Nos anos 1980 ouvia minha mãe
falando que se eu não me comportasse me mandaria para a FEBEM, pra eu aprender
o que era bom, ser jogado e nunca mais saber onde ela estaria. Minha
progenitora tinha uma pedagogia toda particular e eu ficava sem saber o que era
de fato a tal FEBEM, bastava saber que era um lugar para onde enviavam as crianças
que desobedeciam aos pais.
Para
mim ficava o medo de ser jogado lá e nunca mais poder voltar pra casa, que
absurdo.
Neste
mesmo período eu observava meu pai chegando do trabalho com um jornal embaixo
dos braços, era leitor do extinto Notícias Populares, eu de observador de
imagens, passei em pouco tempo a verdadeiro leitor do periódico mais sangrento
da história do Brasil. Acontecia com o jornal o que ocorria com os livros em
geral, ninguém dava muita atenção. As pessoas não costumam ler, sei lá, não
costumavam. A publicação ficava sobre a mesa e eu, que aprendi a ler em
semanas, passava o olho pelas notícias de forma rápida e precisa: assassinatos,
polícia, bandidos, estupros, sequestros, inflação, fome, África...
Não
era uma leitura indicada para um garoto de cinco anos de idade, mas ninguém
nunca se importa com o que o filho do meio está fazendo, soube me aproveitar
disso a seu tempo, por isso hoje sei que a violência de agora não é maior nem
menor que a violência dos anos 1970, 80 ou 90. A nossa é uma violência
diferente, pior por suas peculiaridades.
Dentro
dela não se pode acusar os menores de serem os principais responsáveis. Absurdo
alguém crer que se reduziria a criminalidade com uma medida tão bisonha.
O
Brasil é o país das leis, há leis para todos os problemas. Foi no ano passado
que devido à demora ao atendimento a pacientes com câncer fez-se uma obrigando
os hospitais a atenderem ao doente em um prazo curto, se não me engano um mês
ou dois de espera (no máximo).
A lei é
a coisa mais fácil de ser feita, difícil é construir hospitais, formar
médicos, organizar remédios, tratamentos e tratar do problema.
O
câncer da vez é a maioridade.
Somos
vítimas de um processo de humanização que começou a ocorrer com a
redemocratização e ainda não terminou.
Antes
de continuar, quero deixar bem claro que mesmo sendo contra a redução da
maioridade sou a favor da punição aos menores infratores na medida do crime
cometido. Não sei como seria feito, os estudiosos que se virem para arranjar um
jeito. Também não é admissível que um assassino saia pela porta da frente após tal
ato. Acredito que neste debate temos um problemão, porque há algo de muito errado
quando todos estão certos.
Como
ia discorrendo, o problema é que sofremos a típica esquizofrenia dos que não
conseguem falar com o outro, ou antes, falamos com o outro mas ele não existe.
Falamos sozinhos, não sabemos quem somos, etc etc etc...
Até
ontem líamos nos livros didáticos que o Brasil era um país cordial, pelas
palavras de Sérgio Buarque de Holanda, uma leitura muito mal feita, diga-se de
passagem, algo que nos fez crer que éramos bonzinhos. (A leitura mal feita, não
o texto, excelente trabalho)
Era
Rousseau quem dizia que o homem nasce bom e é corrompido pela sociedade. Sendo
a sociedade formada por homens, quem foi o primeiro corruptor? Adão? Ih, acho
que foi a Eva...
A
nossa esquizofrenia nos fazia crer que éramos bons, quando na realidade nunca
beiramos tal. A nossa cordialidade tem a ver com tratar pelo primeiro nome,
diferente de outros países onde se passa anos tendo aula com um professor
chamando-o apenas de Senhor tal.
Conversamos na
porta de casa, abraçamos, pegamos, beijamos, mas assassinamos com automóvel,
arma de fogo, estupramos e não matamos, estupramos e matamos, sequestramos,
violentamos, vilipendiamos cadáver. Somos corruptos e corruptores.
Tive
um amigo que sofreu um acidente numa rodovia e faleceu. Antes de sua mãe tomar
conhecimento de sua morte já tinha alguém tentando utilizar seu cartão bancário
roubado do local do acidente. Somo muito cordiais.
O
país trabalhador com um carnaval que dura um mês.
Ninguém produz
nada em dia de jogo da seleção em copa do mundo.
O último a
acabar com a escravidão como política de estado.
Não somos tão
trabalhadores assim.
Mas
foi o que nos disseram: somos uma nação cordial de homens e mulheres
trabalhadores. Sem contar que fomos colonizados pelos degredados de Portugal,
toda a corja que por algum motivo não podia permanecer por lá aportava por
estas bandas.
É claro que as
melhores cabeças não vieram, se bem que reivindicar as melhores cabeças
portuguesas era um problema. A ligação íntima entre a igreja católica e a coroa
lusitana teve grande impacto lá e aqui. Também na Espanha, mas isso é assunto
para outro momento.
O
que estou falando é que não dá pra pensar em discutir violência de forma tão
rasa. Quer dizer que a culpa do crime organizado é do menor de idade? Então quem eram os menores que estavam no
Presídio da Ilha Grande na ocasião da formação do Comando Vermelho? O primeiro
grande grupo criminoso organizado do Brasil.
Quem
eram os menores que mataram policiais quando os presídios se rebelaram em São
Paulo?
Vou
falar uma coisa: a culpa da violência não é dos menores. Mas não aceito ver um
menor solto após ter cometido um crime, algo tem que ser feito.
Quer
saber por que discutimos os crimes dos menores hoje? Porque, ao contrário do
que muito idiota leitor de orelha de livro diz, a polícia está mais humanizada no
Brasil do que em outras épocas. Eu sei, eu vi, eu lembro, eu li.
Menores
apareciam mortos todos os finais de semana estampados nas manchetes de jornais.
A cara enorme deles com tarja preta cobrindo os olhos, os corpos baleados
misteriosamente. Os menores não iam para a FEBEM, este um lugar para uma
minoria que tinha a sorte de sobreviver. Para as crianças criminosas o que
havia era pena de morte. E morriam ostensivamente, qualquer pessoa com um pouco
mais de idade lembraria disso se não fôssemos bombardeados diariamente por
Datenas, Alckmins, PSDBs e seus interesses. Cada um com o seu.
Não
existe solução fácil para um problema complexo. Você acredita mesmo que o crime
diminuiria se um menor cumprisse pena como adulto, num presídio comum?
Deixa
eu falar mais, a nossa sociedade está buscando uma solução imediatista para o
problema da violência, já falei acima que o problema vem da própria fundação do
nosso povo. Somos assim, e nos recusamos falar sobre o assunto abertamente.
Tanto que nem chamamos nossas Guerras Civis, as várias que tivemos, por este
nome. Chamamos de: Revolta Farroupilha,
Revolução Constitucionalista de 32, Confederação do Equador, etc...
(Somos
cordiais e exterminamos quase toda a população do Paraguai na guerra que
travamos contra os mesmos. Cordiais sim, pacíficos? Nunca. A história da
mentira repetida tantas vezes até virar verdade.)
Nós
não chamamos as coisas pelo nome adequado, como queremos resolver a questão?
E
fala sério, no Brasil não é só o menor que não vai preso, ninguém vai preso. Já
leu sobre as estatísticas de quantos assassinatos são resolvidos? Quantos
ladrões estão presos se compararmos com os que nunca passaram um dia nas
prisões medievais brasileiras.
Nas
paragens tupiniquins só sendo muito azarado para ser preso. Ou isso, ou muito
pobre, porque rico com advogado tem como protelar sentenças até o fim da vida.
Estamos num Brasil de uma população carcerária enorme, curiosamente o mesmo
país que não prende os criminosos que deveria prender. Já pensou se os sessenta
mil assassinatos anuais tivessem como consequência a cadeia? Sabe o que
aconteceria?
Jamais
saberemos. Não serão presos. Este é o nosso país. Eles não estarão longe da
sociedade purgando seus crimes, estarão onde sempre estiveram, ao nosso lado,
nos ônibus, andando nas ruas, vizinhos, padeiros, pedreiros, jornalistas,
estudantes, professores, mecânicos, dentistas, vivendo a vida como se jamais
tivessem cometido mal algum.
O
que se pretende reduzindo a maioridade penal é ensinar ao jovem pela força.
Quer ensinar força? Cumpram-se os mandatos de prisão em aberto. Construam sim
mais presídios e enviem para lá todos os que cometeram erros de acordo com o
crime que cometeram não importa a classe social, o credo, a cor, a orientação
sexual.
Fazendo
isto, vamos mais longe, começando de baixo. Garantido acesso à educação a todos
e investindo em qualidade. Mas isso em todos os níveis, mas principalmente nas
séries iniciais onde se encontra o verdadeiro problema.
Depois
um investimento maciço em aberturas de cursos universitários e técnicos relevantes
para a sociedade: cursos de medicina, por exemplo. Cursos estes que não são
abertos ostensivamente pelo boicote feito pelos conselhos regionais impedidores
do processo, fazendo com que a profissão de médico seja rara para um salário
alto.
Uma
sociedade mais humana, com mais médicos, mais professores, mais advogados e até
mais policiais. Sim, os que pedem o fim da polícia são os mesmos que a chamam
após sofrerem algum mal.
Nós
caminhamos muito pouco. Demorou algum tempo para o menor perceber que podia
cometer crimes sem sofrer punições, quanto tempo você acha que levará até o
adulto perceber que com ele é o mesmo? Sim. Em certos aspectos a justiça é até
mais justa com o menor. Sabia que um menor tem de necessariamente ir “preso” ao
cometer um “crime”, chamado pelos envolvidos de ato infracional. Por outro lado
um adulto pode cometer o mesmo “ato” e responder em liberdade.
Peraí,
não estou defendendo ou atacando nada. Nem argumento nem contra argumento,
apenas especulando. E pra quê? Pra deixar mais claro que o problema é muito
complexo para ser resolvido com um grito e uma canetada.
Aliás,
sabia que a taxa de reincidência do crime da antiga FEBEM, hoje Fundação Casa é
de menos de 15%, enquanto a dos presídios é de mais de 50%? É pra lá que vão
mandar os menores?
Me
explica como isso reduziria a sensação de impunidade? Como isso reduziria a
violência? Como isso colaboraria para uma sociedade mais justa?
Repetindo:
minha opinião é de que cada um seja punido na medida dos seus crimes,
independentemente da idade. Para isso as
leis que estão por aí bastam. Sim, elas são suficientes. Vide o caso do
Champinha, matou cruelmente o casal de namorados ainda menor, está preso muito
além dos três anos que um menor, a princípio deveria cumprir por crime
semelhante, bastou utilizar os mecanismos legais e muito pode ser feito.
Também
acredito que não somos os donos da verdade, nem eu, nem você, nem o Caetano
Veloso. As sociedades se modificam, não estou falando que evoluem, elas mudam.
O que para uma sociedade é crime, para outra não é, dependendo do momento
histórico. Quero dizer que já passa da hora de avaliarmos a questão do tráfico
de drogas como crime, descriminalização da maconha e coisas do tipo. Seguir o
mesmo passo de sociedades não tão diferentes da nossa como Uruguai, Estados
Unidos, Suécia... Sim, eles não são tão diferentes de nós, diferente eu
contaria como o extremo oriente em que há um verdadeiro choque cultural, somos
americanos. Há experiências bem sucedidas nas Américas para nos dar subsídios
para uma mudança.
Ou
faremos como no caso da escravidão e seremos os últimos do mundo a perceber que
certas coisas estão erradas?
Fico
aberto a críticas, sugestões, pontos de vista convergentes ou divergentes. Fico
aqui pensando um Brasil mais justo. Um Brasil que saia do slogan há muito
apodrecido. Um país que pare com este pensamento caquético que lei é a solução
para os problemas. Vivemos numa democracia e pensamos como se estivéssemos
vivendo no período absolutistas, onde os arautos gritavam as leis e tudo se
modificava. Não funcionava lá e não funcionará aqui. Simples assim. Não há
apenas dois lados. O mundo não é tão simples. Para cada problema uma solução
diferente, daí a grande beleza da Modernidade.
Não
basta nascer no século XX ou XXI para pensar como um moderno. É preciso se
apropriar de cultura e isto só se faz com escola: para mim, para você, para o
menor infrator, para o presidiário, para o deputado, o senador, o presidente.
A
sociedade se faz fazendo. E se quero que este ensaio sirva para algo não é o de
dar respostas, mas de convidar a pensar o Brasil com um pouco mais de
inteligência. Sem romantismos. E perceber que viver em sociedade é isso: ouvir
e ser escutado.
O
direito de falar tem um preço: escutar o que dizem. Sem precisar concordar, mas
com respeito.
Falta
isso ao debate.
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