Assisti à uma
série que me tocou de alguma forma e me permito fazer neste espaço algumas
considerações.
O
seriado do Netflix “The crown” conta a vida de sua Majestade a rainha Elizabeth
II, de sua infância ao fim do décimo ano de reinado, ao menos ao fim da
segunda temporada era por aí que as coisas andavam. Acredito que a intenção
seja percorrer todo o período Neo-Elizabetano, mas não é uma crítica ao
programa de TV o foco deste artigo.
O seriado teve
o mérito de despertar em mim o interesse por tentar descobrir o porquê de um
país moderno e rico ainda manter a estrutura de Monarquia Constitucional, e a
resposta é dada episódio por episódio: a realiza serve como um modelo de ser
humano a ser seguido, um encantamento, o conto de fadas, o ideal de cidadão que
todo inglês sonha alcançar, não como parte da realeza, mas como integrante de
uma estrutura maior, diferentemente daquelas histórias de reis déspotas, Robin
Hood lutando pelos pobres roubando dos ricos, o William Wallace tendo sua
esposa entregue ao lorde para as primeiras núpcias, ou algum rei francês
perdendo a cabeça. Esta estrutura maior chama-se legado histórico britânico.
Ficou claro
pra mim que a rainha funciona como mecanismo unificador da identidade inglesa,
qualquer britânico no mundo serve à rainha e sente orgulho por participar como
súdito de um reinado que chegou a ocupar toda a vastidão do planeta. Em
tempos o Império Britânico era tão vasto que em algum lugar sempre o
sol brilhava nas terras das Rainhas Elizabeth ou Vitória. E mesmo o Império não
sendo tão vasto quanto o de suas antecessoras é inegável a influência que a
Inglaterra ainda exerce no mundo contemporâneo.
Mesmo sabendo
das agruras impostas por este Império ao longo da história, principalmente o
período moderno, levando em conta principalmente o papel britânico no neocolonialismo
com reflexos terríveis na atualidade. Para o mundo os ingleses não foram
santos, mas para os ingleses é preferível ser inglês a português ou espanhol,
por exemplo.
A ideia de um
ideal, um norte moral, é apresentado em momentos dos mais variados. Alguns me
chamaram muito a atenção e podem ser aplicados como lição de cotidiano, mesmo
para tupiniquins e tupinambás das terras paulistas. Como a luta de Elizabeth
por tornar-se a Elizabeth II, a toda poderosa rainha. A personalidade da pessoa
– Lilibeth, para os íntimos – tem de desaparecer, sua individualidade perder-se
para que a ideia de Coroa permaneça, porque a Coroa é permanente e não
Elizabeth II.
O problema é
que Lilibeth vive num mundo de mudanças, de velocidade, e não é fácil perceber
qual dessas mudanças é, de fato, boa e qual delas veio apenas para subverter a
ordem das coisas causando mais mal do que bem. Quem sabe o que algo tão pequeno
como a transmissão da cerimônia de coroação da Rainha, algo que soaria trivial
no século XXI, mas que era revolucionário na ocasião do recebimento da coroa
por Elizabeth, quem sabe quais as consequências de tal ato?
Ou do
casamento de sua irmã Margareth com um homem divorciado. Nada mais comum para
meros cidadãos, mas a Princesa Margareth tem um título, uma vida de luxos, é
diferente dos súditos comuns e tem de obedecer a uma lei diferente também. A
irmã toda poderosa Rainha autoriza o casamento, mas a Elizabeth II
representando a coroa a proíbe, a relação entre as irmãs se estremece pra
sempre, é o ônus do poder. É o que se paga por ser um modelo a ser seguido por milhões,
é o peso da história nas costas da rainha. É a coroa.
Essa
modernização em certo ponto é resolvida, a rainha consegue atingir o meio termo
e é neste ponto que consigo ver uma relação entre uma vida tão diferente da
minha, diria até que uma vida surreal, com a profissão que abracei: a docência.
Percebendo como a rainha vai se despindo de
suas vontades, seus desejos pessoais, sua própria individualidade, tudo isto
muito justo, (desde a Revolução Francesa que os ideais de igualdade, liberdade
e fraternidade estão aliados a um projeto de direitos humanos que pressupõem
que cada pessoa tem o direito de sonhar e buscar este sonho). O próprio tio da
rainha Elizabeth II abriu mão da coroa porque queria casar-se com uma mulher
divorciada de três maridos.
Mas o
professor tem algo de rei. Pode parecer absurda a comparação e é muito absurda
mesmo.
Lembro de
outro filme muito bacana, traduzido no Brasil como “Adorável professor” nele o
Mr. Holland, professor protagonista, chega ao primeiro dia de aula carregando
uma pasta sofisticada, vestido de terno e gravata e se dizendo maestro com um
projeto de dar aulas para ter tempo de compor a sua sinfonia.
Ao longo da
narrativa vemos o Mr. Holland se desapegando de seus ideais, seus sonhos e
desejos para fazer o que era necessário como professor. E à medida que se
desapegava de si os alunos criavam gosto pelas suas aulas, sua sinfonia ficava
de lado, sua família ficava de lado, mesmo seu filho deficiente auditivo perdia
um pouco do pai. Os alunos ganharam o melhor professor de suas vidas.
A cena final
do filme é marcante quando vários de seus alunos ao longo dos anos apareceram
para se despedir do professor e agradecer pelo maravilhoso motivador que foi,
sua sinfonia estava ali aos seus olhos, na vida de seus pupilos.
O professor,
em certa medida, tem de desaparecer enquanto indivíduo, em prol de um ideal
maior. O aluno e seus sonhos. Este é o trabalho do docente.
Isso fica
muito evidente no seriado “The crown” quando o rei George, pouco antes de morrer
chama seu genro, marido de Elizabeth, o Duque Philip para uma conversa em que
explica de forma bem clara que sua obrigação era a rainha. Ou seja, quando
Lilibeth se tornar a representante da coroa todas as ações do marido Philip
deveriam estar voltadas a organizar, proteger, salvaguardar, a rainha
Elizabeth. E isto somente ocorreria se o marido da rainha abrisse mão de toda a
sua individualidade.
No seriado
esta questão é a que traz o maior problema, afinal qual o papel de um marido de
rainha? Para o rei George era bem claro, para Philip custa a lhe ocorrer. Assim
como para a irmã Margareth que também ama as benesses da realeza, mas não
aceita muito bem o papel de figura idealizada.
Por incrível
que pareça, a pessoa que melhor aceita pagar este tributo é a própria rainha
que desaparece tanto na coroa que chega a ser uma caricatura de si própria, não
à toa olhamos a rainha da Inglaterra (a verdadeira) como uma figura decorativa,
sem voz, sem tom e sem graça. A graça não está nela, mas na coroa.
Mas voltemos
ao fardo que o professor tem de carregar, e sei da injustiça da comparação que
faço, a família real é proibida de trabalhar, vive em castelos, não diferenciam
dias da semana de feriados e quem são os professores perto disso tudo?
Lembro que na
minha infância nutria verdadeira admiração pelos meus professores, admiração
que se perdeu ao longo do Ensino Fundamental II e Médio e que redescobri no
Ensino Universitário.
Nos primeiros
anos de escola olhava aquelas professoras entrando na sala cheias de sacolas
com livros, atividades, cadernos de alunos de outras séries, o diário de classe
verdadeiro objeto proibido e tudo aquilo me gerava um encantamento e respeito
que, talvez um súdito da rainha tenha com a mesma.
Ouvi dizer que
isso ainda ocorre no Japão, país em que o professor é tratado como o Imperador,
sendo o único profissional que não precisa se curvar ante o mandatário.
Mas ao longo
dos anos fui percebendo que professores foram se aproximando muito, tanto que
em certos aspectos não sabia onde começava um professor e terminava um aluno. E
se falo isso é porque acredito no poder que o encantamento pode causar na vida
de uma pessoa quando vindo de um docente.
Sei que pareço
reacionário dizendo essas coisas, mas o professor tem de ser um ideal de moral
e ética para seus alunos assim como a coroa tem de o ser para os súditos
ingleses.
O Mr. Holland
de “Adorável professor” perde inclusive sua disciplina e ao final do filme está
desempregado, no filme “Ao mestre com carinho” o professor também abre mão de
um emprego mais qualificado porque aceita outro ano lecionando.
A profissão
mais difícil do mundo, eis o que é: abrir mão não apenas de noites de sono, de
momentos com a família, de um salário digno, mas da própria identidade, das
próprias ideologias por vezes, pra que o aluno descubra seu próprio caminho. Sem
proselitismos, sem idealidades.
O professor é
uma vocação linda. É uma profissão impossível.
É muito triste
ter de aceitar que o indivíduo na frente da lousa, sem voz, cansado, dentro do
jaleco coberto de giz passa sem deixar rastros e o que mais importa é a “coroa”:
o conteúdo, os sonhos e objetivos dos alunos. Mas servir ao próximo desta forma
é muito mais grandioso e transformador que apenas sendo uma figura decorativa,
fria e muda como a Rainha da Inglaterra.