quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

Doutrinação ideológica, escola sem partido e Educação Moral e Cívica


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                Conheci o Ensino Público na década de 1980 (sim, já estou bem velho) e naquela década havia por meio do estado um debate a respeito de proteção à criança através de uma nova lei que seria aprovada para proteger meninos e meninas de maus tratos praticados nas escolas, ambientes públicos e até pelos próprios pais. O Estatuto da Criança e do Adolescente retirava dos professores, por exemplo, o direito de dar uma palmada no aluno caso o mesmo incorresse em desinteresse, birra ou agressão ao coleguinha. Era o fim da palmatória, ainda praticada em alguns muitos colégios, públicos e privados.
                Conheci o Ensino Público numa época em que as escolas da periferia (sim, estudei em colégio público de periferia), numa época em que as escolas de periferia funcionavam em quatro períodos, cada aula durava quarenta e cinco minutos, cinco delas por dia e não raro faltavam professores para lecionar tais disciplinas. Funcionando em quatro períodos uma das pessoas mais importantes da escola era a senhora do portão, era ela quem passava o dia inteiro atendendo aos sinais, abrindo e fechando, mandando entrar ou deixando sair.
                Conheci o Ensino Público no fim dos governos militares (sim, eu sou do período militar). As escolas nesta época ainda não entendiam muito a sua função. Eu tive na sexta série B a disciplina de Educação Moral e Cívica, teria tido OSPB na sétima, mas foi retirada para a inclusão de um conteúdo chamado Desenho Geométrico, que nunca entendi direito pra que servia e tenho absoluta certeza que nem a professora.
                Conheci o Ensino Público numa escola com aulas da Primeira Série do Primário ao Terceiro Ano Colegial. (Sim, estudei a minha educação básica integralmente numa mesma escola). A Lei de Diretrizes e Base da Educação (Lei 9394/96) foi promulgado no fim da minha jornada escolar. Não tive tempo de receber suas benesses como ter o ensino dividido em períodos conhecidos como Ensino Fundamental, Médio e Superior, progressão continuada, escolas divididas para alunos dos ciclos iniciais.
Quando comecei minha alfabetização, os alunos do nono ano do hoje chamado Fundamental II tiveram de fazer uma espécie de Vestibulinho para serem admitidos no primeiro ano do Colegial da escola que já frequentavam. Não havia garantia nenhuma de vagas para todos os que terminavam o ciclo anterior. Nenhum deles.
Felizes os que estavam nas escolas quando as havia. Tive, na medida do possível, por ser morador do lugar que morei, uma relativa sorte por ter concluído os estudos básicos sem nenhum entrevero maior. Salvo a escandalosa falta de qualidade de ensino.
                Conheci o Ensino Público com os professores preparados para ensinar de forma militar e repetitiva, livros didáticos que incentivavam o acúmulo de conteúdos sem a preocupação em criar significado em nada, com a desculpa de que aquilo serviria para o futuro. O futuro, o futuro...
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Lembro que olhava para a vizinhança e não via muito sentido em estudar as primeiras civilizações se formando às margens dos Rios Tigre e Eufrates, que recebeu o nome de Mesopotâmia “que significa terra entre rios”. A professora falava que as pessoas da antiguidade escolhiam as proximidades de rios para construírem suas casas.
Eu morava ao lado de um rio, um córrego que transbordava toda vez que chovia e eu que tinha minha casa alagada constantemente precisava estudar os efeitos da cheia do Rio Nilo para o progresso da Civilização Egípcia.
Não conseguia atinar sentido em nada que via na escola, mesmo sendo considerado por todos um bom aluno, nunca fiz nada além de replicar os conhecimentos enciclopédicos propostos.
Achava o colégio uma perda de tempo e na época culpava os professores, hoje sei que a questão é muito mais complexa.
                Conheci o Ensino Público vendo meu colega que estudou comigo todo o Primário ir fazer o Colegial em escola particular porque seu pai podia dar uma educação de melhor qualidade para ele (sim, tive muita inveja do colega que foi para uma escola melhor porque o pai podia pagar). Acho que, podendo voltar no tempo, recriminaria meu eu criança dizendo que a escola é muito importante e que mais importante que o local onde se estuda  é a disciplina para se organizar, se preparar, se concentrar, tendo metas e objetivos concretos. Não sei por onde anda o coleguinha que mudou de escola, mas se tivesse um filho também pagaria colégio particular.
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                Estudei em faculdades públicas e privadas. Me especializei de diversas formas, mas o momento da vida que mais aprendi foi no hiato que tive entre o término da minha Educação Básica e o início do Ensino Superior. Foram quatro anos de frequência absoluta à biblioteca: duas, três, quatro vezes na semana. Lia de forma alucinada como um alucinado. Dormia com livros, comia com livros, andava com livros, sonhava com livros.
Desta forma conversei com vários mortos: Machado, Tolstói, Lispector, Sérgio Porto, Nelson Rodrigues. Alguns vivos à época: Garcia Marques, Jorge Amado, Ferreira Gullar, Phillip Roth, Décio Pignatari. Outros ainda vivos, ao menos enquanto rabisco este artigo: Adélia Prado, Rubem Fonseca, Luís Fernando Veríssimo. Tive os melhores professores nas páginas dos livros que frequentei enquanto caminhava nos corredores da singela e simples biblioteca pública Monteiro Lobato no centro de Guarulhos.
Minha mãe tem um orgulho cruel de mim, diz que sou inteligente e que isso é uma benção. Eu sei das minhas limitações e que, se aprendi algo, devo a horas e horas de leitura aficionada. (Não sei jogar vídeo games, não consigo calcular equações muito complexas, nunca aprendi a tocar nenhum instrumento musical, nem assobiar, não tenho a menor habilidade esportiva ou coordenação motora, apenas sei o que os livros que escolhia podiam ensinar).
Na escola sempre fui “zoado” pelos “colegas” e nunca fui reclamar com a professora ou direção. Não por ter resiliência, simplesmente por não saber que assim podia proceder e das vezes que reclamei que era agredido física e moralmente fui chamado de fraco e mariquinha até por professores, inclusive quando cortaram meu cabelo com uma tesoura afiada ou me ameaçaram de morte por ser homossexual, sendo que não sou homossexual. Mas assim eram tratados os meninos de óculos aficionados por leitura.
                Pois bem, se me ative tanto ao relato da minha experiência escolar é por conta do debate exposto no título deste texto sobre a doutrinação nas escolas e se é necessário combatê-la por meio de um projeto chamado Escola Sem Partido.
                Neste projeto, muito mal explicado, diga-se de passagem, seria afixado na parede de cada escola um cartaz com as obrigações dos professores em sala de aula. O objetivo seria evitar a doutrinação esquerdista e consequente partidarização política dos alunos. Os educandos seriam chamados a denunciar se o professor passasse do ponto nas explicações que envolvem gênero, sexo, posicionamento político e um etc difícil de entender.
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                Fui sim levado a acreditar que o pensamento de esquerda era o adequado para um menino pobre e futuro proletário em empresas que me expropriariam do fruto do meu trabalho, a mais-valia. Porém esta doutrinação não estava apenas nos livros, mas nas novelas da Rede globo apontando os empresários como vilões, nos filmes do cinema novo apontados como clássicos nas revistas semanais como Veja e Isto é, nas listas da FUVEST com livros de escritores com viés socialista como Graciliano Ramos e Jorge Amado (nunca Rachel de Queirós ou Nelson Rodrigues), na insistência da minha própria leitura de uma coleção chamada “Primeiros Passos” com o ponto de vista de certos assuntos dados por professores, escritores, estudiosos, especialistas de esquerda, dando o pontapé inicial para cada assunto como nos livros que lia e relia: o que é comunismo, o que é ideologia, o que é cinema, o que é anarquismo, o que é mais-valia, o que é retórica, etc, etc, etc...
                A questão de haver uma corrente dominante de pensamento no Brasil passa um pouco por Gramsci, assim como apontam os que atacam a dita doutrinação nas escolas, mas passa muito mais pelo descaso na educação que foi e é corrente no Brasil desde antes de seu nascimento como país independente.
                O que quero dizer com toda essa conversa?
                Quero dizer que tive muita sorte de ter uma escola péssima para me formar e conseguir me alfabetizando minimamente entrar num curso superior mais ou menos e a partir disto pensar em traçar uma carreira docente, talvez escritor, e assim por diante.
Essa escola péssima que tive foi o melhor que uma criança pobre poderia ter à época. Se eu tivesse nascido dez anos antes provavelmente nem alfabetizado seria, talvez quatro anos de escola, o que era a média.
                Tivesse eu nascido trinta anos antes teria passado longe dos bancos escolares, cinquenta anos antes não saberia o que era um professor, mais trinta anos antes disso teria morrido de verminose no interior do mato de uma cidadezinha qualquer do Espírito Santo.
                No Brasil Colônia não apenas a educação era difícil mas proibida por decreto real. Jornais e livros vetados também. Este território que convencionou-se chamar Brasil era uma empresa a serviço do Império Português e qualquer coisa que não levasse ao enriquecimento imediato da coroa e sua corte era desmotivada.
                Os primeiros livros chegaram oficialmente aqui com a Biblioteca Real de Portugal transplantada para o Brasil durante a fuga da família real trazendo D. João, o único a enganar Napoleão, segundo o próprio. Este momento representou muito mais que apenas o início do processo de independência do Brasil, mas também o começo da construção de um conceito de identidade nacional: um país conservador, católico, rural, aristocrático, sebastianista, atrasado, obtuso e muitos outros adjetivos do gênero. Vou deixar umas lacunas para que o leitor complete como desejar, e descordando possa se expressar _____________________, _________________________, ___________________________, _________________________, _________________________.
                O que estou querendo dizer com todas essas voltas é que não é esta a discussão que deveríamos estar travando. Há coisas mais urgentes no horizonte próximo que discutir na educação a doutrinação ideológica nas escolas.
                Lembro do Euclides da Cunha denunciando que havia no sertão brasileiro uma população enorme que vivia à margem do processo civilizatório. Eram favelados em Canudos, mortos de fome, tuberculose, verminose, moribundos com sede, lepra, morte; e em vez de civilização levaram bombas, canhões, tiros, soldados e mais morte.
                Há toda uma população nas escolas públicas brasileiras sofrendo de escassez de tudo o que pode faltar num colégio: corpo docente, corpo gestor, mobiliário, segurança pública, saneamento básico, água limpa, livros, cadernos, canetas, lápis, teto (algumas escolas funcionam ao ar livre, em paredes de latão, em meio a favelas tomadas pelo tráfico, e os problemas não se resumem num parágrafo).
                Por que é tão gritante que num universo como este os alunos comecem a questionar o capitalismo, que para eles sim está sendo selvagem e se alinhem ao pensamento de pensadores esquerdistas? Nada mais óbvio do que os que não tem nada querer dividir o que percebem como seu por direito. Mesmo sendo uma ideia errada e fruto de estruturas mentais preconcebidas.
O Estado Brasileiro foi criminoso ao longo de séculos. Proibiu as escolas, depois as ofereceu aos filhos das classes mais altas e quando a universalizou proporcionou aos estudantes as disciplinas que não careciam de muito investimento, as humanas. Isso mesmo.
É muito caro um curso com foco em química, biologia, física, matemática. Laboratórios custam os olhos da cara. Construíram-nos próximos aos grandes centros, longe das periferias, perto das famílias de mais posses. Para as escolas do Capão Redondo filosofia, sociologia, geografia, história, língua portuguesa para os poucos que conseguiam frequentar.
Não faço aqui julgamento de valor em relação a um conteúdo em detrimento a outro. Falo de gastos e é óbvio que um livro de filosofia é um investimento mais barato que um kit de química. O Ensino Médio tradicional é quase um curso de humanas, o professor destas disciplinas, em geral são combativos, politizados. Está na raiz de sua formação docente, retirar isso deles é como proibi-los de ensinar. E utilizando sua liberdade de cátedra, posicionam os alunos da forma que acreditam ser a certa. Afinal, é Paulo Freire mesmo quem diz em seu Pedagogia da Autonomia que o professor deve sim se posicionar e levar o aluno a ver o erro que incorre em apoiar certos políticos.
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E sei sim que tudo isso é muito e muito discutível. Mas o que quero dizer mesmo é que antes de pensar em doutrinação nas escolas é preciso oferecer às crianças do Brasil uma educação de qualidade, é preciso reformar e modernizar prédios, investir em aparelhos de ar condicionado (impossível se concentrar para estudar no calor de certos locais do Brasil), investir em equipamentos específicos para cada disciplina, dar autonomia para os gestores administrarem os recursos das escolas e vigiar sua adequada aplicação, reformar sistematicamente os livros didáticos, é necessário investimento maciço nos primeiros anos do Ensino Fundamental (na alfabetização, sim na alfabetização, inclusive na alfabetização matemática fundamentando os professores com projetos de capacitação e aprimoramento), (vou ser polêmico) privatização urgente das universidades públicas brasileiras, valorização da profissão docente com plano de carreira claro, aumento expressivo de salários e bonificações tornando assim a carreira de professor atrativa para as melhores cabeças. Isso e muito mais. Combate ao tráfico de drogas nas portas das escolas, fortalecimento de cursos técnicos e fim desta balela de escola de período integral. Manter os alunos nas escolas o dia inteiro não funciona. Vou repetir: manter os alunos nas escolas o dia inteiro não funciona (alguém digita Pier Luigi no Youtube pra saber do que eu estou falando – se o fulano fica o dia todo tendo aula, quando é que ele vai parar pra estudar???)
Depois de resolvermos tudo isso e muito mais, talvez, e apenas talvez, possamos começar a questionar se o professor X ou Y leva o aluno a pensar de forma A ou B e sim, isto tem consequências nefastas sim.
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Gritar que o professor só ensina Marx e isto é errado é coisa de gente que vive em bolha e não entende nada do Brasil real. Neste país real os alunos terminam o Ensino Médio sem decorar a tabuada do três, ignoram o conceito de fração, não sabem quem foi D. Pedro I, não leem um texto básico, não escrevem um simples bilhete com coerência, não compreendem um comando vindo de um período composto por subordinação, não desenham um ó sentando na areia, não entendem por que sua escola é tão pobre em relação ao do morador dos bairros ricos, não veem perspectiva e não sabem o significado da palavra perspectiva.
Não entendem o conceito de ironia. Não sabem o que é Constituição Federal. Não sabem aprender a aprender e o poder do autodidatismo. Não se tornam o que poderiam ser. Nunca serão seres autônomos e livres prontos para a cidadania e o mercado de trabalho como rege a LDB.
No Brasil o professor é mais uma vítima de todo esse processo vil, não adianta querer transformá-lo no vilão enquanto grupos econômicos disfarçados de universidades e sistemas de ensino jogam na bolsa o destino de mais uma geração deformando o conceito de ensino universitário.
Eu aqui parabenizando os professores pelo que conseguem extrair de bom dos alunos apesar de terem tudo contra si e vem você preocupado com doutrinação ideológica?
Faça-me o favor.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

Greve dos caminhoneiros, pedágios e trem de Guarulhos (que não te leva até o aeroporto)


Resultado de imagem para ferrovia antiga guarulhos            A greve dos caminhoneiros apenas comprovou o que todos já sabem: o Brasil é um país irresponsável.
                Irresponsável e sem memória. Somos nós brasileiros o suprassumo do descaso.
                Essa greve se iniciou quando feita a opção há mais de cinquenta anos pelo transporte rodoviário em detrimento ao ferroviário, um cúmulo num país de dimensões continentais não haver ferrovias cortando o país de fora a fora levando carga e pessoas a um custo mais acessível, gerando concorrência entre os modais.
                Não acredito estar sendo infantil exteriorizando minha indignação em vez de apresentar uma visão mais científica, como é o caso corrente deste blog. É que está tudo tão na cara. Não vejo motivo algum para numa cidade como Guarulhos, por exemplo, terem extinto as linhas de trem para implantação de transporte sobre rodas. Não por coincidência na mesma época do presidente Juscelino abrir o Brasil para as grandes montadoras.
                Acredito ter havido uma onda rodoviária encabeçada por mídia e marketing bem elaborado, levando a população pensar que ônibus (no caso de Guarulhos) e caminhões fossem uma melhor opção.
             O paisano médio não tem que se preocupar com a mobilidade da cidade e logística de cargas ao redor do Brasil, tem coisas mais imediatas a pensar tipo: como chegar ao trabalho pela manhã e voltar pra casa à noite.
                Engraçado e trágico que no mesmo ano da reimplantação do transporte sobre trilhos em Cumbica (um trem que leva ao aeroporto que não chega ao aeroporto), então, no mesmo ano da reimplantação do trem guarulhense ocorre a greve dos caminhoneiros parando o Brasil inteiro, fechando rodovias e desabastecendo postos de gasolina, mercados e hospitais.
                Esse caos foi gestado há muito tempo, mas ganhou esta grandiosidade também por conta dos últimos vinte anos de governos com políticas de crédito irresponsáveis. O que aconteceu?
                Nas duas últimas décadas foi dado incentivo para a população comprar veículos pesados, os caminhões. Que transportavam diuturnamente commodities do interior para os portos, e produtos xing ling dos portos e aeroportos para o interior do Brasil. Quanto mais faltavam caminhões mais o governo incentivava o crédito, mais se compravam caminhões. O preço do frete nas alturas. Era muito bom para todos (todos?).
            A China, o maior comprador de aço, minérios e tudo o que era produzido aqui, crescia dois dígitos ao ano. O saco parecia não ter fundo. Fizemos uma copa do mundo, por que ferrovia? Fizemos uma olimpíada.
Resultado de imagem para estrada brasileira norte                Quando a China parou de crescer tanto, (tanto, porque ainda cresce invejáveis seis a oito por cento ao ano) as empresas brasileiras pararam de vender e comprar e demitiram pessoas que também pararam de comprar. Tudo isso levou-as a transportarem menos. Com muitos caminhões no mercado e pouco a ser transportado o capitalismo mostra o que tem de mais racional e alguns diriam selvagem: muita oferta, pouca procura, preço no chão.
                Em qualquer país civilizado os caminhoneiros que não conseguissem bancar seus caminhões mudariam de ramo, o mercado se adaptaria. Alguns bancos tomariam alguns caminhões, seriam obrigados a negociar as dívidas com os caminhoneiros porque nenhuma instituição financeira quer ser dona de vários caminhões apodrecendo e desvalorizando-se em pátios de leilão. Alguns transformariam seus veículos em oportunidades de outros negócios e bora tocar a vida e crescer realizando nossos sonhos.
                Não no Brasil. No Brasil os caminhoneiros exigiram que o governo federal instituísse uma tabela para fretes obrigando os contratantes a pagar um valor mínimo quando o mercado claramente dizia que o preço pelo seu produto (o frete) já não valia o que valera há anos. Havia (há) um excesso de produto, mão de obra rodoviária, e uma baixa procura. Ou seja, é possível negociar um preço mais baixo por este serviço, o que é triste demasiado triste, mas é o que ocorre numa livre economia de mercado.
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                Mas como foi dito na primeira parte deste texto, no Brasil o transporte rodoviário é onipresente, magnânimo e não está disposto a entender de economia básica. Se não se transporta pelas rodovias, que tal as hidrovias, ferrovias, transporte aéreo? Em caso de greve, ou lock out, como foi o caso, algum problema haveria, mas nunca o caos.
No Brasil o caos foi implantado cinquenta anos atrás e impulsionado nos últimos dezesseis por irresponsáveis governos populistas que não pensaram em nada além de se perpetuarem no poder através de uma agenda no mínimo estúpida, para não dizer criminosa.
Ao fomentar o uso de automóveis e caminhões criou-se a necessidade de mais rodovias, todas elas muito bem pedagiadas e seguras. Ficamos todos muito felizes por estar dirigindo numa estrada que é um tapete, sem pensar que poderíamos estar lendo um livro num trem saindo da Barra Funda em direção à Pampulha.
Mais carros, mais estradas, mais pedágios, mais manutenção de rodovias, mais empreiteiras coordenando o poder, todo o mundo civilizado em direção a um ponto e nós a outro.
Lembro quando o prefeito Kassab... ou foi o Serra? Nem sei mais, tanto faz. Lembro quando um desses gastou milhões de reais na expansão da Marginal do Rio Tietê. Foi gasto um dinheiro absurdo para liberar espaço para mais carros, na mesma época vi uma reportagem sobre uma marginal em um rio na Coréia do Sul. Eles retiraram a avenida marginal abrindo espaço de lazer ao longo do rio. O que fizeram com os carros que por lá passavam? Nada. Ampliaram a oferta de transporte público, simples assim.
Fato: quando há concorrência, o serviço melhora. No Brasil existem os monopólios que geram demandas específicas e isto atrasa abertamente o desenvolvimento em todas as áreas em que esta palavra se aplica: social, educacional, econômica e por aí vai.
Por aí vai, mas não vai. Ficamos parados em aeroportos subutilizados, em rodoviárias mal elaboradas, em estradas esburacados fora do eixo Sul/Sudeste, estradas hiperpedagiadas quando bem equipadas (e caras, muito caras), falta de investimento em tecnologia logística, uma malha de transporte kubitschekiana sem a menor perspectiva de mudança para os próximos cinquenta anos.
Chegam a ser cômicas algumas propostas para a integração do transporte elaboradas pelo último governo, como o da placa de veículos única para o Mercosul. Nossa!!! Estamos aí sim perto da integração do mercado comum, uma balela sem tamanho. Deve haver algum empresário produtor de placa torcendo muito, muito mesmo pra que isso ocorra o mais breve possível e de forma visceral, sem retorno.
Enquanto isso ficamos parados nos pontos de ônibus, no meio da estrada esburacada, na fila do pedágio, em casa sem trabalhar no meio da greve dos caminhoneiros, pagando caro por um serviço de péssima qualidade e torcendo para que ao fim do mês sobre algum pra economizar e dar a entrada no carro dos sonhos. Afinal, um carro significa liberdade.

terça-feira, 4 de dezembro de 2018

Mais médicos, mais enfermeiros, mais paramédicos.


Resultado de imagem para cruz vermelha              O governo Bolsonaro nem começou, mas a ânsia de sentir como seria uma administração de direita no Brasil é tão grande que há laivos de empoderamento bolsonárico em todas as partes. O mais gritante foi a retirada dos médicos cubanos do programa mais médicos.
                É sobre isso que tratarei aqui.
                Não vou me ater às denúncias de que é um projeto com o intuito de financiar a ditadura cubana, ou que seria um caso de exploração que beira a escravidão. Meu foco será a questão da saúde pública no Brasil. O SUS e não apenas ele.
                Um pouco de história.
                Antes da constituição de 1988 ninguém tinha assegurado tratamento médico gratuito no Brasil. Havia o INAMPS que era uma autarquia do Ministério da Saúde, com o intuito de assegurar algum tratamento humanitário a mendigos, indigentes, vacinação a todos e saúde pública a quem contribuía para o INPS.
O que era o INPS? Seria o que é hoje o INSS. A querida previdência social e pública.
Assim: quem contribuía para a previdência tinha assegurado o tratamento público gratuito em hospitais do governo. Isso foi criado em 1974. Não pesquisei como era antes, mas fiquei curioso, vou dar uma olhada e acrescento algo aqui quando tiver um tempinho.
Então o governo federal assegurava saúde pública a quem trabalhava com carteira assinada.
Hoje é bem diferente. À luz da constituição cidadã de 1988 assegurou-se o atendimento de saúde gratuito e universal no território brasileiro, o SUS (Sistema Único de Saúde), que não é único porque não existe outro no Brasil, já que em território brasileiro é livre a venda de planos de saúde privados, Amil, Unimed, e vários outros.
Pois bem. O SUS é um dos maiores avanços civilizatórios da sociedade brasileira. E sua instauração assegurou a todos os tupiniquins um tratamento para qualquer doença que nos afete. Sem carências, sem questionamentos. Gratuito. E então começam as confusões.
O Sistema Único brasileiro sofre o mesmo que todo plano de saúde por não poder aumentar a mensalidade. Não à toa muitos planos particulares estão falindo, saindo do mercado, pois são proibidos de aumentar as parcelas como gostariam, ou como deveriam.
Não dá pra falar desse assunto de forma tão breve. Minha intenção aqui é ser panorâmico, o que dará a impressão de que concordo com os convênios privados quando aumentam as mensalidades. O que não é verdade. Sou a parte mais sensível do processo. Não quero pagar a mais, entretanto é visível ao longo dos últimos vinte anos os planos particulares sendo obrigados a cobrirem cada vez mais procedimentos, cirurgias complexas e caras, restando aos planos particulares abrirem um abismo entre os convênios premiums e os dedicados ao povão. 
Sim. Está cada vez mais difícil aprovar alguma cirurgia em hospitais particulares, mas se você paga três ou quatro mil reais por mês talvez não tenha problemas para ter um coração transplantado no Albert Einstein, por exemplo. Não conheço ninguém com essa sorte, quer dizer, este plano.
Outra questão é que ao criar problemas para seus pagadores, os convênios particulares empurram seus clientes para o SUS. Que por natureza não pode e nem deve discriminar ninguém. Rico ou pobre.
Então se você tem uma gripe, uma virose, o melhor lugar do mundo é um hospital particular. Te oferecem até um carinho na saída. Mas se o caso é mais complexo, como um câncer, uma cirurgia vascular, o melhor lugar no Brasil ainda é o SUS. Os convênios sabem disso e economizam às nossas custas, dificultando liberações de procedimentos. Incorrem em ilegalidades e quase sempre são processados, quase sempre perdem os processos, o que parece ser mais benéfico para a saúde financeira dessas empresas que arcar com todos os custos de um tratamento moderno, caro e funcional.
Do outro lado o SUS padece por sua grandeza. É o sistema federal com maior alcance, lembrando que a educação é repartida com estados e municípios, assim como a segurança. A mesma carteirinha do Sus é válida nos confins do Mato Grosso e nos sertões paraibanos. Sim, o SUS é muito bom. Não existe sistema de saúde público universal nos Estados Unidos, por exemplo. O Obamacare é a tentativa yankee de algo do tipo, obrigando a todos os americanos o pagamento de uma cobertura mínima.
No SUS brasileiro acontece a maior parte dos transplantes, tratamento contra o câncer tuberculose, ossos quebrados, gripes, resfriados, coquetel antiviral para o tratamento do HIV e vacinas. Eu mesmo posso falar da vez que quebrei um braço (ainda criança) e tive todo o processo de reestabelecimento gratuito. O SUS não discrimina.
Mas qual o problema com este sistema tão bom que retrato acima. Tão bom que chega parecer ridícula a comparação com os parceiros particulares Brasil afora?
O problema é o preço.
Com um real gasto com educação é possível comprar um lápis e uma criança pode escrever durante quinze dias, ou mais, numa escola em qualquer ponto do país. Um real em saúde não compra um dipirona pra reduzir a febre desta mesma criança quando sai pra brincar na chuva e toda criança adora brincar na chuva. Isso no caso de um simples resfriado, imagine o custo do tratamento caso tenha leucemia, por exemplo.
Quando escrevi alguns parágrafos acima que o SUS é público e gratuito eu menti descaradamente. Público sim. Gratuito nenhum pouco. O sistema público brasileiro é mantido com o dinheiro dos impostos, algo em torno de 12 e 13 por cento da receita das esferas federal, estaduais e municipais. O mínimo.
É como ter uma casa com o orçamento de mil reais e ser obrigado a gastar 130 com a compra de remédios, tratamentos, vacinas. Para toda a família.
E se o dinheiro não der pra cobrir as despesas? E se o filho mais novo da família contrai uma pneumonia, o mais velho torce o tornozelo jogando futebol e a mãe tem um cisto no ovário?
A péssima notícia é que esta família é o Brasil. A boa é que nem todos os membros da casa estão tão doentes.
Resultado de imagem para enfermeiras inglesasJosé Sarney era o presidente quando da sanção da última constituição brasileira e ao saber dos direitos todos que ela garantia, ficou desesperado como membro do executivo sem conceber de onde retirar verba para tantos gastos. O problema se resume muito a dinheiro, mas como disse no parágrafo anterior os problemas brasileiros não são tão complexos, de fato não são.
Cerca de setenta por cento das pessoas que procuram um médico no Brasil busca um tratamento para uma doença chamada de baixa complexidade: resfriado, diarreia, virose, febre, cefaleia, etc.
No Reino Unido existe a cultura das enfermeiras cuidadoras. Elas dão o primeiro atendimento se responsabilizando pelo cuidado do paciente. São treinadas para perceber situações mais sérias e encaminhar, se for necessário, ao médico responsável.
Nos Estados Unidos a rede Wallgreen (uma mistura de lojas americanas, farmácia e supermercado) disponibiliza atendimento com farmacêuticos para a indicação de medicamentos para tratamentos mais simples, como ouvido entupido, cortes e queimaduras superficiais, e outros entreveros menos urgentes, passíveis de um tratamento sem a necessidade de um profissional hiperqualificado.
Isso no Brasil é permitido quando se autoriza parte dos remédios serem comprados com receita e outros não. Eu acho que poderíamos ir mais longe.
Há no Brasil um sistema público que deveria atender a todos, mas não atende por diversos motivos. O governo Dilma alegou que o principal era a falta de médicos. O que eu discordo enormemente.
Talvez a falta de especialistas em diversas áreas: neurologistas, geriatras para assistir as novas demandas da sociedade, o envelhecimento da população é urgente.
Se fosse dada a liberdade a enfermeiros prescreverem receitas simples, atendimentos básicos, aliado a uma orientação mais especializada, com certeza se esvaziariam os ambulatórios, seria dado um atendimento mais de pronto levando aos médicos os casos mais graves e aqueles que fugissem da expertise de um profissional de enfermagem.
Sem medo. No meio do caos é necessário ter coragem para algumas atitudes que podem mesmo salvar vidas. Uma pessoa que retorna ao ambulatório reclamando de dor duas, três vezes seguidas precisa se consultar com um médico. Uma outra que virou a noite na rua e bebeu até cair precisa de um cuidado menos acurado, qualquer enfermeiro sabe o que fazer e problemas assim lotam as enfermarias de todo o Brasil.
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Em cidades mais afastadas, com problemas de doenças tropicais deveria ser feito um estudo mais aprofundado, assim como em locais sem saneamento básico, alto índice de acidentes de trânsito, quedas de motos como em São Paulo. Tudo isso otimizaria o atendimento, desburocratizando a figura do doutor.
É claro que muita gente vai reclamar. Se sai de casa é porque quer ver um médico e isso não vai se alterar no curto prazo. Para tal se faz urgente a informação. Isso e um olhar à realidade. Toda vez que fui a um ambulatório buscando atendimento médico passei por uma triagem: medem pressão arterial, temperatura, uma breve entrevista e em caso de gravidade passam na frente para o atendimento imediato. Enquanto isso situações menos complexas esperam por seis, sete, dez, doze horas na fila em busca de atendimento. Quantas vezes não vemos pessoas desistindo de esperar, se levantando e partem. Deixaram de ficar doentes? Um pouco mais de inteligência, por favor.
Que tal se na triagem já houvesse medicação, aliviando o peso do trabalho do médico. Ele poderia assim cuidar melhor da velhinha que volta pela quarta vez reclamando de dores no pescoço.
Seria a perfeição? Claro que não. Mas entupir os hospitais de pessoas com problemas pouco complexos, fomentando automedicação e a venda de medicamentos sem prescrição não me parece ser um caminho saudável (trocadilho obsceno).
Os farmacêuticos estudam tanto para atender atrás de um balcão? Por que não podem prescrever?
As enfermeiras estudam por quatro, cinco anos? Por que não podem atender, prescrever, cuidar de fato?
O médico especializado em complexidade, por que passar o dia inteiro receitando remédios para prisão de ventre e diarreia?
Enquanto isso crianças morrem com surtos de dengue, malária, leptospirose, verminose e várias outras doenças ligadas ao simples fato de serem pobres e viverem muito perto das próprias fezes.
Mais médicos? Talvez.
Mais profissionais da saúde com mais autonomia? Com certeza.

sexta-feira, 30 de novembro de 2018

Vai dar tudo certo.


Resultado de imagem para revolver beatles                Estava em casa terminando meu almoço e o telefone toca com meu amigo Santanna pedindo uma simples ajuda. Uma carona. Estava com dor e precisava ir ao médico. Se eu estivesse disponível seria de grande ajuda.
                Dois meses se passaram e sua esposa me telefona no meio do dia, pedindo que eu fosse ao hospital visitar meu amigo porque ele estava muito mal. Três dias depois recebo a notícia de seu falecimento.
                Não vou entrar nos detalhes do processo que levou o querido Santanna ao término de seu tempo aqui no plano terrestre. Não sei se seria capaz de escrever algo tão duro. Três meses e meio se passaram e ainda sinto que ele vai aparecer, telefonar e soltar sua metralhadora enciclopédica com assuntos atrás de assuntos, conectando Beatles a Silvio Santos, passando por Genival Lacerda e Iggy Pop.
                Esse telefonema não vai acontecer.
                Quando cheguei ao hospital em que Santanna estava internado após idas e vindas, de fato ele jamais voltou a sua casa após aquela carona. Ao chegar sabia o que precisava ser feito e como seria difícil aquilo tudo. Como dizer adeus ao maior amigo que alguém poderia ter no mundo. E fazê-lo sem que ele soubesse o que eu estava fazendo.
                Até o último instante Santanna acreditou que sairia dali bem, passaria por um tempo se reestabelecendo, travaria uma luta dura contra o câncer e voltaríamos a passar horas e horas e horas conversando generalidades. Santanna foi o maior especialista em generalidades do mundo.
                Conheci-o em 1996. Eu com quinze anos e ele vinte. Um amigo em comum nos apresentou e três anos depois eu já visitava-o sozinho, invadindo sua coleção de CDs e biografias de roqueiros, com ênfase nos anos 1950, 1960 e tudo o que era relativo aos Beatles.
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                Rapidamente nos tornamos uma dupla. Escrevemos um Fanzine bimestral, apresentamos um programa na extinta e pirata rádio Onda Verde FM, criamos um programa no Youtube chamado Drops Rock que nunca deixou de fazer mesmo quando eu não tive mais tempo e/ou disposição, escrevemos um livro sobre rock que nunca publicamos, colaborávamos nos blogs um do outro, faltou ao meu casamento, foi à minha primeira formatura, fomos a dois shows do Ira!, tiramos cem no karaokê cantando have you ever seen the rain, estudamos inglês no finado CCAA do centro de Guarulhos, fundamos um cursinho comunitário, ajudamos a fundar outro, viajamos para lugares estranhos: Galeria do rock e Aparecida do Norte, nos afastamos um pouco quando comecei a estudar Letras e ele Rádio e TV, me convidou para ser padrinho de seu filho, brigava comigo e minha esposa quando não o convidávamos para os rolês, trabalhamos juntos na escola pública, fomos a três aniversários consecutivos dos Falcões Moto Clube de Guarulhos e vimos por três anos seguidos os mesmos shows. Nunca nos distanciamos de fato. Não lembro de ter ficado mais de um mês sem conversar com ele durante todo este tempo.
                Brigamos por diversos motivos, mas sempre o telefone disparava e sua voz com um grito de guerra reforçando o “A” do meu nome Maaaaaaaauro...
                Difícil resumir uma amizade assim.
                Quando um amigo tão amigo se vai, vai com ele uma porção de situações que jamais se repetirão. Conversas que nunca mais acontecerão. Segredos que deixam de fazer sentido. Saudosismo compartilhado por duas pessoas ainda é saudosismo, quando se fica sozinho lembrando de situações que aconteceram há dez, quinze, vinte anos algo deixa de ser bonito, passa a ser apenas triste.
                Não vou ser piegas. É muito bom lembrar do Santanna: cartunista, radialista, escritor, professor, fotógrafo, intelectual, astrólogo, fã número 1 dos Beatles (notem que é a terceira vez que cito Beatles nesta crônica (quarta porque acrescentei mais um nesta linha)). Como ainda dizia, é muito bom lembrar do Santanna, mas é muito ruim saber que aquela carona foi o último favor que me pediu, que não vou mais telefonar para ele no meio da tarde chamando-o para vir em casa tomar um café ou uma cerveja e conversar trivialidades: livros, filmes, desenho animado, rock, pop, TV, política, comportamento, tudo, conversávamos sobre tudo.
A quem estou enganando? Eram monólogos na maior parte do tempo e quem conhecia o Santanna sabe do que estou falando. Ele não parava de falar um instante. E se nunca aprendi a desenhar, escrever, criar trocadilhos, ser tão carismático, tentando imitá-lo aprendi a ser um pouco mais falastrão, tornei-me quem sou.  
                Perto dele eu era um mudo. Mas era muito bom estar em silêncio e aprender com quem sabia mais sobre muito e quase tudo, e com a humildade de falar que era eu o intelectual. Se há algo de intelectual em mim é porque ao ler seus textos, ver seus desenhos, ouvir seus discos e seus monólogos me deixei influenciar tanto pela figura do Fábio que devo muito do que sou a estes vinte e três anos de convivência.
                A última frase que me falou quando nos despedimos na UTI em que ele bem debilitado esperava o momento de poder voltar para o quarto, ou ser transferido para um outro hospital mais especializado foi: “Vai dar tudo certo!”
                Eu concordei e disse que tudo daria certo.
Três dias depois nossa amizade mudou de plano. No dia seguinte foi a coisa mais difícil pela qual passei na vida e também não quero me aprofundar sobre isso. E se escrevo sobre o Fábio é porque sempre que algo está apertando aqui dentro, escrever me ajuda a organizar as ideias, escrever me acalma, põe um pouco de ordem no caos.
Na manhã de seu funeral sua esposa perguntou-me qual canção dos Beatles ele mais gostava para o momento de sua despedida. Senti que aquele pedido era uma homenagem ao Fábio e o reconhecimento de sua esposa a minha grande amizade com seu marido.
Quando ouvi George Harrison cantando “Here comes the sun, it’s all right... it’s been a long cold lonely winter” tive a certeza de que o inverno pode e será muito frio. Solitário até. Mas tenho certeza de que o sol surgirá, enfim, o gelo derrete e o sorriso precisa voltar aos rostos.
Santanna acreditava em outros planos. Eu acreditava em Santanna.
“Vai dar tudo certo.”