terça-feira, 19 de agosto de 2025

Vírgula, urgência e talento.

     Hoje, juro, pensei em desistir. Pensei seriamente em jogar fora minhas cadernetas, apagar arquivos, fechar a conta de e-mail literária e me refugiar no silêncio de quem não escreve mais. Porque, convenhamos, que sentido tem continuar a vomitar palavras, quando lá fora existem IAs que escrevem melhor do que eu jamais sonhei? Elas constroem frases sem hesitação, costuram metáforas que eu passaria horas tentando tecer e, de quebra, entregam personagens mais humanos que muito humano que conheço.

    Fiquei pensando, então, que talvez meu destino fosse o sofá, a televisão e os livros alheios. Talvez fosse me tornar apenas leitor, espectador passivo, alguém que se contenta com a perfeição digital enquanto sua própria voz se perde no eco do nada. Imaginei: uma IA escrevendo sobre amores impossíveis, perdas irreparáveis, noites em que a alma sangra sem razão, e eu ali, me sentindo como um pintor diante de uma tela vazia, sem cor, sem pincel, sem mão.

    Passei a manhã inteira contemplando minhas tentativas falhas, aquelas frases que soam como gemidos de uma máquina quebrada. A caneta parecia pesar na minha mão, como se fosse feita de chumbo, e cada palavra que saía era um lamento tímido diante da genialidade fria de um algoritmo. Pensei em entregar-me à mediocridade confortável: ler clássicos, repetir fórmulas prontas, evitar a dor de escrever mal. Afinal, a literatura sempre exige dor, e as IAs não conhecem dor. Elas não dormem em noites inquietas, não têm café frio, não choram sozinhas no banheiro ao perceberem que algo precioso escapa pelas mãos.

    Mas então algo estranho aconteceu. Um vento passou pela janela, trazendo cheiro de terra molhada e de livros antigos. Fechei os olhos e lembrei da primeira vez que escrevi: palavras rabiscadas em uma folha de caderno, frases tortas, com erros que fariam qualquer corretor digital rir. Eu tinha apenas dez anos, mas já sentia a urgência de dizer algo que ninguém me ensinou a dizer. Era minha voz, bruta e cheia de falhas, mas minha.

    E foi aí que percebi: a escrita não é apenas talento. Talento pode ser capturado, medido, replicado. Mas o que ninguém, jamais, poderá capturar, é o que escapa do controle, o que pulsa dentro de cada letra que escrevo. É a minha alma, meu caos, minha dúvida que se recusa a ser organizada em parágrafos perfeitos. É a minha risada nervosa diante do papel em branco, a minha ansiedade ao escolher uma vírgula, o meu prazer mórbido em ver a frase torta funcionar, de algum modo, como música.

    As IAs podem escrever melhor, podem impressionar, podem até enganar leitores incautos. Mas não podem sentir. Não podem tropeçar na vida e transformar esse tropeço em história. Não podem se apaixonar, se desesperar, se levantar no meio da noite para escrever sobre algo que dói demais para ser esquecido. Minha literatura é o lugar onde guardo minhas contradições, minhas falhas, meus excessos; é o meu laboratório secreto, minha resistência silenciosa.

sexta-feira, 15 de agosto de 2025

Irã, Marx e um país tropical

 A Revolução Islâmica do Irã é uma daquelas histórias que provam que o diabo gosta de se vestir de santo. Em 1979, milhões foram às ruas para derrubar o xá Reza Pahlavi, convencidos de que estavam abrindo a porta da liberdade. Abriram, mas quem entrou não foi a liberdade — foi o aiatolá, trazendo na bagagem a censura, a polícia religiosa e um manual de como transformar o país numa prisão com tapete persa.

As mulheres, que antes podiam estudar, trabalhar e se vestir como bem entendessem, foram obrigadas a usar a burca — não como roupa, mas como uniforme de submissão. Não era tecido: era corrente. A opressão não ficou só na roupa. Veio junto a perseguição estatal, onde falar errado significava sumir da noite para o dia, e, pior, a delação partia muitas vezes do próprio vizinho. O regime conseguiu terceirizar a tirania: cidadãos denunciando cidadãos, irmãos traindo irmãos, tudo em nome da “verdade” oficial.

No Brasil, o roteiro foi menos dramático, mas igualmente perverso. Não tivemos clérigos, mas tivemos sindicalistas com vocação para papa vermelho. No lugar de mesquitas, sindicatos; no lugar de versículos, discursos de palanque. Luís Inácio não usa turbante, mas se comporta como aiatolá tropical: infalível, intocável, sempre cercado de discípulos prontos a beijar-lhe o anel — ou a mão que assina o próximo decreto.

Aqui, a burca não cobre o corpo, mas a mente. É a censura que se veste de “regulação da mídia”, é a autocensura ensinada nas salas de aula por professores que confundem educação com catequese ideológica. No Irã, o silêncio é imposto pela polícia moral; no Brasil, é imposto por influencers, jornalistas militantes e acadêmicos que transformaram a universidade num mosteiro marxista, onde heresia é pensar diferente.

O marxismo, como o islamismo radical, é uma religião disfarçada de política. Tem seus livros sagrados (O Capital é o Alcorão vermelho), seus profetas (Marx, Lenin, Gramsci) e sua própria versão de paraíso, sempre prometido e nunca entregue. Não promete céu, mas garante o inferno para quem ousar duvidar.

No Irã, as mulheres escondem o rosto para sobreviver; no Brasil, as pessoas escondem opiniões para não serem linchadas virtualmente, demitidas, processadas. Lá, a denúncia é feita ao mulá; aqui, ao tribunal das redes sociais, ao Ministério Público, ou a qualquer blogueiro com fome de like e fidelidade partidária.

No fim, o mecanismo é idêntico: criar medo. Medo de falar, de pensar, de respirar sem pedir permissão. E o medo é a ferramenta preferida de todo tirano — seja ele um clérigo com barba longa ou um ex-metalúrgico com fome de eternidade no poder.

O Irã dos aiatolás e o Brasil dos petistas parecem histórias diferentes, mas têm a mesma moral. Não importa se a cela é feita de pedra ou de hashtags; se a mordaça é de pano ou de medo. O final é sempre o mesmo: uma nação inteira ajoelhada, olhando para o chão, enquanto os donos do poder escrevem a última página — e assinam com sangue.

segunda-feira, 4 de agosto de 2025

Machado de Assis, Machado de Assis e Machado de Assis

     Outro dia vi, num desses eventos literários promovidos com dinheiro público e pouco público, uma senhora emocionada falando de sua paixão por Machado de Assis. Tinha lágrimas nos olhos. Contava como sua mãe dizia que ele era o maior escritor do Brasil, como o considerava um exemplo de superação: "um homem negro, pobre, gago, epiléptico, que chegou ao topo". 

    A plateia aplaudia, eu inclusive. Mas, confesso, com uma dúvida entalada entre os dedos: será que ela leu alguma coisa do Machado? Ou era apenas uma emoção herdada, dessas que sentimos por tabela, como torcer por um time sem conhecer os jogadores, gostar de Elis Regina sem ouvir Águas de março?

    Não quero soar amargo, eu nunca quero (talvez queira, só um pouco). 

    É muito fácil gostar de escritores que a gente não lê. Machado, Clarice, Guimarães Rosa, Fernando Pessoa... são como santos de devoção doméstica. Com retratos emoldurados em camisetas, murais de escolas e discursos de formatura. Todos dizem que são geniais. E são mesmo. Mas a maior parte das pessoas que os exaltam nunca passou da segunda página de Memórias Póstumas, ou da Paixão segundo GH, ou ainda algum conto perdido do Sagarana...

    É como dizer amar feijoada, mas tirar a orelha, o pé e o rabo antes de servir.

    Outro dia fui numa escola vi uma exposição sobre o Lobato, o Monteiro. 

    Os alunos fizeram cartazes com trechos de suas obras, bonecos da Emília com olhos de botão, inclusive uma maquete do Sítio do Pica-Pau Amarelo. 

    A professora me falou com orgulho que todo ano faz aquilo. Perguntei, curioso, qual livro do Lobato tinham lido. Ela desviou os olhos, coçou a cabeça e disse que "na verdade, esse ano não deu tempo de ler nenhum... Mas os alunos pesquisaram muito e aprenderam muito durante a pesquisa".

    E é isso. Homenageamos escritores como quem homenageia tios que morreram antes de a gente nascer. Fala-se bem, respeitosamente, mas sem intimidade. Sem aquela leitura que arde, que provoca, que faz você querer fechar o livro no meio de uma frase só pra respirar.

    Há quem diz amar Clarice, mas nunca entendeu a coisa do ovo caindo da sacola no meio da rua. (Você que diz amar, sabe do que estou falando?).

    Gente que fala do “Dom Casmurro” como história de traição e não de paranoia. 

    Gente que acha que Guimarães Rosa é difícil demais, e cita o “...que seja eterno enquanto dure” como se fosse frase de efeito pra qualquer hora ou lugar.

    E não é má fé. É hábito. 

    Nos especializamos em valorizar a embalagem e ignorar o conteúdo. Preferimos o vídeo de dois minutos explicando o livro a encarar meia página da obra. Preferimos saber onde o autor nasceu, com quem casou, se gostava de cigarro ou de café, a nos envolver de verdade com o texto.

    Uma geração de colecionadores de capas.

    Mas a verdade é simples e dura: não adianta montar exposição sobre Machado de Assis, fazer filme com ator famoso, botar seu em escola, se ninguém lê Machado. Se ninguém sua para entender sua ironia, o cinismo escondido na pontuação, a frase que não termina porque começa a nos devorar.

    Machado não precisa de placa. Precisa de tempo. De silêncio. De leitor que tope o desafio de entender um narrador que mente.

    Quer homenagear um escritor? Leia. Nem precisa gostar. Só leia. E se não gostar, tente de novo. Às vezes o problema não é o autor. Às vezes o problema é que estamos tão acostumados com legendas de Instagram e mensagens de WhatsApp que esquecemos como é entrar devagar num texto que não grita, mas sussurra.

    O maior elogio que você pode fazer a um escritor não é dizer que ele é gênio. É abrir seu livro. Acordar mais cedo pra ler três páginas. Deixar o celular de lado enquanto Bento Santiago enlouquece.

    O resto: as frases de efeito, os murais na escola, a foto com a estátua no centro do Rio, este resto, é só decoração. Literatura, de verdade, não precisa de altar. Precisa de alguém que, no meio da correria, ainda ache que vale a pena sentar, abrir um livro e se perder. Mesmo que não entenda tudo. Porque, no fundo, é disso que se trata: não entender tudo, mas seguir lendo.

    Machado agradece. Silencioso, claro. Como quem sorri com os olhos por trás de um bigode finíssimo.

sexta-feira, 1 de agosto de 2025

Diretas, Magnitsky e fogueira moral

     Antigamente, a censura usava uniforme e batia à porta de madrugada. Hoje, vem por e-mail, com despacho eletrônico assinado por ministro do Supremo. 

    Trocamos o porrete pela liminar, o pau de arara pela suspensão de contas, o exílio pelo cancelamento judicial. Mudaram as ferramentas, mas o projeto é o mesmo: silenciar.

    No Brasil de 2025, o que se pretende chamar de democracia tem dificuldade para sustentar o próprio nome. 

    O Estado de Direito foi reduzido a um palco onde um só ator improvisa falas e distribui papéis: o herói, o vilão, o inimigo da pátria. 

    Alexandre de Moraes, uma espécie de Rasputin de toga, encarna o paradoxo: combate o "autoritarismo" com medidas autoritárias, reprime "discursos de ódio" com decisões de ódio à divergência, protege a Constituição ignorando as suas cláusulas pétreas.

    É o velho truque das ditaduras em qualquer lugar do mundo em qualquer período histórico: prender em nome da liberdade, censurar em nome da verdade, calar em nome da paz. 

    A ironia é que, nesta nova encenação, os antigos perseguidos tornaram-se cúmplices. E quem cantou "alegria, alegria" se cala — ou aplaude — diante de ordens judiciais que fecham bocas e plataformas. Os filhos da Tropicália dançam agora a valsa do conformismo institucional.

    "Ditadura nunca mais", gritaram nas Diretas Já. Mas parece que esqueceram de acrescentar: “inclusive a de toga”.

    É verdade que os tempos mudaram. O golpe não precisa de tanques como outrora, mas de termos técnicos: "desinformação", "intervenção excepcional", "proteção institucional". O inimigo é vago, o risco imenso, o prazo indeterminado. 

    E a exceção se torna regra, a regra uma relíquia.

    A sanção americana pela Lei Magnitsky contra Moraes não é um capricho de um governo estrangeiro. É um aviso — desses que só escutam os que ainda não perderam o senso crítico. 

    Remoções de conteúdo, perseguições a jornalistas, bloqueios de plataformas como a Rumble, detenções sem julgamento prévio. 

    Não se trata mais de combater crimes, mas de controlar narrativas.

    E quem ousa dizer o contrário sofre processos, censuras, bloqueios ou difamação. A crítica virou crime; a dúvida, evidência de culpa.

    Dizia-se que o Brasil não era para amadores. Hoje, talvez nem para profissionais. A democracia, uma senhora cansada de ser traída, transformou-se em adereço — uma palavra para discursos pomposos, uma fantasia para tribunais com mais vaidade que limite.

    Velhos, novos e novíssimos baianos, assim como tantos outros que um dia desafinaram para provocar o sistema, se afinam ao coro oficial. Alguns por medo, talvez, outros por conveniência, e alguns — os piores — por acreditar mesmo que existe liberdade em se calar diante do arbítrio, desde que o arbítrio use gravata, fale bonito e pague o dízimo estatal em verba pública direcionada a filmes que ninguém vai assistir, livros que ninguém vai ler, peças teatrais que falam do próprio umbigo e outros tantos projetos que não interessam a ninguém, mas que mantem a classe artística domesticada porque, enfim, é preciso produzir cultura e também é preciso pagar a fatura do cartão.

    O que restou da liberdade de expressão é um campo minado: qualquer passo em falso pode ser “antidemocrático”, “golpista”, “extremista”. 

    O direito de errar, de ser tolo, de falar bobagem, de pensar diferente — tudo isso foi jogado na fogueira moral dos justos autoproclamados. E o povo? O povo continua no ônibus, na frente das adegas, no caminho do culto, no batuque dos tambores, perto demais das capitais, longe demais das decisões sobre suas próprias vidas.

    O Brasil nunca teve muito apreço por liberdade. Preferimos o jeitinho ao debate, a autoridade ao argumento, o medo à responsabilidade. Agora, fingimos que a censura é uma vacina — quando, na verdade, é o vírus que lentamente paralisa a democracia por dentro.

    O que vem depois? Talvez o silêncio absoluto. A ausência de debate, de contradição, de ruído. Um país ordenado, limpo, domesticado. 

    Uma paz de cemitério.

    Mas há quem insista. Quem escreva, cante ou grite. Quem seja preso por isso. 

    Ainda há?

    E talvez, num futuro qualquer, redescubramos que liberdade não se dá — se conquista. E que um país onde só um lado pode falar é, por definição, doente.

    Até lá, seguimos. Alguns gritam, outros calam. E muitos fingem que não veem. 

    É mais fácil pôr o rabo entre as pernas e calar que as pernas em marcha e seguir.

   E como um velho compositor baiano me dizia:  

"Enquanto os homens exercem

Seus podres poderes

Motos e fuscas avançam

Os sinais vermelhos

E perdem os verdes

Somos uns boçais


Queria querer gritar

Setecentas mil vezes

Como são lindos

Como são lindos os burgueses

E os japoneses

Mas tudo é muito mais


Será que nunca faremos senão confirmar

A incompetência da América católica

Que sempre precisará de ridículos tiranos

Será, será, que será?

Que será, que será?

Será que esta minha estúpida retórica

Terá que soar, terá que se ouvir

Por mais zil anos


Enquanto os homens exercem

Seus podres poderes

Índios e padres e bichas

Negros e mulheres

E adolescentes

Fazem o carnaval


Queria querer cantar afinado com eles

Silenciar em respeito ao seu transe num êxtase

Ser indecente

Mas tudo é muito mau


Ou então cada paisano e cada capataz

Com sua burrice fará jorrar sangue demais

Nos pantanais, nas cidades

Caatingas e nos gerais


Será que apenas os hermetismos pascoais

E os tons, os mil tons

Seus sons e seus dons geniais

Nos salvam, nos salvarão

Dessas trevas e nada mais


Enquanto os homens exercem

Seus podres poderes

Morrer e matar de fome

De raiva e de sede

São tantas vezes

Gestos naturais


Eu quero aproximar o meu cantar vagabundo

Daqueles que velam pela alegria do mundo

Indo e mais fundo

Tins e bens e tais


Será que nunca faremos senão confirmar

Na incompetência da América católica

Que sempre precisará de ridículos tiranos

Será, será, que será?

Que será, que será?

Será que essa minha estúpida retórica

Terá que soar, terá que se ouvir

Por mais zil anos


Ou então cada paisano e cada capataz

Com sua burrice fará jorrar sangue demais

Nos pantanais, nas cidades

Caatingas e nos gerais


Será que apenas

Os hermetismos pascoais

E os tons, os mil tons

Seus sons e seus dons geniais

Nos salvam, nos salvarão

Dessas trevas e nada mais


Enquanto os homens

Exercem seus podres poderes

Morrer e matar de fome

De raiva e de sede

São tantas vezes

Gestos naturais


Eu quero aproximar

O meu cantar vagabundo

Daqueles que velam

Pela alegria do mundo

Indo mais fundo

Tins e bens e tais!

Indo mais fundo

Tins e bens e tais!

Indo mais fundo

Tins e bens e tais!"