Primeiramente literatura não é a coisa mais
importante do mundo. Não vou ser capaz de enumerar quais sejam, mas posso
garantir que comida, saúde, moradia e paz estão com certeza no topo de qualquer
lista. Ou deveriam estar caso fôssemos contar o que realmente importa para uma
vida com um mínimo de dignidade: morar com segurança e fazer três refeições diárias
não deveria (e não deve) ser negado a ninguém. Dito isto sigo a outro
parágrafo.
A
literatura nasceu com as pessoas de barriga cheia.
Gosto de imaginar que depois de
uma caçada, lá quando já tinham criado a fala, dominado o fogo e inventado a
roda, os homens das cavernas com a barriga entupida de mamute começaram a
contar um para o outro o que tinha sido feito pra que aquele jantar estivesse
na mesa (vamos dizer que já houvesse algo que poderia ser chamado de mesa) pois
bem: o cara de barba até o peito disse que aquele mamute estava bom, mas não
era nada se comparado com aquele que eles tinham caçado há duas luas atrás, ou
àquele outro que ele havia caçado sozinho, mas que todos sabiam que ele apenas
havia pego os restos deixados por algum animal, este sim o verdadeiro caçador
do dito mamute iguaria dos deuses.
O
outro homem das cavernas de barba até o umbigo disse que seu pai quando ele
ainda era uma criancinha havia caçado um mamute que tinha asas e que o caçou
montado nas costas de uma águia ainda maior que o extinto descendente dos
nossos elefantes. Pois bem, surgia assim a necessidade do homem de passar suas
experiências e no meio do caminho inventar um monte de mentiras.
Essas mentiras são conhecidas
hoje com o nome de ficção e ao longo dos séculos a forma como eram contadas foi
se alterando junto com o modo de vida das pessoas: suas crenças, o trabalho, o
ócio, fome, fartura.
Não apenas o modo como também os
temas foram se modificando, se solidificando, ruindo, desaparecendo, sendo
retomados ao longo do tempo. Algumas destas histórias deram origens a crenças,
outras ajudaram a destruir impérios.
Nunca duvide do poder da
literatura: a própria forma como imaginamos o inferno veio de um livro chamado
“A divina comédia” de Dante. Antes dessa obra o inferno era apenas uma ideia
abstrata. Dante teve a audácia de dar a cada pecado e pecador uma forma
visível, tudo criado por sua mente, e isso foi tão revolucionário pra época que
os padres quando tinham de descrever quais eram os tormentos eternos recorriam
a este livro que logo passou para o imaginário coletivo como o próprio real
inferno.
Mas não é este o tema deste
artigo, o título não é “como surgiu a literatura”, mas “por que estudá-la”.
Sei que dei uma volta enorme, mas
espere com um pouco de paciência que chego lá.
O que fez o homem das cavernas
inventar histórias foi o mesmo que o fez desenhar nas paredes. (Devo admitir
que aqui cabe uma dose enorme de especulação, mas quero fazer ter sentido isso
tudo). Afinal me diga você por que alguém pinta a parede da própria casa e
coloca um quadro pendurado entre uma janela e um vaso de porcelana? Por que
você conta a história do seu primeiro beijo pros seus amigos quando volta
daquele encontro exagerando nos detalhes? (muitos deles mentirosos, mas que se
dane, como dizer que foi mentira sendo que apenas você sabe a história real)
Como no conto de Machado de
Assis “Noite de Almirante”, nele o personagem marinheiro Deolindo espera ter
uma noite de amor com a amada que deixou em terra após seis meses de espera.
Diz aos seus companheiros de bordo que terá uma noite espetacular, uma
verdadeira noite de almirante. Ao encontrar sua amada Genoveva descobre que foi
trocado e ao voltar ao barco em vez de contar sua frustrante experiência,
prefere mentir. Por que diria a verdade numa situação como essas?
Então.
A literatura é uma das formas de
expressão humana conhecidas como arte, assim como a pintura, arquitetura, escultura,
música, teatro. Assim podemos não fazer a pergunta envolvendo apenas a
literatura, mas envolvendo todas as artes. Por que se estuda arte?
Mais longe podemos ir. Podemos
perguntar: por que se produz arte?
Por que um rapaz no século XIII
decidiu escrever um poema com o eu lírico feminino e dizer que estava sofrendo
por seu amado que partira? Por que um inteligente esquisito de óculos inventou
um monte de heterônimos e deu a cada um uma personalidade e escreveu com a
personalidade de cada uma porção de poemas geniais? Por que as pessoas saem de
casa e gastam uma fortuna para assistirem no teatro a uma peça escrita por um
maluco que muitos dizem nem ter existido?
E por que estudar isso na
escola? Sério, por que estudar isso sendo que as coisas mais importantes do
mundo envolvem alimento, moradia e saúde? Não seria melhor voltar os esforços
da educação mundial para soluções para os problemas práticos da humanidade,
como saneamento básico?
Porque se seguirmos essa linha
de raciocínio já consigo ver onde chegaremos: enquanto a gente estuda
Romantismo na escola, “algo que não serve pra nada”, milhões de crianças morrem
abandonadas na África. Estudar Parnasianismo não vai ajudar a conseguir um
emprego melhor no futuro, simbolismo não enche o prato de ninguém, não existem
fábricas contratando poetas.
Também posso ouvir claramente os
ofendidos professores de Literatura dizendo que é preciso estudar os clássicos
(e eu concordo muito, afinal também sou professor de literatura), nós diremos
que lendo se aprende a escrever melhor, interioriza-se a gramática, amplia-se o
horizonte e um monte de frase pronta, frases com a marca do você tem de ler e
pronto acabou.
Mas convenhamos, isso não
convence mais ninguém: você pode ampliar muito seus horizontes lendo muita
coisa que não é literatura. Platão, o gigante da filosofia, dizia que
literatura era perda de tempo, pois se o mundo que vivemos não era o real e que
deveríamos buscar o mundo ideal, a literatura era a representação de um mundo
que nem sequer deveria existir, ou mais ou menos isso. Acho que estou ofendendo
a filosofia tentando citá-la, perdoem-me amigos estudantes e professores de
filosofia, mas não gosto de Platão quando ele não gosta de literatura. Vamos
mudar de parágrafo, por favor.
Pois bem, também é possível
estudar gramática sem literatura, basta para isto fazer o óbvio: estudar
gramática.
Mas quando eu penso nos motivos
que me levam a aceitar de peito aberto que a literatura deve ser ensinada na
escola penso na resposta dada por Paulo Leminski, um dos meus poetas favoritos
à pergunta a ele feita sobre o porquê de se fazer literatura, na verdade a
pergunta foi assim: “Leminski, pra que serve um poema?”
E a resposta foi esta: “Graças a
deus um poema não serve pra nada”.
E é por isso que amo o texto
literário. Porque até podemos expandir os horizontes lendo um livro e é certo
que o fazemos, também podemos aprender língua portuguesa e aprendemos, podemos
aprender a interpretar textos e muitas outras utilidades práticas que são
apenas subproduto do texto literário, porque na realidade o texto literário não
deve servir para definitivamente nada.
Mas calma meu querido professor
secundário, calma meu querido amigo amante de Drummond e Lispector. Também amo
o Pessoa na pessoa e a rosa no Rosa. Mas vamos lá, num mundo em que temos de
acordar por um motivo: descansar para trabalhar no dia seguinte. Trabalhar para
conseguir dinheiro. Conseguir dinheiro para pagar as contas. Para as contas
para seguir a rotina de dormir, acordar e sair para trabalhar. Tudo tem um
porquê e nesse mundo de utilidades em que tudo serve pra alguma coisa, a
literatura tem o mérito de nos humanizar, pois ela não serve pra nada.
Só os seres humanos fazem coisas
sem motivo, contam histórias, pintam quadros, compõem canções, penduram um
quadro na parede, fazem sexo. Sim. Sexo. O ser humano transa pra se relacionar,
gozar, amar, sentir prazer. O prazer nos torna únicos no mundo animal. O prazer
bem sentido não tem função além de um fim em si mesmo e é possível extrair
prazer do sexo, e esta é a frase mais óbvia que escrevi na minha vida. Mas
também é possível extrair prazer de coisas diferentes: uma piada, um bate papo
com um amigo super interessante, uma garrafa de coca cola num dia de sol, um
banho de mar, um livro, uma visita a um museu, um poema. Ou apenas com sexo (a
vida fica tão limitada assim).
Há pessoas que extraem prazer
vendo uma velhinha caindo da escada. De fato, uma das melhores maneiras de
conhecer o ser humano é descobrir o que lhe proporciona prazer: filmes de ação,
jogos de guerra, companhia de pessoas escandalosas, a dor alheia, a solidão, de
novo: um poema de Cecília Meireles “Canto porque o instante existe e minha vida
está completa, não sou alegre nem sou triste sou poeta...”
Nesse momento acho que você já
percebeu o ponto onde quero chegar, a literatura ajudou a humanizar os homens
das cavernas, ela (a literatura) e todas as demais formas de arte. Ela não é
mais importante que um prato cheio todo dia, mas sem ela um prato cheio pra
você e para o cãozinho na coleira seriam a mesma coisa. Se você pode pensar em
possibilidades para a sua vida futura e lembrando do seu passado tentar não
cair nos mesmos erros e em erros que você nem cometeu, mas sabe serem errados é
porque alguém escreveu sobre isso.
Já havia análise psicológica
antes de Freud em Dostoievski, por exemplo. E em Vinícius de Moraes aprendemos
um verdadeiro manual sobre relacionamento: a fidelidade, a separação, a mulher
que passa e nos desperta desejo, desejo que não é paixão, nem amor, apenas uma
vontade olhar, de continuar olhando a mulher que passa. E quanto à genial
máxima “filhos melhor não tê-los, mas se não tê-los, como sabe-los”?
O texto literário nos leva por
caminhos inexplorados pelo nosso eu, estradas percorridas por outras pessoas ao
redor do mundo. Algo que nos unifica enquanto pessoas humanas, a mesma dor, a
mesma agonia passada por mim também sentida por alguém há muitos séculos atrás,
quem sabe no futuro, distopias que se realizam, medos tomando forma.
Na literatura há o encontro
entre o possível e o imaginado. Quando se imagina se cria a possibilidade de
algo novo, nós evoluímos.
Aprendemos literatura porque
comer, dormir e nos reproduzirmos não basta. Temos que fazer o que os seres
humanos fazem: temos de transcender. E como diz Pound: “os poetas são as
antenas da raça”. Estar cercado por eles é estar próximo de um mundo que está
longe de ser o ideal, é estar em um mundo repleto de potencial, Júlio Verne
dando a volta ao mundo em 80 dias, a dez mil léguas submarinas, ou no olhar de
Capitu numa eterna dúvida... traiu ou não traiu? Descendo ao inferno com Dante,
num manicômio cercado por cegos na companhia de Saramago, nos confins dos cus
de judas com Antônio Lobo Antunes, isso mesmo, no mínimo, muito assunto pra
discutir, não ao redor da fogueira, talvez na sala de aula, sempre abertos a
novas possibilidades.
E buscando outras formas de
fazer e refazer a literatura, que no fundo não passa de um monte de mentiras
acumuladas nas prateleiras. Mas que nos revelam a identidade do humano
demasiado humano. Do nosso profundamente nosso.
Não teríamos chegado nem perto
de onde estamos sem literatura e não avançaremos sem ela. Verdadeira mola
mestra da humanidade, criamos agora e criaremos mais no futuro tudo o que foi,
é e será imaginado. O texto literário não é uma fábrica de sonhos, mas a melhor
maneira de inventar a realidade.
E para mais apontamentos do tipo
recomendo não livros teóricos como indicação, mas muita obra gostosa de ler,
imaginações férteis que sonharam o futuro que é o nosso presente:
-Eu, Robot, de Isaac Asimov
-Viagem ao centro da terra, de
Júlio Verne
-A jangada de pedra, de José
Saramago
-O cortiço, de Aluízio Azevedo
- O conde de Monte Cristo, de
Alexandre Dumas
-2001, uma odisseia no espaço,
de Arthur Clark
-1984, de George Orwell
-O senhor das moscas, de William
Golding
-A volta do parafuso, de Henry
James
-Em busca do tempo perdido, de
Marcel Proust (se você tiver coragem e espero muito que tenha)
E qualquer outro livro que nos
leve a descobrir novas possibilidades para a nossa vida tão precária aqui no
maravilhoso planeta terra.
Mauro Marcel
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