sexta-feira, 18 de março de 2016

Pequeno burguês alienado

           
            Eu queria muito ter ficado até mais tarde, mas meu filho tá doente preciso olhar por ele, médico está difícil e não sei bem como posso chegar até o fim da semana preocupado com tudo isso que vem acontecendo e o menino lá ardendo em febre, ao menos quando eu saí.
            Queria mesmo, desculpa não poder ir, sei que o metrô foi liberado e do outro lado alugaram ônibus, vão dizer que não há desculpas pra não ir, não me engajar, e que eu tenho que escolher um lado, sair do muro, não ser tão isento, sei que ao ficar assim fico conivente com tudo de ruim que pode acontecer, mas acontece que além do meu filho tem uma conta de luz que me incomoda, atrasada há três meses. Só espero o dia de chegar em casa e encontrar tudo no escuro, pode ser hoje, talvez amanhã. Não foi ontem porque pude, de casa, ver a avenida tomada de verde e amarelo, no outro dia tudo em vermelho. Tudo tão bonito, as pessoas politizadas participando do futuro da nação, construindo e fortalecendo a democracia, preocupadas com coisas realmente importantes, enquanto eu tenho que ficar preocupado com a conta pra vencer.
            Queria mesmo estar ao teu lado cantando o hino nacional, sempre li sobre o comício das diretas e é o que está acontecendo, não é mesmo? Mas minha esposa não acha que isso é tão importante, fica me enchendo quando o jornal acaba e eu quero mudar de canal pra assistir a outro jornal e ela quer a novela, eu não vou arranjar briga dentro de casa, ela escolhe o canal, eu já nem me importo. A Rede Globo pode estar me manipulando, na verdade nem fico vendo, o sono é tão pesado e a cabeça tão grande e girando, vários cortes na firma, quando será minha vez. Será que o Bonner vai falar que no meu setor estão demitindo, que o investimento não será feito, que os empresários reduziram o investimento, será que alguém vai me explicar como tudo isso funciona?
            Ocupar a avenida sempre foi meu sonho. Mas até lá a passagem é tão cara e de onde eu moro não tem bilhete único, teria que tirar do meu bolso, vai faltar pra condução e não posso nem pensar em faltar no emprego.
            Queria mesmo escolher um lado, ser um tucano ou um petralha, mas falam tão mal de ambos os lados, e ouvi um professor gritando um dia num bar que eu sou tão alienado, tomando minha cerveja, comendo um churrasco, jogando um bilhar enquanto o país pega fogo. E eu querendo pagar o rotativo do cartão de crédito, atrasado, o aluguel atrasado, o preço do mercado, o preço do gás, tudo o que faz minha vida girar, meus pequenos e grandes prazeres, o que faz da minha vida vida.
            Sinto, não posso ficar com você acampado no sereno, tenho filho pequeno, uma geladeira pra encher, família pra cuidar, uma mulher pra amar.
            Sei que tudo isso pra você pode parecer pequeno, só não quero ser um empecilho, ser da luta um pelego, um idiota, um veneno, quero muito um país melhor, possibilidades, habilidades, crescer ser gigante, ser grande; meu filho por mim idolatrado: engenheiro, médico, advogado. Quero muito e não posso escolher...
            Escolher estar na rua pintado, pedindo um país melhor. Insultando o Cunha, o Renan, o Temer, o Lula, a Dilma, o Mercadante. Gritar palavras de ordem, caminhar e cantar e seguir a canção... e sei que sou um idiota por pensar mais em mim enquanto todos tão inteligentes e engajados despojados de seus afazeres e se mobilizando pra cuidar da liberdade, evitando o golpe no golpe do golpe de um lado do outro e do avesso dos lados.
            Queria muito não ter tido filhos, não ter tido esposa, não ter sido eu. Queria muito ter sido a lenha dessa fogueira ideológica, de um lado ou de outro. Não importa. Queria muito ter sido mais do que sou, por ódio gritar, por amor. Mas não posso.

            Estou sendo apenas um pequeno burguês alienado. Um pelego, um nojento, um safado. Muito preocupado com meus pequenos probleminhas enquanto tudo se modifica, caindo ministro entrando secretários. Eu, um eterno desajeitado. Quero voltar pra casa e dormir, amanhã tudo estará assegurado, tudo novo, governo trocado. Tudo será diferente, tudo menos meu ônibus lotado.

2 comentários: