terça-feira, 7 de outubro de 2014

Tons de cinza, virtualismo e bruxos

     Sou professor de literatura, uma profissão antiga e fundamental num país nada afeito à leitura. Entrando e saindo de sala de aula me deparo com a pergunta: "Professor, trovadorismo, classicismo, barroco. E hoje? Qual é o movimento literário de agora?"
     Essa pergunta é muito difícil de ser respondida porque é preciso uma certa distância entre o objeto de estudo e o estudioso, o que podemos fazer é especular e nessas especulações estão contidos pensamentos sobre muito do que somos.
     Desde os primórdios da literatura (e quando falo literatura eu me refiro à arte em geral, tratarei aqui simplesmente do estudo literário), pois bem, desde os primórdios a literatura segue a tendência pendular, isto é, de um lado a outro segue ora a emoção, ora a razão.
     Tal qual o poema de Pessoa onde "nas calhas de roda gira a entreter a razão, este comboio de corda que se chama coração". Emoção: trovadorismo; razão:classicismo, emoção: barroco; razão: arcadismo; emoção: romantismo; razão: realismo; emoção: simbolismo; razão: modernismo... e depois?
     Depois somos nós. A emoção.
    Vivemos numa época conhecida como pós-moderna. O que não diz muito, apenas que viemos após o modernismo. Porém há muito sobre nós na forma como desenvolvemos arte, cultura, pensamento. 
     Então o cinema sendo a grande arte do século XX, depois o vídeo game no século XXI e a amálgama entre estas duas formas de expressão.
    Literatura com vampiros, culpa das estrela, ladrões de raios, sexo fantasioso com seus tantos tons de cinza, bruxos jogando quadribol, super heróis com capa e cueca por cima da calça, nerds que não leem (mas são gênios), universos paralelos on line, second life, RPGs, etc., etc., e muito etc.
     Na viagem que fazemos por este universo cultural há um denominador comum: a fantasia. 
    Somos de uma época de faz de conta, em que não podemos ser tristes, e sem a tristeza não há a insatisfação ou vice versa, que seja, sem o incômodo não nos mobilizamos para sair de uma situação de estagnação rumando a algo maior, melhor, diferente.
     Somos emoção, mas não sentimos. Preferimos o faz de conta em que atiramos, matamos, morremos e voltamos a jogar no dia seguinte. Vez ou outra matamos de verdade, confundimos realidade e mentira: tiroteios no meio da noite, quedas de motocicletas, jovens se cortando, velhos andando pelas ruas de mãozinhas dadas com suas namoradinhas porque são velhos com espíritos jovem, desta forma enganam a morte. Ou a ignoram.
     As consequências para o nosso futuro me atrevo a ignorar.
    Em relação ao presente o que vejo é um bando de gente sem vontade, agindo como imbecil, correndo atrás de amigos virtuais, relações virtuais, sexo virtual, cinema virtual, contatos virtuais. Ouso cunhar um termo: o Virtualismo.
      No ano de 2200 estudaremos o Virtualismo. O professor vai começar a aula mostrando as novidades tecnológicas do início do século XXI e parlar sobre como elas foram o desmembramento dos meios de comunicação criados e desenvolvidos no século anterior. 
     Depois vai desenvolver o pensamento acerca de como tudo isso criou o fenômeno do mundo virtual com o uso de jogos de simulação, comunidades virtuais, cinema misturado com livro misturado com cinema e como cada vez as relações humanas se desintegravam a medida que tudo se misturava e as relações virtuais se desenvolviam.
     Um aluno vai levantar a mão e perguntar: "Mas como isso aconteceu? Foi rápido? Houve algum esforço contrário?"
     O professor dirá que foi relativamente rápido e contou com o apoio maciço dos meios de comunicação. Que desenvolvia a personalidade de gadgets associando o ser humano a tais aparelhos, os que se excluíam do mercado consumidor eram tidos como seres de segunda classe. Surgiam aparelhos com a intenção de facilitar a vida, mas que de alguma forma a complicavam, já que causavam dependência psíquica e até física criando uma nova espécie de vínculo nunca visto antes na história da humanidade: a relação passional entre homem e máquina (homem aqui no sentido de humano).
     Essas relações entre os aparelhos de vídeo games, telefones com internet chamados smartphones, computadores pessoais. Lembram do Romantismo crianças? Aquele movimento em que os jovens se matavam pela mulher amada? No Virtualismo as pessoas (todas elas, não só os jovens) se matavam pelo aparelho. Não a morte física, mas a morte de quem continua vivendo, mas sem as sensações reais de um ser humano. 
     Tiravam fotos das festas de família, mas não sentiam as festas porque estavam mais preocupadas em criar conteúdo para a vida virtual. Preocupados em voltar pra casa e terminar o jogo que começaram no dia anterior. preocupado com o amigo do outro lado do mundo e nem sabendo o nome do vizinho da esquerda, o da direita, ou o da frente. Na hora da melhor música do show, em vez de parar para ouvir, eles ficavam gravando pelo smartphone pra depois mostrar no mundo virtual como eram felizes no mundo real. Alguém já ouviu falar do caso do filho que apenas percebeu que a mãe estava morta, vítima de um enfarto, seis dias depois? Ou da enfermeira que injetou café com leite na veia do paciente no lugar do soro? Alguém já leu sobre a época em que os prédios começaram a cair e os motivos que os levou a isso?
     E como era a escola dessa época, professor? Os alunos levavam aparelhos pra lá também?
     O professor vai dizer que na escola os aparelhos eram proibidos, depois tolerados, e com o apoio das empresas de comunicação aos governos, os aparelhos passaram a ser obrigatórios. Mesmo sabendo dos danos cerebrais e comportamentais já citados.
     O Virtualismo foi uma doença e atrasou durante anos e anos o conhecimento, a evolução da humanidade. Doenças deixaram de ser curadas, livros não foram escritos, obras de arte sonegadas, pensamentos não pensados, os aparelhos eram o sujeito da ação, o ser humano o objeto.
     Essa minha distopia tem um problema: será que haveria escolas? pensamentos? questões? ou o virtualismo seria a fronteira final entre um exercício de alteridade diário, o reconhecimento do outro, o pensamento crítico, a autonomia e a vida livre das algemas que nos pomos a nós mesmos?
     Somos, de fato, a emoção sem a emoção. Os meninos assistem ao desenho do homem aranha, não leem mais a revistinha, nem o resumo do livro chato, tudo pasteurizado o pensamento massificado. Antes enlatavam a cultura, hoje engarrafam os cérebros.
     Nesse relacionamento de uma via, não é de admirar que após seis meses, um ano, surja o desejo de um novo aparelho, segundo pesquisas, este é o tempo que dura a paixão no corpo das pessoas (biologicamente falando). Tempo para uma nova paixão. Ao lado do aparelho na cama, na mesa, no banho, infinitamente, para sempre. Num lindo final feliz, até que a morte separe. Enquanto outros twitam durante o velório, descendo o corpo na tumba, no último dos downloads.

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