segunda-feira, 4 de agosto de 2025

Machado de Assis, Machado de Assis e Machado de Assis

     Outro dia vi, num desses eventos literários promovidos com dinheiro público e pouco público, uma senhora emocionada falando de sua paixão por Machado de Assis. Tinha lágrimas nos olhos. Contava como sua mãe dizia que ele era o maior escritor do Brasil, como o considerava um exemplo de superação: "um homem negro, pobre, gago, epiléptico, que chegou ao topo". 

    A plateia aplaudia, eu inclusive. Mas, confesso, com uma dúvida entalada entre os dedos: será que ela leu alguma coisa do Machado? Ou era apenas uma emoção herdada, dessas que sentimos por tabela, como torcer por um time sem conhecer os jogadores, gostar de Elis Regina sem ouvir Águas de março?

    Não quero soar amargo, eu nunca quero (talvez queira, só um pouco). 

    É muito fácil gostar de escritores que a gente não lê. Machado, Clarice, Guimarães Rosa, Fernando Pessoa... são como santos de devoção doméstica. Com retratos emoldurados em camisetas, murais de escolas e discursos de formatura. Todos dizem que são geniais. E são mesmo. Mas a maior parte das pessoas que os exaltam nunca passou da segunda página de Memórias Póstumas, ou da Paixão segundo GH, ou ainda algum conto perdido do Sagarana...

    É como dizer amar feijoada, mas tirar a orelha, o pé e o rabo antes de servir.

    Outro dia fui numa escola vi uma exposição sobre o Lobato, o Monteiro. 

    Os alunos fizeram cartazes com trechos de suas obras, bonecos da Emília com olhos de botão, inclusive uma maquete do Sítio do Pica-Pau Amarelo. 

    A professora me falou com orgulho que todo ano faz aquilo. Perguntei, curioso, qual livro do Lobato tinham lido. Ela desviou os olhos, coçou a cabeça e disse que "na verdade, esse ano não deu tempo de ler nenhum... Mas os alunos pesquisaram muito e aprenderam muito durante a pesquisa".

    E é isso. Homenageamos escritores como quem homenageia tios que morreram antes de a gente nascer. Fala-se bem, respeitosamente, mas sem intimidade. Sem aquela leitura que arde, que provoca, que faz você querer fechar o livro no meio de uma frase só pra respirar.

    Há quem diz amar Clarice, mas nunca entendeu a coisa do ovo caindo da sacola no meio da rua. (Você que diz amar, sabe do que estou falando?).

    Gente que fala do “Dom Casmurro” como história de traição e não de paranoia. 

    Gente que acha que Guimarães Rosa é difícil demais, e cita o “...que seja eterno enquanto dure” como se fosse frase de efeito pra qualquer hora ou lugar.

    E não é má fé. É hábito. 

    Nos especializamos em valorizar a embalagem e ignorar o conteúdo. Preferimos o vídeo de dois minutos explicando o livro a encarar meia página da obra. Preferimos saber onde o autor nasceu, com quem casou, se gostava de cigarro ou de café, a nos envolver de verdade com o texto.

    Uma geração de colecionadores de capas.

    Mas a verdade é simples e dura: não adianta montar exposição sobre Machado de Assis, fazer filme com ator famoso, botar seu em escola, se ninguém lê Machado. Se ninguém sua para entender sua ironia, o cinismo escondido na pontuação, a frase que não termina porque começa a nos devorar.

    Machado não precisa de placa. Precisa de tempo. De silêncio. De leitor que tope o desafio de entender um narrador que mente.

    Quer homenagear um escritor? Leia. Nem precisa gostar. Só leia. E se não gostar, tente de novo. Às vezes o problema não é o autor. Às vezes o problema é que estamos tão acostumados com legendas de Instagram e mensagens de WhatsApp que esquecemos como é entrar devagar num texto que não grita, mas sussurra.

    O maior elogio que você pode fazer a um escritor não é dizer que ele é gênio. É abrir seu livro. Acordar mais cedo pra ler três páginas. Deixar o celular de lado enquanto Bento Santiago enlouquece.

    O resto: as frases de efeito, os murais na escola, a foto com a estátua no centro do Rio, este resto, é só decoração. Literatura, de verdade, não precisa de altar. Precisa de alguém que, no meio da correria, ainda ache que vale a pena sentar, abrir um livro e se perder. Mesmo que não entenda tudo. Porque, no fundo, é disso que se trata: não entender tudo, mas seguir lendo.

    Machado agradece. Silencioso, claro. Como quem sorri com os olhos por trás de um bigode finíssimo.

sexta-feira, 1 de agosto de 2025

Diretas, Magnitsky e fogueira moral

     Antigamente, a censura usava uniforme e batia à porta de madrugada. Hoje, vem por e-mail, com despacho eletrônico assinado por ministro do Supremo. 

    Trocamos o porrete pela liminar, o pau de arara pela suspensão de contas, o exílio pelo cancelamento judicial. Mudaram as ferramentas, mas o projeto é o mesmo: silenciar.

    No Brasil de 2025, o que se pretende chamar de democracia tem dificuldade para sustentar o próprio nome. 

    O Estado de Direito foi reduzido a um palco onde um só ator improvisa falas e distribui papéis: o herói, o vilão, o inimigo da pátria. 

    Alexandre de Moraes, uma espécie de Rasputin de toga, encarna o paradoxo: combate o "autoritarismo" com medidas autoritárias, reprime "discursos de ódio" com decisões de ódio à divergência, protege a Constituição ignorando as suas cláusulas pétreas.

    É o velho truque das ditaduras em qualquer lugar do mundo em qualquer período histórico: prender em nome da liberdade, censurar em nome da verdade, calar em nome da paz. 

    A ironia é que, nesta nova encenação, os antigos perseguidos tornaram-se cúmplices. E quem cantou "alegria, alegria" se cala — ou aplaude — diante de ordens judiciais que fecham bocas e plataformas. Os filhos da Tropicália dançam agora a valsa do conformismo institucional.

    "Ditadura nunca mais", gritaram nas Diretas Já. Mas parece que esqueceram de acrescentar: “inclusive a de toga”.

    É verdade que os tempos mudaram. O golpe não precisa de tanques como outrora, mas de termos técnicos: "desinformação", "intervenção excepcional", "proteção institucional". O inimigo é vago, o risco imenso, o prazo indeterminado. 

    E a exceção se torna regra, a regra uma relíquia.

    A sanção americana pela Lei Magnitsky contra Moraes não é um capricho de um governo estrangeiro. É um aviso — desses que só escutam os que ainda não perderam o senso crítico. 

    Remoções de conteúdo, perseguições a jornalistas, bloqueios de plataformas como a Rumble, detenções sem julgamento prévio. 

    Não se trata mais de combater crimes, mas de controlar narrativas.

    E quem ousa dizer o contrário sofre processos, censuras, bloqueios ou difamação. A crítica virou crime; a dúvida, evidência de culpa.

    Dizia-se que o Brasil não era para amadores. Hoje, talvez nem para profissionais. A democracia, uma senhora cansada de ser traída, transformou-se em adereço — uma palavra para discursos pomposos, uma fantasia para tribunais com mais vaidade que limite.

    Velhos, novos e novíssimos baianos, assim como tantos outros que um dia desafinaram para provocar o sistema, se afinam ao coro oficial. Alguns por medo, talvez, outros por conveniência, e alguns — os piores — por acreditar mesmo que existe liberdade em se calar diante do arbítrio, desde que o arbítrio use gravata, fale bonito e pague o dízimo estatal em verba pública direcionada a filmes que ninguém vai assistir, livros que ninguém vai ler, peças teatrais que falam do próprio umbigo e outros tantos projetos que não interessam a ninguém, mas que mantem a classe artística domesticada porque, enfim, é preciso produzir cultura e também é preciso pagar a fatura do cartão.

    O que restou da liberdade de expressão é um campo minado: qualquer passo em falso pode ser “antidemocrático”, “golpista”, “extremista”. 

    O direito de errar, de ser tolo, de falar bobagem, de pensar diferente — tudo isso foi jogado na fogueira moral dos justos autoproclamados. E o povo? O povo continua no ônibus, na frente das adegas, no caminho do culto, no batuque dos tambores, perto demais das capitais, longe demais das decisões sobre suas próprias vidas.

    O Brasil nunca teve muito apreço por liberdade. Preferimos o jeitinho ao debate, a autoridade ao argumento, o medo à responsabilidade. Agora, fingimos que a censura é uma vacina — quando, na verdade, é o vírus que lentamente paralisa a democracia por dentro.

    O que vem depois? Talvez o silêncio absoluto. A ausência de debate, de contradição, de ruído. Um país ordenado, limpo, domesticado. 

    Uma paz de cemitério.

    Mas há quem insista. Quem escreva, cante ou grite. Quem seja preso por isso. 

    Ainda há?

    E talvez, num futuro qualquer, redescubramos que liberdade não se dá — se conquista. E que um país onde só um lado pode falar é, por definição, doente.

    Até lá, seguimos. Alguns gritam, outros calam. E muitos fingem que não veem. 

    É mais fácil pôr o rabo entre as pernas e calar que as pernas em marcha e seguir.

   E como um velho compositor baiano me dizia:  

"Enquanto os homens exercem

Seus podres poderes

Motos e fuscas avançam

Os sinais vermelhos

E perdem os verdes

Somos uns boçais


Queria querer gritar

Setecentas mil vezes

Como são lindos

Como são lindos os burgueses

E os japoneses

Mas tudo é muito mais


Será que nunca faremos senão confirmar

A incompetência da América católica

Que sempre precisará de ridículos tiranos

Será, será, que será?

Que será, que será?

Será que esta minha estúpida retórica

Terá que soar, terá que se ouvir

Por mais zil anos


Enquanto os homens exercem

Seus podres poderes

Índios e padres e bichas

Negros e mulheres

E adolescentes

Fazem o carnaval


Queria querer cantar afinado com eles

Silenciar em respeito ao seu transe num êxtase

Ser indecente

Mas tudo é muito mau


Ou então cada paisano e cada capataz

Com sua burrice fará jorrar sangue demais

Nos pantanais, nas cidades

Caatingas e nos gerais


Será que apenas os hermetismos pascoais

E os tons, os mil tons

Seus sons e seus dons geniais

Nos salvam, nos salvarão

Dessas trevas e nada mais


Enquanto os homens exercem

Seus podres poderes

Morrer e matar de fome

De raiva e de sede

São tantas vezes

Gestos naturais


Eu quero aproximar o meu cantar vagabundo

Daqueles que velam pela alegria do mundo

Indo e mais fundo

Tins e bens e tais


Será que nunca faremos senão confirmar

Na incompetência da América católica

Que sempre precisará de ridículos tiranos

Será, será, que será?

Que será, que será?

Será que essa minha estúpida retórica

Terá que soar, terá que se ouvir

Por mais zil anos


Ou então cada paisano e cada capataz

Com sua burrice fará jorrar sangue demais

Nos pantanais, nas cidades

Caatingas e nos gerais


Será que apenas

Os hermetismos pascoais

E os tons, os mil tons

Seus sons e seus dons geniais

Nos salvam, nos salvarão

Dessas trevas e nada mais


Enquanto os homens

Exercem seus podres poderes

Morrer e matar de fome

De raiva e de sede

São tantas vezes

Gestos naturais


Eu quero aproximar

O meu cantar vagabundo

Daqueles que velam

Pela alegria do mundo

Indo mais fundo

Tins e bens e tais!

Indo mais fundo

Tins e bens e tais!

Indo mais fundo

Tins e bens e tais!"