajetória escolar e ao sugerir refletirmos um pouco mais sobre a história da educação no Brasil.
É importante que textos como este consigam atravessar os muros das escolas para poder alcançar o interesse daqueles que acreditam não fazerem parte “desse mundo”, o mundo da educação. É fundamental que textos como este sejam capazes de descentralizar o assunto, deslocá-lo das páginas de livros específicos e dos vocabulários carregados dos educadores para ser lançado aos “outros mundos”, o mundo da prática, de forma fácil, compreensível e, se possível, agradável. É isso (e mais um pouco) que o presente texto oferece.
Mauro foi muito feliz em sua proposta.
É preciso cuidado ao lidar com o interesse dos desinteressados. Aqueles que em momentos de euforia intelectual resolvem saber de tudo e ter opinião formada em dois ou três minutos (e não desformam nunca mais). Os pais de alunos que apenas precisam fazer para o filho dar certo, ganhar dinheiro, chegar lá. Não importa o que pensar. Tem que chegar lá!
Direta e Esquerda ou qualquer “Isto ou aquilo”, se tornam combustível inflamável para todas as emoções. O texto é inteligente, sabe com quem está lidando. Pisa com calma e tempera, às vezes, a premissa de uma polêmica (como quando fala em privatizações de universidades públicas), porém passa longe da típica agressividade para assunto desse tipo. Mauro, não sabe ser agressivo. É perspicaz de mais para isso. Discorre pelas beiras, se fazendo compreender em cada frase, cada intenção.
Poderia aqui falar muito mais sobre os prazeres possíveis numa leitura como essa, mas me detenho agora para não alongar ainda mais!
Espero mesmo que outras pessoas que, como eu, não fazem parte diretamente do núcleo da educação, possam ler e refletir com tudo o que aqui foi proposto. E assim expandir a discussão e os interesses provindos dela.