No começo não havia o tempo e nada para contar.
Depois havia o tempo e ninguém pra vê-lo passar.
Então surgiu quem o contasse, mas não sabiam contar.
Logo aprenderam a contar, mas preferiram vê-lo passar.
Depois que o tempo passou, ainda havia pessoas para o recordar.
Assim o tempo acabou e sem tempo, sem nada, sem ar.
Voltando ao início nonada,
sem ré, sem mi, sem lá.
Opinião, conto, crônica, fotografia, poesia, vídeos, humor, crítica e o que mais se passar por esta cabeça. Clique nos links e escute os textos em formato podcast. Autor: Mauro Marcel - escritor, poeta e professor.
quarta-feira, 22 de junho de 2016
sexta-feira, 17 de junho de 2016
Cara de professor
Qual é a cara de um professor? Ontem numa loja de sapatos a vendedora voltou com o meu pedido e ajoelhada, enquanto eu experimentava o segundo par metralhou espontaneamente “Você é professor.”
Eu sou professor.
De cara pensei que já havia dado aula para a moça em algum momento. Tantos alunos passados nessa vida docente que não seria de surpreender que alguém me escapasse, eu que sou péssimo com nomes, mas muito bom fisionomista.
“Sou professor sim, já te dei aula?”
“Não. Você tem cara de professor”
“Como assim cara de professor?”
Esta última frase não saiu, foi posta aqui como efeito retórico. E se não falei, pensei.
Por que eu teria cara de professor? Não que eu me ofenda, adorei ser reconhecido como profissional do ensino. Estudei muito pra conseguir saber e mais ainda pra saber passar o que sei. Já dou aula há mais de dez anos, mas minha cara não está envelhecida como a visão que o senso comum tem dos mestres. Nem corrigi a moça quando veio me oferecer um outro par que não o da vitrine, ensinando-a a correta utilização da ênclise.
O que faz um professor ter cara de professor?
A frase me martelava na saída da loja. Em frente ao espelho ao chegar em casa: óculos de grosso aro, camiseta de banda de rock, calça jeans surrada, tênis lona no pé, barba aparada, algum cabelo na cabeça. Eu sou um esteriótipo? Me transformei no que eu queria ser? Tanto assim que sou reconhecido na rua mesmo por quem nunca vi, nunca voltarei a ver.
Que medo. Já pensou aquela brincadeira em que você está no metrô e começa a imaginar como seria a vida das pessoas: profissão, solteiro, casado, filhos, idade, time, onde mora...
Será que comigo não haveria mistério algum?
Talvez algum pequeno, que me faça um ser mais profundo. Estou condenado a ser eu mesmo. Delícia de vida em que se é o que se quer ser ou que se luta e lutando se alcança o que se é.
O que faz de um professor um professor? É claro que não são os óculos. Assim como o que faz um ator não é o palco, nem o que faz um arquiteto não seria a régua.
Mas quais seriam os esteriótipos que fazem as tantas outras profissões?
Se eu tivesse aparecido na loja com um capacete de motoqueiro e colete de um motoclube, quem sabe me confundisse com alguém mais perigoso, seria preciso um jaleco e um estetoscópio pra ser confundido com um médico, uma camisa azul e ela perguntaria se eu era o cobrador ou o motorista. Talvez um pouco mais careca e com as mãos sujas de graxa me levasse a ser confundido com o mecânico de confiança do pai dela.
Não me levem a mal amigo leitor que paciente chegou até este ponto dacrônica. Minhas reflexões me levaram até este ponto, não por não gostar de parecer o professor que eu sou, mas justamente o contrário. Na ocasião em que entrei pela primeira vez numa sala de aula me confundiram com um aluno e se a juventude é uma coisa ótima, é difícil conseguir mostrar ao que veio com cara de moleque. A moça ajoelhada com um par de sapatos nas mãos me pós graduou. Assim como Paulo Autran tinha cara de ator, Washington Olliveto cara de publicitário, Roberto Justus cara de rico, eu tenho cara de professor.
Perdi a cara de eu, hoje sou algo mais.
Gol da Alemanha, IDH e pernas tortas
O Japão teve
um tsunami que invadiu as cidades costeiras corroborando para a destruição de
uma usina nuclear fazendo todo o povo daquelas ilhas repensar sua política
enérgica. Em tempo, o Japão é um dos países, se não o mais bem preparado para
tragédias naturais.
Os Estados
Unidos tiveram o seu 11 de setembro. O que veio depois os fez repensar seu modo
de vida, não somente eles, perdemos todos a inocência. Causa graça hoje
assistir aos filmes antigos em que as personagens dentro de aviões fumando, com
pistolas de choque, garfos, facas, garrafas. A guerra ao terror, o próprio
termo terrorista ganhando outro significado no século XXI.
O Brasil de
enormes tragédias sociais e quase nenhuma natural também passou por um processo
de luto e obrigatoriedade de ter de repensar sua própria identidade. Não
tivemos Pearl Harbor, não tivemos Hiroshima, nem terremotos como o Haiti ou o
Chile. Tivemos uma derrota avassaladora para o time de futebol da Alemanha.
Foi em 8 de
julho de 2014. O dia em que nos olhamos no espelho e não gostamos do que vimos.
Durante o
século XX foi-se construindo a imagem do Brasil como uma nação de vira latas,
um povo de segunda classe e que tinha apenas no futebol um motivo para
orgulhar-se e sentir-se tal qual as grandes nações do mundo. Não à toa houve
uma copa do mundo deste esporte no ano de 1950 e com uma pseudo grande vergonha
a seleção brasileira derrotada em pleno Maracanã, no silêncio então chamado Maracanazo.
Pois bem,
depois disso o país investiu neste esporte via meios de comunicação de massa:
rádio, televisão, jornais impresso. E ao longo da segunda metade do século XX viu-se
transformar aí sim na pátria de chuteiras: cinco vezes campeão do mundo, melhor
jogador de futebol da história, seleções maravilhosas como a de 1970 e
injustiçadas como a de 1982 e assim por diante.
Lembro da
minha infância, eu nunca gostei realmente de futebol, mas ele – o futebol – era
onipresente em todos os lugares que ia: nas paredes enfeitadas com as
fotografias dos times (aquela clássica com cinco abaixados e sei em pé),
troféus nas prateleiras de todos, a televisão preto e branco com times de um
lado e outro, bola de capotão no pé do meu irmão, o rádio com o Osmar Santos e
seu tirulirulá tiruliruli e muito mais. As crianças jogando futebol na rua o
dia inteiro, correndo livres o dia inteiro, pulando o muro das escolas para
jogar futebol na quadra o dia inteiro.
Uma vez li em
algum lugar que pra tornar-se bom em alguma coisa uma pessoa deveria fazer mil
vezes o mesmo movimento. Talvez por isso nunca tenha sido bom em esporte
coletivo algum, não ficava na rua com os outros meninos jogando bola (futebol é
tão onipresente em nosso cotidiano que mesmo havendo dezenas de esporte com
bola, chamamos o futebol de “jogar bola”).
Pois bem, na
última Copa do Mundo vencida pelo Brasil um jogador francês chamado Thierry
Henry deu uma declaração interessante. Então eu abro aspas “É claro que os
jogadores brasileiros são melhores. Eles jogam desde a infância. Na França as
crianças vão pra escola”. Fecho aspas.
A frase que
despertou alguma curiosidade, pouca revolta e alguns debates na época está no
cerne do problema do futebol no Brasil. Sabendo que este tema em qualquer lugar
do mundo é apenas esporte, mas que acabou por tomar uma relevância cultural
absurda – numa entrevista com o grande jogador brasileiro de basquete Oscar ele
alegou que o basquete não era o terceiro esporte do Brasil, “o futebol é o
primeiro, o segundo, o terceiro, o quarto, o quinto, o vôlei talvez o décimo,
sendo o basquete um pouco depois”.
No Brasil o
futebol não é apenas futebol. O jogador francês Henry percebeu isso de forma
muito simples. As crianças recebiam futebol na chupeta, mesmo fora da escola. É
um esporte fácil de ser praticado, mesmo sem material oficial: bola de meia,
chinelo como trave, no meio da rua, time com e sem camisa e diuturnamente o
esporte bretão é praticado.
Então o que
aconteceu de errado? Por que não somos mais os tops do esporte? Respondo:
mandamos as crianças para a escola. Simples assim.
Há muitos
problemas na estrutura esportiva nacional, é óbvio. Assim como há vários
problemas num país a se construir como o Brasil: educação, saúde, cultura, ética,
enfim, tudo o que transforma um território em país, um país em nação. Um lugar
que chamamos de lar.
Mas no futebol
havia um paradoxo: mesmo quando íamos mal na vida o Pelé fazia gols, o Galinho
de Quintino lançava seus petardos de falta, os joelhos quebrados do Fenômeno
pareciam consertar-se para concertar uma orquestra de gols e o que dizer do
Gênio das Pernas Tortas (mesmo com as pernas tortas), parecia milagre, parecia
que Deus era mesmo brasileiro.
Todos eles
adultos com pouca escola, sem curso universitário, oriundos do que o Brasil
tinha a oferecer de mais comum para seu povo: uma vida de privação e algum
futebol.
E como os
gênios do esporte acima citados repetiam os mesmos movimentos pela manhã, à
tarde e à noite. Não é absurdo se imaginar que aos dezessete anos já podiam
praticar o esporte de forma profissional e levar uns trocados pra casa. Por
vezes mais que uns trocados, criando assim a figura do jogador profissional arrimo
de família, ou do jogador de futebol milionário. Em todo caso com nenhuma ou
raríssima formação escolar – não raras são as histórias dos jogadores
profissionais narrando suas aventuras fugindo da aula em direção ao campo de
pelada.
Quando o
Brasil universalizou o ensino alcançou tardiamente um padrão de exigência
humanitário que deveria ter sido alcançado há muito tempo, foi no final dos
anos 1990, o governo celebrou todas as crianças estudando. E mais, no Brasil é
crime não enviar as crianças pra escola. Menos crianças nas ruas, menos
jogadores nos campos de pelada, mais alfabetização.
Com mais
alfabetização outros prazeres são descobertos, outros gostos, outras vontades.
O poder aquisitivo aumenta, vídeo games são comprados, as pessoas começam a
morar em condomínios, o número de filhos diminui então a preocupação com os
poucos que se tem aumenta.
E como
resultado um grande impacto social positivo causado pelo acesso à educação,
mesmo sem ser a tão sonhada educação de qualidade: aumento do PIB, elevação do Índice
de Desenvolvimento Humano (IDH), acesso à água encanada, esgoto, luz elétrica e
novamente menos crianças nas ruas jogando bola.
Poucos anos depois
os jogadores brasileiros não são mais os mesmos. Não há tanto treinamento auto
didático como outrora. As escolinhas de futebol não são para todos e não somos
uma cultura esportiva como os Estados Unidos que enviam seus melhores atletas para
jogarem nas universidades com bolsa de estudos, desenvolvendo assim uma ciranda
quantitativa e qualitativa incentivando as crianças desde pequenas a praticarem
o esporte dentro dos muros da escola.
Sem contar os
outros problemas da questão, como o assédio de empresários inescrupulosos às
crianças que em tenra idade já são enviadas pra jogar em países como Turquia,
China, Rússia, Japão e um ou outro sortudo Espanha, França, Inglaterra e outros
centros da prática do futebol. Alguns deles até têm a sorte de
profissionalizar-se e crescer nesta carreira, outros desaparecem sem ao menos
aparecerem de fato.
Mas é corrente
entre os que vivem deste esporte a consciência de que não deixam ter tempo de maturar
o talento, que mesmo sem estar pronto já assinam contratos e vão rendendo
alguns trocados para agentes inescrupulosos.
Seria cômica a
constatação de que hoje as crianças jogam muito mais futebol nos vídeo games
que na realidade.
Também que a
qualidade das escolinhas de futebol se assemelha à qualidade das escolas
regulares, isto é, péssima.
Resultado? Gol
da Alemanha.
No dia
seguinte ao fiasco da Copa de 2014 o brasileiro, atônito, não sabia pra onde
correr. Aquilo que tanto o orgulhava deixara de ser.
Como ter
orgulho de seu povo? Como se reinventar? Como se reconstruir?
Talvez
esquecendo que para se ter excelência em algo deva-se aplicar, estudar, inovar,
buscar, batalhar, perder noites de sono, usar horas de sua vida para tornar o
que se faz algo de valor.
No tempo do
Pelé se forjava o talento na pedra.
As coisas
mudaram. Ou reaprendemos a forjar novos talentos, ou descobrimos, numa epifania
louca, que nunca fomos, de fato, o país do futebol.
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