quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

Doutrinação ideológica, escola sem partido e Educação Moral e Cívica


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                Conheci o Ensino Público na década de 1980 (sim, já estou bem velho) e naquela década havia por meio do estado um debate a respeito de proteção à criança através de uma nova lei que seria aprovada para proteger meninos e meninas de maus tratos praticados nas escolas, ambientes públicos e até pelos próprios pais. O Estatuto da Criança e do Adolescente retirava dos professores, por exemplo, o direito de dar uma palmada no aluno caso o mesmo incorresse em desinteresse, birra ou agressão ao coleguinha. Era o fim da palmatória, ainda praticada em alguns muitos colégios, públicos e privados.
                Conheci o Ensino Público numa época em que as escolas da periferia (sim, estudei em colégio público de periferia), numa época em que as escolas de periferia funcionavam em quatro períodos, cada aula durava quarenta e cinco minutos, cinco delas por dia e não raro faltavam professores para lecionar tais disciplinas. Funcionando em quatro períodos uma das pessoas mais importantes da escola era a senhora do portão, era ela quem passava o dia inteiro atendendo aos sinais, abrindo e fechando, mandando entrar ou deixando sair.
                Conheci o Ensino Público no fim dos governos militares (sim, eu sou do período militar). As escolas nesta época ainda não entendiam muito a sua função. Eu tive na sexta série B a disciplina de Educação Moral e Cívica, teria tido OSPB na sétima, mas foi retirada para a inclusão de um conteúdo chamado Desenho Geométrico, que nunca entendi direito pra que servia e tenho absoluta certeza que nem a professora.
                Conheci o Ensino Público numa escola com aulas da Primeira Série do Primário ao Terceiro Ano Colegial. (Sim, estudei a minha educação básica integralmente numa mesma escola). A Lei de Diretrizes e Base da Educação (Lei 9394/96) foi promulgado no fim da minha jornada escolar. Não tive tempo de receber suas benesses como ter o ensino dividido em períodos conhecidos como Ensino Fundamental, Médio e Superior, progressão continuada, escolas divididas para alunos dos ciclos iniciais.
Quando comecei minha alfabetização, os alunos do nono ano do hoje chamado Fundamental II tiveram de fazer uma espécie de Vestibulinho para serem admitidos no primeiro ano do Colegial da escola que já frequentavam. Não havia garantia nenhuma de vagas para todos os que terminavam o ciclo anterior. Nenhum deles.
Felizes os que estavam nas escolas quando as havia. Tive, na medida do possível, por ser morador do lugar que morei, uma relativa sorte por ter concluído os estudos básicos sem nenhum entrevero maior. Salvo a escandalosa falta de qualidade de ensino.
                Conheci o Ensino Público com os professores preparados para ensinar de forma militar e repetitiva, livros didáticos que incentivavam o acúmulo de conteúdos sem a preocupação em criar significado em nada, com a desculpa de que aquilo serviria para o futuro. O futuro, o futuro...
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Lembro que olhava para a vizinhança e não via muito sentido em estudar as primeiras civilizações se formando às margens dos Rios Tigre e Eufrates, que recebeu o nome de Mesopotâmia “que significa terra entre rios”. A professora falava que as pessoas da antiguidade escolhiam as proximidades de rios para construírem suas casas.
Eu morava ao lado de um rio, um córrego que transbordava toda vez que chovia e eu que tinha minha casa alagada constantemente precisava estudar os efeitos da cheia do Rio Nilo para o progresso da Civilização Egípcia.
Não conseguia atinar sentido em nada que via na escola, mesmo sendo considerado por todos um bom aluno, nunca fiz nada além de replicar os conhecimentos enciclopédicos propostos.
Achava o colégio uma perda de tempo e na época culpava os professores, hoje sei que a questão é muito mais complexa.
                Conheci o Ensino Público vendo meu colega que estudou comigo todo o Primário ir fazer o Colegial em escola particular porque seu pai podia dar uma educação de melhor qualidade para ele (sim, tive muita inveja do colega que foi para uma escola melhor porque o pai podia pagar). Acho que, podendo voltar no tempo, recriminaria meu eu criança dizendo que a escola é muito importante e que mais importante que o local onde se estuda  é a disciplina para se organizar, se preparar, se concentrar, tendo metas e objetivos concretos. Não sei por onde anda o coleguinha que mudou de escola, mas se tivesse um filho também pagaria colégio particular.
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                Estudei em faculdades públicas e privadas. Me especializei de diversas formas, mas o momento da vida que mais aprendi foi no hiato que tive entre o término da minha Educação Básica e o início do Ensino Superior. Foram quatro anos de frequência absoluta à biblioteca: duas, três, quatro vezes na semana. Lia de forma alucinada como um alucinado. Dormia com livros, comia com livros, andava com livros, sonhava com livros.
Desta forma conversei com vários mortos: Machado, Tolstói, Lispector, Sérgio Porto, Nelson Rodrigues. Alguns vivos à época: Garcia Marques, Jorge Amado, Ferreira Gullar, Phillip Roth, Décio Pignatari. Outros ainda vivos, ao menos enquanto rabisco este artigo: Adélia Prado, Rubem Fonseca, Luís Fernando Veríssimo. Tive os melhores professores nas páginas dos livros que frequentei enquanto caminhava nos corredores da singela e simples biblioteca pública Monteiro Lobato no centro de Guarulhos.
Minha mãe tem um orgulho cruel de mim, diz que sou inteligente e que isso é uma benção. Eu sei das minhas limitações e que, se aprendi algo, devo a horas e horas de leitura aficionada. (Não sei jogar vídeo games, não consigo calcular equações muito complexas, nunca aprendi a tocar nenhum instrumento musical, nem assobiar, não tenho a menor habilidade esportiva ou coordenação motora, apenas sei o que os livros que escolhia podiam ensinar).
Na escola sempre fui “zoado” pelos “colegas” e nunca fui reclamar com a professora ou direção. Não por ter resiliência, simplesmente por não saber que assim podia proceder e das vezes que reclamei que era agredido física e moralmente fui chamado de fraco e mariquinha até por professores, inclusive quando cortaram meu cabelo com uma tesoura afiada ou me ameaçaram de morte por ser homossexual, sendo que não sou homossexual. Mas assim eram tratados os meninos de óculos aficionados por leitura.
                Pois bem, se me ative tanto ao relato da minha experiência escolar é por conta do debate exposto no título deste texto sobre a doutrinação nas escolas e se é necessário combatê-la por meio de um projeto chamado Escola Sem Partido.
                Neste projeto, muito mal explicado, diga-se de passagem, seria afixado na parede de cada escola um cartaz com as obrigações dos professores em sala de aula. O objetivo seria evitar a doutrinação esquerdista e consequente partidarização política dos alunos. Os educandos seriam chamados a denunciar se o professor passasse do ponto nas explicações que envolvem gênero, sexo, posicionamento político e um etc difícil de entender.
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                Fui sim levado a acreditar que o pensamento de esquerda era o adequado para um menino pobre e futuro proletário em empresas que me expropriariam do fruto do meu trabalho, a mais-valia. Porém esta doutrinação não estava apenas nos livros, mas nas novelas da Rede globo apontando os empresários como vilões, nos filmes do cinema novo apontados como clássicos nas revistas semanais como Veja e Isto é, nas listas da FUVEST com livros de escritores com viés socialista como Graciliano Ramos e Jorge Amado (nunca Rachel de Queirós ou Nelson Rodrigues), na insistência da minha própria leitura de uma coleção chamada “Primeiros Passos” com o ponto de vista de certos assuntos dados por professores, escritores, estudiosos, especialistas de esquerda, dando o pontapé inicial para cada assunto como nos livros que lia e relia: o que é comunismo, o que é ideologia, o que é cinema, o que é anarquismo, o que é mais-valia, o que é retórica, etc, etc, etc...
                A questão de haver uma corrente dominante de pensamento no Brasil passa um pouco por Gramsci, assim como apontam os que atacam a dita doutrinação nas escolas, mas passa muito mais pelo descaso na educação que foi e é corrente no Brasil desde antes de seu nascimento como país independente.
                O que quero dizer com toda essa conversa?
                Quero dizer que tive muita sorte de ter uma escola péssima para me formar e conseguir me alfabetizando minimamente entrar num curso superior mais ou menos e a partir disto pensar em traçar uma carreira docente, talvez escritor, e assim por diante.
Essa escola péssima que tive foi o melhor que uma criança pobre poderia ter à época. Se eu tivesse nascido dez anos antes provavelmente nem alfabetizado seria, talvez quatro anos de escola, o que era a média.
                Tivesse eu nascido trinta anos antes teria passado longe dos bancos escolares, cinquenta anos antes não saberia o que era um professor, mais trinta anos antes disso teria morrido de verminose no interior do mato de uma cidadezinha qualquer do Espírito Santo.
                No Brasil Colônia não apenas a educação era difícil mas proibida por decreto real. Jornais e livros vetados também. Este território que convencionou-se chamar Brasil era uma empresa a serviço do Império Português e qualquer coisa que não levasse ao enriquecimento imediato da coroa e sua corte era desmotivada.
                Os primeiros livros chegaram oficialmente aqui com a Biblioteca Real de Portugal transplantada para o Brasil durante a fuga da família real trazendo D. João, o único a enganar Napoleão, segundo o próprio. Este momento representou muito mais que apenas o início do processo de independência do Brasil, mas também o começo da construção de um conceito de identidade nacional: um país conservador, católico, rural, aristocrático, sebastianista, atrasado, obtuso e muitos outros adjetivos do gênero. Vou deixar umas lacunas para que o leitor complete como desejar, e descordando possa se expressar _____________________, _________________________, ___________________________, _________________________, _________________________.
                O que estou querendo dizer com todas essas voltas é que não é esta a discussão que deveríamos estar travando. Há coisas mais urgentes no horizonte próximo que discutir na educação a doutrinação ideológica nas escolas.
                Lembro do Euclides da Cunha denunciando que havia no sertão brasileiro uma população enorme que vivia à margem do processo civilizatório. Eram favelados em Canudos, mortos de fome, tuberculose, verminose, moribundos com sede, lepra, morte; e em vez de civilização levaram bombas, canhões, tiros, soldados e mais morte.
                Há toda uma população nas escolas públicas brasileiras sofrendo de escassez de tudo o que pode faltar num colégio: corpo docente, corpo gestor, mobiliário, segurança pública, saneamento básico, água limpa, livros, cadernos, canetas, lápis, teto (algumas escolas funcionam ao ar livre, em paredes de latão, em meio a favelas tomadas pelo tráfico, e os problemas não se resumem num parágrafo).
                Por que é tão gritante que num universo como este os alunos comecem a questionar o capitalismo, que para eles sim está sendo selvagem e se alinhem ao pensamento de pensadores esquerdistas? Nada mais óbvio do que os que não tem nada querer dividir o que percebem como seu por direito. Mesmo sendo uma ideia errada e fruto de estruturas mentais preconcebidas.
O Estado Brasileiro foi criminoso ao longo de séculos. Proibiu as escolas, depois as ofereceu aos filhos das classes mais altas e quando a universalizou proporcionou aos estudantes as disciplinas que não careciam de muito investimento, as humanas. Isso mesmo.
É muito caro um curso com foco em química, biologia, física, matemática. Laboratórios custam os olhos da cara. Construíram-nos próximos aos grandes centros, longe das periferias, perto das famílias de mais posses. Para as escolas do Capão Redondo filosofia, sociologia, geografia, história, língua portuguesa para os poucos que conseguiam frequentar.
Não faço aqui julgamento de valor em relação a um conteúdo em detrimento a outro. Falo de gastos e é óbvio que um livro de filosofia é um investimento mais barato que um kit de química. O Ensino Médio tradicional é quase um curso de humanas, o professor destas disciplinas, em geral são combativos, politizados. Está na raiz de sua formação docente, retirar isso deles é como proibi-los de ensinar. E utilizando sua liberdade de cátedra, posicionam os alunos da forma que acreditam ser a certa. Afinal, é Paulo Freire mesmo quem diz em seu Pedagogia da Autonomia que o professor deve sim se posicionar e levar o aluno a ver o erro que incorre em apoiar certos políticos.
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E sei sim que tudo isso é muito e muito discutível. Mas o que quero dizer mesmo é que antes de pensar em doutrinação nas escolas é preciso oferecer às crianças do Brasil uma educação de qualidade, é preciso reformar e modernizar prédios, investir em aparelhos de ar condicionado (impossível se concentrar para estudar no calor de certos locais do Brasil), investir em equipamentos específicos para cada disciplina, dar autonomia para os gestores administrarem os recursos das escolas e vigiar sua adequada aplicação, reformar sistematicamente os livros didáticos, é necessário investimento maciço nos primeiros anos do Ensino Fundamental (na alfabetização, sim na alfabetização, inclusive na alfabetização matemática fundamentando os professores com projetos de capacitação e aprimoramento), (vou ser polêmico) privatização urgente das universidades públicas brasileiras, valorização da profissão docente com plano de carreira claro, aumento expressivo de salários e bonificações tornando assim a carreira de professor atrativa para as melhores cabeças. Isso e muito mais. Combate ao tráfico de drogas nas portas das escolas, fortalecimento de cursos técnicos e fim desta balela de escola de período integral. Manter os alunos nas escolas o dia inteiro não funciona. Vou repetir: manter os alunos nas escolas o dia inteiro não funciona (alguém digita Pier Luigi no Youtube pra saber do que eu estou falando – se o fulano fica o dia todo tendo aula, quando é que ele vai parar pra estudar???)
Depois de resolvermos tudo isso e muito mais, talvez, e apenas talvez, possamos começar a questionar se o professor X ou Y leva o aluno a pensar de forma A ou B e sim, isto tem consequências nefastas sim.
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Gritar que o professor só ensina Marx e isto é errado é coisa de gente que vive em bolha e não entende nada do Brasil real. Neste país real os alunos terminam o Ensino Médio sem decorar a tabuada do três, ignoram o conceito de fração, não sabem quem foi D. Pedro I, não leem um texto básico, não escrevem um simples bilhete com coerência, não compreendem um comando vindo de um período composto por subordinação, não desenham um ó sentando na areia, não entendem por que sua escola é tão pobre em relação ao do morador dos bairros ricos, não veem perspectiva e não sabem o significado da palavra perspectiva.
Não entendem o conceito de ironia. Não sabem o que é Constituição Federal. Não sabem aprender a aprender e o poder do autodidatismo. Não se tornam o que poderiam ser. Nunca serão seres autônomos e livres prontos para a cidadania e o mercado de trabalho como rege a LDB.
No Brasil o professor é mais uma vítima de todo esse processo vil, não adianta querer transformá-lo no vilão enquanto grupos econômicos disfarçados de universidades e sistemas de ensino jogam na bolsa o destino de mais uma geração deformando o conceito de ensino universitário.
Eu aqui parabenizando os professores pelo que conseguem extrair de bom dos alunos apesar de terem tudo contra si e vem você preocupado com doutrinação ideológica?
Faça-me o favor.

Um comentário:

  1. É uma alegria e tanto poder ainda mergulhar num texto tão sóbrio e equilibrado sobre um assunto já tão batido e marcado por discursos incoerentes motivados por inclinações político-partidários.
    Aqui o Mauro vai além, muito além do pragmatismo que temas dessa ordem costumam trazer, ao nos permitir passear pelos caminhos de sua própria alfabetização, ao nos conduzir a visitar as memórias da nossa própria trajetória escolar e ao sugerir refletirmos um pouco mais sobre a história da educação no Brasil.
    É importante que textos como este consigam atravessar os muros das escolas para poder alcançar o interesse daqueles que acreditam não fazerem parte “desse mundo”, o mundo da educação. É fundamental que textos como este sejam capazes de descentralizar o assunto, deslocá-lo das páginas de livros específicos e dos vocabulários carregados dos educadores para ser lançado aos “outros mundos”, o mundo da prática, de forma fácil, compreensível e, se possível, agradável. É isso (e mais um pouco) que o presente texto oferece.
    Mauro foi muito feliz em sua proposta.
    É preciso cuidado ao lidar com o interesse dos desinteressados. Aqueles que em momentos de euforia intelectual resolvem saber de tudo e ter opinião formada em dois ou três minutos (e não desformam nunca mais). Os pais de alunos que apenas precisam fazer para o filho dar certo, ganhar dinheiro, chegar lá. Não importa o que pensar. Tem que chegar lá!
    Direta e Esquerda ou qualquer “Isto ou aquilo”, se tornam combustível inflamável para todas as emoções. O texto é inteligente, sabe com quem está lidando. Pisa com calma e tempera, às vezes, a premissa de uma polêmica (como quando fala em privatizações de universidades públicas), porém passa longe da típica agressividade para assunto desse tipo. Mauro, não sabe ser agressivo. É perspicaz de mais para isso. Discorre pelas beiras, se fazendo compreender em cada frase, cada intenção.
    Poderia aqui falar muito mais sobre os prazeres possíveis numa leitura como essa, mas me detenho agora para não alongar ainda mais!
    Espero mesmo que outras pessoas que, como eu, não fazem parte diretamente do núcleo da educação, possam ler e refletir com tudo o que aqui foi proposto. E assim expandir a discussão e os interesses provindos dela.

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