terça-feira, 24 de junho de 2025

Dom Quixote, Matemática e CPF

 Era uma vez um país onde as aulas de literatura sumiram da sala como quem esquece um guarda-chuva no banco do ônibus: de repente, e só se dá conta quando a tempestade cai.

O Brasil fala em inteligência artificial, ensino por competências, pensamento computacional, e esquece que antes de pensar, é preciso sentir. E antes de sentir, é preciso saber nomear o que se sente. E isso, meu caro, só a literatura ensina. Matemática te diz quantas lágrimas caíram. Literatura te diz por que elas caíram. E às vezes até te faz gostar da chuva.

As escolas, coitadas, andam ensinando leitura como quem ensina a montar móveis da IKEA: siga o passo a passo, encaixe aqui, use a chave Allen e não questione nada. Resultado? Um país que lê a bula como se fosse poesia, interpreta ironia como ofensa, e acha que o narrador de um conto é o autor em carne, osso e CPF.

As redes sociais viraram ringue de gladiadores analfabetos emocionais. Cada post, uma faísca. Cada comentário, um incêndio. Mas ninguém sabe distinguir se o texto é informativo, opinativo, poético ou apenas uma piada ruim. Vivemos uma era em que as pessoas leem um meme como se fosse um mandamento. E discutem como se estivessem num tribunal divino. Faltou aula. Faltou leitura. Faltou Machado de Assis explicando que até o defunto pode narrar. Faltou Capitu e seus olhos de ressaca para ensinar que nem tudo é o que parece. Faltou o vilão de Dostoiévski dizendo que o mal também tem suas razões. Faltou ambiguidade.

É que a literatura sempre teve essa gentileza brutal de nos apresentar o outro lado — o lado que a gente não queria ouvir, mas precisava. Em um romance, o antagonista tem tempo de fala. No poema, a angústia vira beleza. No conto, o absurdo ganha endereço.

Mas nas escolas de hoje, quando há “leitura”, é uma leitura escoltada, fiscalizada, higienizada — como quem cheira o leite para ver se ainda está bom antes de oferecer a uma criança. Lê-se por obrigação, nunca por paixão. Os professores, os poucos que ainda resistem com alma de Dom Quixote, pedem: “leiam esse trecho”. E os alunos, com olhos de quem olha brócolis, perguntam: “vai cair na prova?”

Aí está o problema. Pedir que leiam é o mesmo que mandar comer brócolis porque “faz bem”. Ninguém se apaixona por um vegetal. Mas muita gente lembra da primeira vez que cozinhou com a avó. Porque o que falta é isso: cozinhar junto. Ler junto. Criar momentos onde a leitura seja partilhada como pão quente na mesa. Onde a literatura seja a conversa, não a obrigação. Onde o pai leia com a filha, o professor com a turma, o amigo com o amigo.

Porque a gente não aprende a ler sozinho. Aprendemos ouvindo vozes. A do narrador, a da mãe, a do professor, a da personagem que pensa diferente de nós. E é ouvindo vozes que, talvez um dia, aprendamos a não gritar tanto.

Literatura é o único lugar onde o contraditório tem microfone. E talvez seja por isso que tanta gente anda lendo errado: porque nunca aprendeu que ouvir o outro é parte do texto.

Se é pra salvar alguma coisa neste mundo, que se salve pelo menos uma roda de leitura. Uma história contada em voz alta. Uma página lida de mãos dadas. Um momento em que o silêncio entre as palavras diga tudo. E que, pela primeira vez em muito tempo, alguém sinta vontade de continuar lendo — não porque é saudável. Mas porque é humano.

domingo, 22 de junho de 2025

Vaticano, feijão com arroz e DNA

 Outro dia me dei conta, entre um cafezinho morno e um feriado no calendário, que o Brasil é uma espécie de convento tropical de proporções continentais. Um país inteiro de chinelo no pé, água de coco na mão e um calendário que mais parece o missal romano – só que com menos culpa e mais churrasco. Não é por acaso. Nenhum outro povo no planeta celebra tanto santo quanto o brasileiro. Nem mesmo os italianos, coitados, que ainda tentam manter o Vaticano funcionando enquanto o Brasil fecha banco na quinta-feira por causa de um corpo que subiu aos céus.

Sim, caro leitor, mais um feriado. E como todo bom brasileiro que se preza, eu fui conferir o motivo: Corpus Christi. O nome, em latim, já denuncia que o motivo é sério. Mas no fundo a celebração mesmo é de uma nação que aprendeu a transformar Deus em folga remunerada.

É bonito de ver. O feriado religioso aqui não é uma pausa, é um projeto civilizatório. Temos santos padroeiros de bairros, cidades, estados inteiros. Tem São Paulo, Santa Catarina, Espírito Santo. Cidades chamadas Nossa Senhora das Dores, Bom Jesus da Lapa, São Sebastião do Paraíso. E se faltar um padroeiro no CEP, a gente inventa. A devoção por aqui é como o feijão com arroz: se não tem no prato, falta sabor.

O brasileiro é um sujeito que pode até esquecer a tabuada, mas sabe de cor quando é Finados, Nossa Senhora Aparecida, Imaculada Conceição e Sexta-feira Santa. A gente não celebra datas. A gente as canoniza.

E veja bem: até os que juram ter saído da Igreja continuam presos ao calendário dela. O evangélico do bairro, por exemplo, critica o catolicismo romano com veemência, mas está lá, de Bíblia em punho, anunciando um culto de cura e libertação justo no dia de São Jorge. “Foi coincidência”, ele dirá. Mas ninguém marca nada no Brasil sem antes consultar a liturgia. É um tipo de DNA espiritual, como quem já nasce com um terço amarrado no umbigo.

É tão estrutural que até os sobrenomes carregam o peso da fé. Tem Ferreira da Cruz, Batista dos Anjos, Oliveira do Carmo. Gente que pode não ir mais à missa, mas traz no nome a certidão de batismo da própria identidade. E os que acham que escaparam da religião porque não têm fé, tampouco sobrenome litúrgico, ainda assim moram na Rua São João ou pegam a condução para o bairro Santo Amaro, e sonham com as praias de Santa Cruz Cabrália, como se uma geografia laica fosse possível num país onde até o mapa é um relicário.

É preciso entender que o Brasil não é católico por escolha. É católico por alicerce. O cimento que gruda o concreto ao barro deste país tem cheiro de incenso e ecoa cânticos gregorianos.

Mesmo os ritos evangélicos, neopentecostais, reformados, progressistas ou retrógrados, são filhos rebeldes da velha mãe Igreja. Trocaram os santos por pastores, a hóstia pelo copo de suco, o confessionário pela fogueira santa, mas mantiveram a teatralidade barroca, a culpa difusa, a obsessão com o diabo e a paixão pela cruz. Aqui, mesmo quem cospe na cruz o faz em nome dela.

Talvez, no fim, o feriado religioso seja a maneira que encontramos de continuar rezando sem dobrar os joelhos. Não ajoelhamos, mas fechamos o banco. Não oramos em latim, mas abrimos a cerveja. Não sabemos mais fazer o sinal da cruz, mas agradecemos pelo descanso. E ao fazê-lo, reafirmamos, sem perceber, que o Brasil, antes de ser laico, é devoto. Devoto da folga, da fé e do feriado.

E que Deus nos conceda mais um. Amém.

terça-feira, 17 de junho de 2025

Coesão, Chico Buarque e mal-fodidos.

 Uma das definições mais importantes da gramática atende pelo nome de coesão textual. Em termos simples? É dizer mais com menos. Fácil de entender — poucos exemplos bastam. E não há um único aluno neste planeta que termine a Educação Básica sem ouvir falar disso. Acontece em todas as línguas, em qualquer canto do mundo.

O problema é que o Brasil — esse mesmo onde a gente vive — não parece ligar muito pra formação básica. No discurso, sim. Na prática, não. Ir à escola, seja ela pública, privada ou confessional, não garante aprendizado. Nenhuma delas. A educação brasileira já nasce descuidada e ainda apanha de ignorantes sem leitura, sem base, sem vergonha na cara. Um dia, ainda escrevo a crônica que vivo me prometendo sobre essa geração que não lê, aprende com professores que também não leram, formados por uma leva anterior que lia menos ainda. Um ciclo vicioso de desinformação.

Estou me perdendo? Talvez. Mas como diria Clarice — a Lispector, claro: “Se estou confusa, não me importo. Eu me entendo.”

De todo modo, quero ser claro sobre a tal coesão e por que estou escrevendo sobre ela.

O fato de estúpidos ensinarem outros estúpidos, seguindo orientações igualmente estúpidas sem consultar fontes... deixo pra outra hora. Agora é aula de língua portuguesa. Básica. Bem básica.

Coesão. Vamos lá.

É usar menos palavras — às vezes até menos letras — pra dizer mais. Exemplo? O uso do masculino como forma de coesão. Não como instrumento do patriarcado, mas como estrutura da língua. “Os humanos habitam a Terra.” Inclui mulheres? Sim. E se eu disser “as humanas”? Aí excluo os homens. O masculino, no plural ou no singular, também serve como forma neutra.

Nos anos 80, Sarney — presidente na época — começava seus discursos com “brasileiros e brasileiras”. Não é exatamente erro. É falta de coesão. Numa redação do ENEM, por exemplo, perderia ponto. Bastava “brasileiros” pra incluir todos. Se quiser soar neutro de verdade, diga “pessoas do Brasil”. Simples.

Esse jogo entre estilo, adaptação, metáfora, é da ordem da estilística. É o que faço aqui: modular uma voz humana, escrever como quem conversa.

Quer mais exemplo de falta de coesão? Os eufemismos que contornam palavras por preconceito ou desculpas pseudo-históricas. Em vez de uma palavra, damos voltas e mais voltas pra não ofender, e o texto vira um emaranhado insosso. Não se pode mais dizer “puta”, “prostituta” ou “meretriz”. Preferem “garota de programa”, “mina do job”, “mulher da noite”. Moralismo disfarçado — tanto da esquerda quanto da direita.

Lembro das personagens ultrarreligiosas de Dias Gomes. Hoje, lembram certos militantes de esquerda: feministas, ativistas, defensores de qualquer causa. Todos com medo das palavras. Todos temendo ofender seu deus — seja ele o catolicismo, o marxismo ou o feminismo. Aliás, seria o marxismo e o feminismo brasileiros versões seculares do catolicismo nacional? Perguntar não ofende.

Não se diz mais “prostituição”, mas “modelo de book rosa”.

“Estupro” virou “violência sexual”.

“Pedofilia”? Agora é “abuso infantil”.

E “gay, lésbica, bissexual”? Não. Agora é LGBTQIA+. E, até onde estudei, parava aí.

E tem mais: aquelas trocas que não dizem absolutamente nada. Chamam de politicamente corretas, mas só deformam, distorcem, corrompem.

“Ladrão”? Agora é “suspeito”.

“Assassino”? Também não. “Indivíduo investigado”.

Já vi num telejornal: “Há indícios de que fulano seja suspeito de cometer o crime.” Juro. Assim mesmo. Vídeo do crime, flagrante, e o sujeito é... suspeito.

Se fosse eu, diria direto: “Fulano é o suspeito.” Ou: “Há indícios que levantam suspeita sobre fulano.” Menos palavras, mais clareza. Drummond já dizia — e quem ousa discordar dele? —: escrever é cortar palavras.

Um dia volto só pra falar do politicamente correto. Porque, pelo visto, ninguém mais quer ser entendido. É um bando de gente burra — sim, burra, não “mal informada” — dando aula, vendendo livro, vídeo, curso. E dar voltas na língua é típico de tempos autoritários.

Chico Buarque cantou:

“Hoje você é quem manda
Falou, tá falado
Não tem discussão, não...”

E disse assim porque não podia dizer o óbvio: “Tem censura. Se a gente falar, a gente morre.”

Quando começamos a substituir palavras por medo, estamos sendo reprimidos. Em casa, chama-se educação: não se diz “puta” no jantar. Na escola, formação: não se chama o professor de “mano”. No Congresso, protocolo: trata-se o colega por “Vossa Excelência”. Ok.

Mas no dia a dia, se sou obrigado a dar voltas pra seguir cartilhas escritas por analfabetos de Ciências Sociais, então eu chamo do que é: autoritarismo, censura, ditadura, o nome que quiser.

Viram? Usei “analfabetos de Ciências Sociais” direto. Não fui prolixo dizendo “estudantes funcionalmente analfabetos de cursos de humanas, prioritariamente Ciências Sociais, não exclusivamente”. Fui direto.

Porque dar nome aos bois é papel de quem escreve com clareza. E esses bois — malformados, malfodidos, mal-amados — não entendem nem a própria existência. Falta sexo pra essa gente.

Em vez de dizer “dor de corno”, dizem “situação delicada”.

Em vez de “desempregado”, dizem “em transição de carreira”.

Em vez de “sou gay”, dizem “estou me descobrindo”.

Cansa.

E, confesso, cansei por hoje. Volto a esse assunto depois.

Até!