segunda-feira, 14 de março de 2022

Minha primeira crônica futebolística

 

“Como assim você nunca foi a um estádio?” Assim começou o questionamento que me levou a uma das mais sensacionais aventuras da minha vida. Devo estar exagerando. Com certeza estou.

Mas não preciso exagerar nas sensações que levaram meu coração de zero a cem em noventa minutos.

Explico: dois amigos torcedores de determinado time da capital paulista, time que nunca torci, não por falta de empatia, simplesmente por nunca ter pensado no assunto. Nunca nutri paixão clubista, sempre interessado em outros expedientes, minha diversão no que se refere a futebol se resumia a assistir aos jogos da Seleção Brasileira a cada quatro anos, me frustrar, mas não muito, me alegrar, mas nunca tanto. Até que o Vinícius, esse o nome de um dos amigos, se exasperou comigo pelo fato de eu ser do país do futebol e nunca ter sequer entrado num estádio, numa arena futebolística como diria Nelson Rodrigues.

Desafiado pelo Rodrigo, o outro amigo, aceitei o convite e numa noite de quarta-feira adentrei o estádio, o grandioso estádio esperando que tudo se revelasse e que daquele momento em diante minha vida fosse tocada pelos deuses do futebol.

Não foi bem assim. Não no primeiro momento. Longe de ser um amor à primeira vista.

Moramos muito longe do local da partida, trânsito complicado, congestionamento, fila para comprar o ingresso, preço absurdo, multidão, cavalos da polícia, tudo observado por mim com espanto e nenhuma admiração. Aquilo tudo parecia um ambiente um tanto quanto hostil, algo me dizia que eu não deveria estar ali e muito, no entanto, eu estava e ainda sem paixão clubista alguma fui levado para um ponto da arquibancada extremamente distante do campo de jogo.

Lembrei-me neste momento de quando meu pai saia para jogar futebol num campinho na beira da rodovia e se juntavam famílias e mais famílias para assistirem a tudo, minha mãe incentivando meu pai – goleiro do famosíssimo time Cuca Fresca, ultra campeão da várzea de Guarulhos. Ali, naquele estádio, tudo tão distante e frio. Onde escuto o narrador? Como saber se o jogo estava bom ou ruim?

Comecei a me orientar quanto à qualidade da partida pelas reações de meus dois amigos, pelos seus palavrões e pelos dos demais torcedores que não polpavam a nenhum dos jogadores de seu próprio time de paixão. Muitos gritos, todos incomodados com o fraco desempenho do elenco, forçando um fraco e apático zero a zero como diria qualquer outro cronista mais esportivo do que eu.

Percebi que aquele lugar não fora feito para mim, um bocejo veio à minha boca. Pensei em sentar e descansar minhas pernas. A exaustão do dia, lembra? Trânsito, congestionamento, multidão, cavalos da polícia, gritos e cantorias, tudo aquilo me cansava muito. Comecei a me arrepender de estar ali. Mas como fui, decidi ficar em pé uma última vez na arquibancada e esticar o olhar para dar uma última olhada no passeio que jamais faria novamente na vida.

Então aconteceu. Simples. Aconteceu. O que aconteceu? Um gol. Simples assim. Um gol. Sem narrador. Sem locução. Sem ninguém me dizendo que era momento de pular e abraçar o coleguinha do lado eu pulei e abracei o coleguinha do lado. Muitos colegas. Pessoas que nunca vi e nunca voltaria a ver. Senti naquele instante um fulgor tomando conta de mim. Uma alegria envolvendo minha mente. Talvez meu coração.

Tudo começou a fazer sentido: a distância, o congestionamento, o preço do estacionamento, a bebida quente que deveria ser servida gelada e pela metade do preço e tivemos que pagar porque era a única opção, ou isso ou a desidratação. O gol de canela marcado pelo zagueiro trouxe sentido para tudo aquilo.

Descobri a magia do futebol no final dos noventa minutos. Um gol marcado. Apenas um. Sem graça. Feio. Que não ficará na memória de ninguém se não na minha. Por um motivo que não este: a minha primeira vez num estádio. A primeira vez que celebrei um gol dentro de um templo elaborado para o futebol.

Por Mauro Marcel

sexta-feira, 11 de março de 2022

Rei Lear, e eu com isso?

              Li muito, desde a infância, uma das minhas críticas: empurrar obras pra lá de maduras que exigem certa maturidade de leitura e de vida a adolescentes e crianças. Então forçam Machado de Assis, Clarice Lispector, Guimarães Rosa, ouvi que os jovens da Rússia leem “Crime e Castigo” na oitava série. Quem me contou, contou com lágrimas nos olhos, alegria impossível de segurar, alegria que transborda. Mas não compartilho deste sentimento e isto não é o motivo desta crônica, mas não pude me furtar ao comentário, já de início, no primeiro parágrafo. Obrigar crianças a lerem obras desse porte em tão tenra idade é uma violência ao leitor e à obra. Não digo que também seja ao finado escritor porque este já tenha, como direi, morrido. Mas é um ataque a sua obra. (Incentivos e aproximações são sempre bem-vindos. Como a leitura de um conto, um capítulo, um debate, uma roda de conversa. Um livro deixado estrategicamente numa estante de destaque na biblioteca). Dito isto. Vamos para o primeiro parágrafo, aquele em que eu conto o motivo do título desta crônica.

              Rei Lear. Este é o motivo. Acabei de relê-lo e ao fim da leitura me deparei com um livro que não havia encontrado na adolescência. Lia sem critério, apenas devorando, engolindo sem saborear. Dessa vez pude fazer associações, relacioná-lo com a vida real, com o mundo que me cerca e que o cerca também, você que agora lê esta crônica e é leitor de Shakespeare, você que nem sabe do que estou falando.

              Lear é um rei idoso que decide dividir seu reino em partes iguais entre as três filhas. Para tal organiza uma cerimônia em que pede para cada uma dizer o quanto o ama. A filha mais velha diz que o ama mais que a tudo no mundo, seguida pela do meio que diz amá-lo ainda mais que a mais velha. A mais jovem, Cordélia, diz que o ama apenas como pai, com o dever de filha, nem mais nem menos. Quando questionada duramente pelo rei sobre a dureza de suas palavras a moça diz que ainda não se casou e que ao se casar teria de dividir o amor que sente pelo pai com seu marido, não era como as irmãs que já eram casadas e diziam amar o pai acima de tudo, inclusive de seus próprios maridos, talvez filhos. O rei, pai de Cordélia, faz o que se espera de um rei, ou de um pai, ou de um ser humano qualquer ao ouvir tanta verdade: expulsa a filha de sua vida.

              Este é o motivo da tragédia shakespeariana, apenas a primeira cena e me deterei nisso nesta crônica.

              Muitas outras interpretações podem ser feitas da obra, deste início de obra e acreditem, muitas interpretações foram feitas. Muitas ainda serão. Contribuo com a minha, que nem deve ser original:

              Rei Lear representa qualquer um de nós, todos nós. Cordélia também nos representa. Todos somos Lear e Cordélia e explico de forma muito objetiva utilizando exemplos da nossa sociedade, como sei que o mesmo se aplicava à época de Shakespeare, daí sua grandiosidade.

              Lear conhece o poder, sabe da ambição que desperta em todos. Não está, portanto, interessado em verdades. Está interessado em lisonja, em bajulação. Organiza para tal uma celebração em que todos vestem máscaras, todos têm de atuar segundo suas regras. Quando digo suas, digo “as regras do rei”.

Você quer o benefício do estado? Precisa dizer o que eu quero ouvir. Quer ser cuidado por mim? Me agrade. Pareça uma pessoa boa. (Para mim – que tenho poder sobre você).

Não importam suas atitudes, o que importa é o que você diz, como você finge iludir as pessoas que o cerca.

Qual o erro de Cordélia? Romper com o teatrinho social organizado por Lear. Por isso Lear somos nós, impossíveis de ouvir as verdades, acreditando mais nas palavras que nas ações das pessoas. Difícil encontrar uma Cordélia no mundo e quando a encontramos a defenestramos de imediato. Me diz, por que eu quereria alguém ao meu lado dizendo verdades atrás de verdades, mesmo que tivesse dela o mais puro amor que alguém poderia ter por mim?

Na esfera social percebo muita gente defendendo minorias, camadas sociais desfavorecidas, pessoas em situação de insegurança alimentar etc., falando o que é certo porque é o que é certo falar. Não falam com o coração porque na primeira oportunidade que tiverem de mostrar ao mundo o que habita seus corações, acredite: mostrarão.

Nesse sentido também somos Cordélias. Minto, na verdade o nosso desejo é o de ser Cordélia, mas estamos todos muito mais para Goneri e Regan, as filhas mais velhas do rei.

Cada vez que agimos como Cordélias afastamos mais e mais pessoas. Aprendemos isso na primeira infância e repetimos a lição vida afora. Construindo ao nosso redor o que a cientista política Elisabeth Noelle-Neumann chama de “espiral do silêncio”. Mas não apenas isso.

É emblemático ver Rei Lear dividindo seu reino entre as filhas, me faz pensar no Estado, esse com “E” maiúsculo, financiando eventos culturais, projetos acadêmicos, contratando empresas. Penso também no que precisamos falar para receber nosso pedacinho deste reino e no que acontece com quem “cordeleia”. (O editor de texto grifou a palavra, acho que inventei o termo, mais provável que não).

Também penso nas pessoas com os discursos prontos, discursos preparados para parecer um cidadão probo, defensor dos fracos e oprimidos e pensando nisso penso no que habita o coração de todos que assim agem, ou seja, todas as pessoas do mundo, e como ser mais íntegro de fato. Sendo honesto comigo e com todos e conseguindo conviver em uma sociedade acostumada a isso.

Talvez a resposta seja continuar a peça até que o pano caia, ou, e isso precisa mesmo de maturidade, conhecer as pessoas certas e os lugares adequados em que podemos ser nós mesmos, sem máscaras, sem medo de dizer o quanto amamos e odiamos tudo nesse mundo lindo, feio, lúcido e louco. Sem medo de parecer estúpido ou horrível. Sem medo de ser estúpido e horrível. Porque a verdade, quando acompanhada de gente leal e verdadeira não nos enfeia, nos revela.

Talvez se alguém tivesse conversado comigo sobre Rei Lear e Shakespeare e tal eu fosse um ser humano melhor. Talvez por isso obriguem os jovens a lerem os clássicos.

Esqueçam o primeiro parágrafo. Vou lutar por uma lei que obrigue a todos em qualquer parte a lerem tudo o que é bom segundo os meus critérios. É isso.

Até a próxima crônica!

Por Mauro Marcel

mauromarcel@gmail.com

quarta-feira, 18 de agosto de 2021

Por que extinguiram o trem de Guarulhos?

             

        Lembro com saudade do professor Eugênio. Nunca fui seu aluno, nunca tivemos uma conversa a sós (além da que motivou esta crônica, obviamente), não o recebi em casa, nem fui visitá-lo quando soube de sua internação pelo câncer que já atingia seus ossos.

              Na última vez que o vi tinha um olhar sereno: “eu cheguei antes do câncer, tenho mais direito de estar aqui do que ele”, mas partiu. Já era um senhorzinho grisalho, simpático lorde de fala calma, daqueles homens raros inclusive nos velhos tempos, dos que não precisam pedir silêncio para falar, porque ao dizer, o que quer que fosse, todos dão atenção.

              Não sou de entrar em rodas de conversa iniciadas sem mim, tímido ao extremo, por vezes sofro pela minha falta de tato social, mas naquela roda estava o professor Eugênio e sempre gostei de sua conversa, verdadeiras aulas, aquela já havia se iniciado há algum tempo. Alguns minutos depois me vi sozinho com o professor e não sei quem havia iniciado o novo assunto, ou sei, foi eu... Desta forma: estava muito revoltado com alguns estudantes da Universidade Federal de São Paulo, na época eu fazia o curso de História da Arte e me relacionava (pessimamente) com os mestres e, ainda pior, com os meus colegas de curso.

              Contei ao professor da minha dificuldade em conversar com os alunos que, oriundos de outras cidades, sem entender nada da nossa realidade guarulhense, passavam todo o tempo falando mal do campus. De fato, a Unifesp ao se instalar em Guarulhos teve sérias privações, os estudantes, professores, funcionários etc. Todos passaram por dificuldades, porém o que me revoltava é que num campus com cursos, em sua maioria, da área de humanas, havia tão pouco da chamada consciência social nos envolvidos no processo de instalação da universidade na região periférica de uma cidade também periférica de São Paulo.

              Não sei por quanto tempo o professor Eugênio ficou me escutando falar do que ouvia antes, durante e após as aulas: “essa universidade posta aqui pra desprestigiar os cursos de humanas”, “bastava um trem, nada mais que um trem para este inferno de cidade, nem isso aqui”, “que gente feia essa”, “por que os pais levam as crianças para o mercado? Qual a graça disso?...

              E muito mais que não me atrevo a dizer, pois pareceria inventado ou preconceituoso, antes: estar falando mal da Universidade Federal de São Paulo, o que nunca farei.

              Foi esta a conversa com o professor, fiz parte do movimento pela implantação de uma universidade pública em Guarulhos, tê-la instalada na região mais carente e populosa da cidade um motivo de orgulho, principalmente por ser onde ainda habito.

Retrucando a um dos idiotas aleatórios sobre a precariedade do bairro: há poucos anos por aqui não havia mercado, posto de vacinação, hospital, linhas regulares de ônibus, ruas asfaltadas, segurança pública, saneamento básico, esgoto, coleta regular de lixo...

              Escutei-o dizer: “então não tinha nada...”

              Pois é... “Não tem pra você que cresceu com acesso precário a tudo, mas ainda algum acesso”.

Nós da região do Pimentas fomos inseridos pelas circunstâncias em um bairro que de tão pobre não possuía nada, verdadeiramente nada. Nem mesmo condições precárias de sobrevivência.  

              Tão precária a condição que um dos únicos momentos de lazer eram as compras no supermercado, daí as crianças serem levadas pelos pais, algo que obviamente irritava alguns dos novos frequentadores do bairro.

              O professor Eugênio escutou a tudo com uma placidez tão terna que por um momento me senti compreendido, o que realmente fui.

             Sua resposta a minha revolta foi uma pequena aula da história de Guarulhos: “sabe o trem das 11 da canção do Adoniran Barbosa? Sabe por que ele era o último e saía às 11? Porque era o trem que vinha pra Guarulhos. O trem da Cantareira.

              Ele saía do Pari e vinha pra cá, distante demais. Tão distante e precarizado, era uma linha às beiras do abandono. O fim deste ramal era a Base Aérea de São Paulo, mas todos desciam antes ou eram obrigados a desembarcar na região central da cidade. Um terminal triste e sem nenhum brilho. Quer dizer, Guarulhos era tão longe nos dizeres da canção que ficava mais longe que o Jaçanã.

         Sabe por que Guarulhos não tem linha de trem? Porque o prefeito da época se elegeu com a promessa de resolver os problemas do transporte público da cidade. Muitas pessoas morriam caindo dos trens que vinham lotados, com pessoas penduradas nas portas e em cima dos vagões. Era uma luta cotidiana contra a morte, todos os dias havia casos de gente perdendo braços, pernas, mãos, cabeça, a vida na linha que servia os bairros mais distantes da distante Nossa Senhora da Conceição.

              Havia a estação Leprosário (na verdade Gopouva), hoje hospital padre Bento, no caminho para o centro, agora o Anel Viário. É perceptível nas duas mãos de tráfego de automóveis que há realmente espaço para um trem na rua que vai para o centro e outro que voltaria para a estação da Luz. Várias pessoas morreram nesse caminho. Muitos decepados sem ajuda alguma, nenhuma assistência do poder público.

              Foi compreensível quando o prefeito teve o total apoio da população para que os trens fossem retirados e em seu lugar “modernos” ônibus coletivos na recém instalada rodovia presidente Dutra. Muito mais segura e rápida. Numa época de ufanismos e construção de Brasília, totalmente compreensível.

Na mente daquelas pobres almas o trem representava o passado, o ônibus, o automóvel, o futuro. Quem tenta entrar ou sair de Guarulhos sabe muito bem quais as consequências dessa escolha numa cidade cortada por três das principais rodovias do país, muitas transportadoras, um aeroporto, uma base aérea e muito pouca mobilidade urbana.

              Indo para Itanhaém pela rodovia padre Manuel da Nóbrega quase um retorno por quilômetro e mesmo assim vários pontos de congestionamento, em Guarulhos são três os retornos na principal rodovia, a Presidente Dutra, na rodovia Ayrton Senna apenas dois.  

              Se na cidade de São Paulo ocorreu um complexo desenvolvimento que gerou as desigualdades sociais que ora vemos na presença de favelas, enchentes, cracolândias, violência urbana, moradores em situação de rua; pense em Guarulhos que recebia levas de pessoas buscando morar em lugares menos caros, cada vez podendo pagar menos, esses lugares muito distantes das capitais, como é comum em qualquer lugar do Brasil.

              Agora imagine várias empresas se instalando às margens da rodovia Presidente Dutra e as pessoas, sem possibilidade de financiar, comprar ou alugar suas casas tendo que construir barracos de madeira para morarem com suas famílias ao lado do emprego porque os salários são tão baixos durante o período militar que não possibilitava a ninguém nada além do mínimo, de menos que o básico.

              Junte a isso mais pessoas chegando das diversas regiões do Brasil, em especial do Nordeste. Você sabia que as pessoas que moravam na região dos Pimentas, onde hoje está localizada a Universidade Federal de São Paulo não se consideravam moradores de Guarulhos? Tanto que ao se deslocarem para o Centro do município diziam estar indo para Guarulhos e isto só começou a mudar com a chegada da Unifesp? Sabia também que ao se dirigir a São Paulo diziam estar indo para “a cidade”? Ou seja, Guarulhos não era cidade, era considerada pelos seus moradores o interior, não como Campinas, Rio Preto ou São José dos Campos, por serem cidades do interior do estado, mas por ser atrasada como nos contos de Monteiro Lobato protagonizados pela personagem Jeca Tatu.

              Guarulhos era o “quarto de despejo” de São Paulo, para chegar lá era preciso cruzar o Rio Tietê, um lixão que ficava em Santana onde hoje é o shopping Center Norte, a favela do Canindé (a do livro da Carolina Maria de Jesus). O bairro dos Pimentas o “quarto de despejo” de Guarulhos.

              E voltando para o trem que deixou de existir. Sabe quem era o dono da empresa de ônibus que ocupou o lugar dos trens? Sim. O prefeito que retirou o transporte ferroviário.

Sabe qual foi o seu maior legado para cidade? Asfaltar as ruas. Claro! Para que seus ônibus trafegassem.

Mas passou encanamento de esgoto e levou água tratada? Não.

Por isso que para o paulistano menino acessar a universidade pública em Guarulhos ele precisa enfrentar ruas com o asfalto decadente, porque primeiro asfaltaram a cidade, depois cavaram o asfalto para passar encanamentos. Muito inteligente, não acha?

E o bairro do Pimentas, jogado num dos pontos mais distantes da cidade, tão distante que nem merecia receber o nome da cidade segundo seus próprios habitantes. Compreendo seu desgosto pelo modo como falam da sua cidade, mas recomendo que você converse com seus colegas de faculdade sobre o impacto que uma universidade pública causa na região que está localizada. Na forma como é uma conquista e não um favor e na responsabilidade que vocês, estudantes da Unifesp, têm para com o Brasil e mais objetivamente com a comunidade que os acolheu.

Outros problemas surgem, surgiram e surgirão e o que temos de fazer é conviver com as escolhas de nossos antepassados. Temos que lembrar delas. Lembrar dos motivos que nos levaram a tais escolhas. Consertar os equívocos, aprimorar os acertos e nunca deixar de procurar pelo bem comum. Porque o mínimo que podemos fazer é deixar o local que vivemos um pouco melhor que quando chegamos, passar pela vida das pessoas e deixar algo bom para ser lembrado.”

Disse isso e saiu pra tomar um café. Não nos despedimos naquele dia. Pouco tempo depois iniciou a luta contra o câncer que o matou.

Muito da memória que tenho daquela conversa e que trouxe a público nesta crônica não ocorreu da forma que narro. Mas foi a lembrança de uma explicação sobre o trem de Guarulhos, uma explicação tão apaixonada que me fez tolerar a ignorância dos meus colegas de faculdade e tentar mudar aos poucos a imagem que eu tenho em mim sobre a cidade que moro há quase quarenta anos. Aceitando meu amor pelo meu ponto de vista, a minha cidade, o meu ponto de vista em relação ao mundo, posso buscar melhorar a mim e o meu lugar.

Assim como o professor Eugênio, que deixou esta e outras excelentes lembranças. Toda vez ao passar pelo Anel Viário lembro da nossa conversa e de como Guarulhos é complicada, mas caminhando a passos lentos, já bem melhor do que foi nos anos 1960 com a extinção do trem da Cantareira.

Há inclusive um outro trem, em outro ponto, uma nova linha ligando o aeroporto ao extremo leste, um expresso até a Luz, Guarulhos se conectando novamente a São Paulo via trilhos. Quem sabe algum dia até o Pimentas.



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sexta-feira, 13 de agosto de 2021

Borba Gato permanece ereto

Eu acredito no poder transformador e revolucionário da educação. Ou simplesmente: eu acredito no poder da educação. Ou mais simples ainda: eu acredito na educação. Dito isso, posso começar a desenvolver o argumento sobre o tema que me traz à pena.

              Sim. À pena, e a duras penas venho escrever sobre a derrubada (na verdade a tentativa de derrubada) da estátua do bandeirante Borba Gato.

              Vamos à opinião: eu acredito na educação, em seu poder transformador e acredito que os professores são fundamentais para uma sociedade saudável, consciente e justa.

              Ou em busca de.

              Quem foi Borba Gato? Pouco importa. Verdade. Pouco importa ao debate. Mas como sempre fico me adiantando, me achando um Brás Cubas indo e vindo com meu texto. Vou do começo. Se for indicar esta leitura a um amigo, peça que inicie pelo próximo parágrafo, nada de interessante foi dito nos anteriores.

              No dia 24 de julho de 2021 um grupo decidiu incendiar uma estátua que fica em São Paulo na avenida Santo Amaro. A personagem retratada na figura é a do bandeirante Borba Gato. Esta é a notícia principal que completo com a informação que a escultura não veio abaixo, resistiu firme, com diversas avarias, é claro, e prejuízo aos cofres públicos que terão de arcar com o conserto causado pelo ataque.

              Conversei com muita gente sobre o ocorrido, muita pessoa inteligente, muito historiador, alguns livros, vídeos sobre a história dos bandeirantes.

Escrevo quase um mês após o ocorrido, a estátua ainda chamuscada e em pé, não caída como a dos Budas destruídos pelo Taliban, nem perdida como os livros incendiados da biblioteca de Alexandria.

              Deste modo: muitos já destruíram muita coisa em defesa de verdades e muitos também destruíram em defesa de mentiras, quem sou eu pra julgar? Falo de orelhada. Sou um simples professor de educação básica. Um simples amante de arte e a estátua nem era, como direi, assim tão artística. Sou um aficionado por história do Brasil e do mundo, Borba Gato nem é alguém tão relevante. Quem sou eu na fila da pamonha? Quem sou eu ao relacionar de algum modo um bandido (bandeirante) com elementos culturais reconhecidos como excepcionais mundo afora.

Lá vem ele comparar o assassino bandeirante com Rodin, Brecheret, o nariz da esfinge, o olhar da Gioconda...

              Isso mesmo. Vamos pôr fogo nas estatuas, vamos queimar e sem deixar traços para as próximas gerações não permitiremos que nossos netos, bisnetos e tataranetos compreendam o mundo que habitam com a devida perspectiva histórica.

              Esqueçam o Borba Gato, esqueçam de quem se trata.

Vamos começar por este parágrafo. Aqui começa a crônica. Deleta o que foi anteriormente escrito. Incendeie!

Estamos num Brasil que queima estátua em praça pública.

Por hora vou chamar de vândalo a quem incendeia o patrimônio histórico independentemente do juízo de valor que possa dele (o patrimônio histórico) independentemente do juízo de valor que possa dele ser feito.

              Nos últimos anos houve incêndios devastadores no Memorial da América Latina, Museu da Língua Portuguesa, Museu Nacional, depósito da Cinemateca Brasileira, esqueci algum? Ah é... A estátua do Borba Gato. Tudo devastado pela ação ou omissão de vândalos. Sem falar do alagamento que destruiu a cidade de São Luiz do Paraitinga no Vale do Paraíba, o deslizamento de rejeitos de mineração em Mariana, incêndio em igreja histórica em Ouro Preto... o Brasil não é para amadores.

              A partir do momento que é retirado das pessoas o acesso à perspectiva histórica só possível pela educação e contato com sua trajetória humana e pessoal, legamos às futuras gerações a eterna repetição de modelos fracassados de poder e sociedade.

Legamos fracasso e mais fracasso, uma sociedade sem memória, sem passado, sonegada da possibilidade de julgar os erros de seus antepassados e aprimorar, mudar. E como? Com educação. Sabe por quê? Porque eu acredito na educação. Eu acredito no poder transformador e revolucionário da educação e por isso sou contra a queima do nosso patrimônio histórico.

No livro “Terra sonâmbula” Mia Couto levanta o debate sobre uma sociedade sem passado, fruto de uma guerra civil que matou os pais e os avós, deixando as crianças soltas no mundo, vagando sem história, retirantes de lugar nenhum, sem saber de onde vieram, como saber para onde irão?

No caso de Moçambique a crítica é direta às consequências da guerra civil pós processo de independência. No Brasil há um processo outro. Um processo que nos leva a cada dia, a cada instante, a cada novo incêndio, alagamento, fechamento de museu, cortes em orçamento, vandalismo em prédios tombados pelo patrimônio, destruição de estátuas, elevação de ícones da cultura pop a intelectuais respeitadíssimos nas discussões acadêmicas, exclusão de clássicos das bibliotecas, aulas e debates.

Se fizerem uma fogueira e queimarem os livros, talvez um dos que exaltam a destruição das estátuas se erga contra os que assim agem. Mas não acredito, o mais provável é que festejem a destruição de todo e qualquer contraditório que percebem como inimigos e adversários e não como o que de fato são: diferentes.

Até onde me lembro, pensar diferente deixou de ser crime desde a Declaração dos direitos do homem e do cidadão em 1789.

Mas há pessoas que não leram nada a respeito. Não leram e nunca lerão. E o que é pior: se recusam a permitir que outros tenham acesso ao mundo diferente do que entendem como o ideal.

Eu sei no que isso transformou o mundo num passado não tão distante. E num distante também. É a história se repetindo ad infinitum como farsa após farsa. Incêndio após incêndio.


Por Mauro Marcel

quinta-feira, 10 de junho de 2021

Homeschooling, ou sobre os sonhos que não são meus, ou o porquê de você deixar de respeitar minha opinião embora muito embasada em argumentos e dados empíricos.

 


            Você já pensou em como as escolas surgiram?

Não a escola do seu bairro construída no início dos anos 1980 pouco antes ou depois, ou a dos grandes centros na primeira metade do século XX.

Não quando, mas como?

              Em torno de qual ideia se estrutura o conceito de escola num Brasil de Paulo Freire e Anísio Teixeira?

E não cito os teóricos como posicionamento ideológico, mas para dizer que antes dos mesmos já havia quem pensasse um lugar onde as crianças ficam o dia todo distantes do seio familiar e próximas a outras influências: Estado, Mercado, esportes, religiões, grupos, paixões, ideias preconcebidas, ideias, etc. etc.   

              Ensinar não é algo novo e ensinar em casa muito menos. Um agricultor tinha muitos filhos porque muitas pessoas significava muita mão de obra na lavoura.

O ensino doméstico nasceu com a própria ideia de estabelecer-se em determinado lugar e plantar e colher e plantar novamente e colher novamente com mais ou menos ajuda, com mais e menos sucesso...

Agora, depois de escrito e relendo fico pensando que antes já havia a ideia de ensinar a caçar, a coletar, a preparar o alimento retirando as impurezas, e antes a ideia de construir ferramentas das mais primitivas às ainda primitivas porém mais elaboradas, a cuidar do fogo, manejá-lo e não deixar o acampamento incendiar-se.

              Um João de barro pai não ensina ao João de barro filho como construir uma casa, o instinto de preservação está em seus genes, por instinto um passarinho voa, por instinto um camaleão se protege, por instinto uma leoa caça uma gazela na savana e cruza e procria, sem aquilo que chamamos de comunicação complexa.

O que quero dizer é que há sim um nível de passagem de bastão de seres que não nós na natureza, seres que não conseguem enviar um homem para a Lua e nem pensar em como colonizar outros planetas.

              A diferença entre uma barata e um homem é que para o inseto tudo é presente, um eterno e contínuo agora, enquanto que para nós, para você que lê o que escrevo, há também um passado carregando sua consciência de remorsos ou nostalgia, e um futuro carregando sua mente de ansiedade ou sonhos.

              Os seres humanos precisam de escola porque tem passado, presente, futuro e porque se afastou da vida simples dos instintos.

Eis os motivos de haver escola: é muita coisa para administrar.

Difícil essa vida, é mais fácil ser bactéria que não planeja, não se frustra, não decepciona os pais ao escolher a profissão errada, não decepciona a si mesmo escolhendo o caminho tortuoso das drogas, não sente vergonha quando faz cocô na roupa ao passar mal na sala de aula da quinta série (acho que fui muito específico). Não aprende e não modifica por livre arbítrio a própria realidade.

Neste momento percebo que me distancio do que me trouxe ao texto, mas vou fundo pelo caminho que me direcionei, se conseguir, retorno, se não, deixo a cargo do leitor seguir, ou não, comigo até a última linha.  

Pois bem, ao falar de educação é preciso diferenciar bem o que é escola do que seja ensino. Ensinar e aprender são processos ininterruptos que devem nos acompanhar por toda a vida.

Uma pessoa que não aprende, sabemos como chamar.

Também sabemos como chamar uma pessoa que se recusa a ensinar o que sabe.

A escola, em minha humilde opinião tem que ser pensada em separado do ensinar e aprender, principalmente num século XXI de acesso instantâneo a vídeos com tutoriais, aulas com professores amadores que não são professores, são curiosos sobre determinado assunto, mas que ensinam também e faz parte da universalização do acesso ao conhecimento tão sonhado por pessoas ilustradas de distintas épocas da humanidade.



E quero que discordem de mim. Mas também que alguém concorde. Repito o que para mim nem é tão polêmico: a escola deve ser pensada em separado do processo ensino/aprendizagem.

Longe de romantizar o debate, é sabido que o Estado (todos eles) utilizam o dinheiro dos impostos para gerar benefícios para a população (ou deveria), a educação escolar é um serviço que é um benefício que deve gerar outros como professores, pessoas mais conscientes que poluem menos, mão de obra qualificada, pensadores, construtores, policiais, exército, artistas, médicos...

Em períodos de guerra a escola serviu para disciplinar (há ideias difíceis de morrer e pessoas que ainda creem que na escola sempre é tempo de guerra, um lugar de extrema disciplina, “o professor bom é aquele que consegue controlar a sala” e tome blá blá blá...).

Jurei para mim em nome de vários santos que não escreveria mais crônicas tão longas, ou ensaios, ou o que for este texto até o final, mas é que sou professor há quase vinte anos e apaixonado pelo assunto. Lembro de como imaginava a escola que trabalharia enquanto cursava letras: sonhava com os estudantes lendo os clássicos da literatura, todos libertos dos grilhões da obediência cega, e nunca me flagrei imaginando uma aula em que perguntava o que eles desejavam ser, fazer, sonhar...

Sempre mais importante na escola dos meus sonhos o meu grandiosos sonho, corretíssimo e asséptico  e, bem diminuto quase um detalhe, os desejos dos alunos.

Quem eram eles para saber o que era melhor para si?

E demorou para mudar, mas mudou. (em mim ao menos)

Se uma época é mais industrial, é legítimo formar mão de obra para a indústria. Se é uma escola inserida numa comunidade agrária também é legítimo formar pessoas que se ocupem das atividades campesinas, o que não impede alguém do campo em sonhar viver do ramo fabril e vice versa.

Alguém aí pensou em equidade? Isso mesmo. Acho que estamos na mesma página, se não, tudo bem, ainda estou aprendendo.  

É legítimo aos pais influenciarem nas decisões de vida dos filhos e os filhos desobedecerem aos pais. A vida é dinâmica e não adianta escrever roteiros e buscar segui-los, talvez sirva para uma meia dúzia de pessoas, mas na escola do início do século XXI a complexidade, os debates, o aprender, o ensinar, tudo é muito mais complexo que no fim do século XX. E muitos professores estavam e ainda estão por lá ensinando em 2021 como se ensinava em 1995 e isto é um dos maiores tabus da educação, entre os diversos que existem.

O caso é que vivemos numa época em que as informações não são obtidas apenas pelos antigos e (dizem alguns) ultrapassados canais oficiais. A informação e o conhecimento vêm de todas as partes numa enxurrada descontrolada, e é papel, hoje, da escola ensinar a selecionar o que é relevante do que não é, assim como a colaborar nessa nevasca de informação: tudo misturado: textos, imagens, infográficos, memes, vídeos, podcasts, aplicativos, redes sociais e o que mais surgir e surge.

Dentro disso, é importante saber que aprender é também entender o que merece nossa atenção. Ao longo do dia milhares de pessoas vão lutar para obter sua, vão querer te vender serviços, mercadorias e ideias.

Porque escrevo este texto, por exemplo. Quais as minhas intenções? Talvez eu queira convencer de alguma coisa não tão boa, mas como saber?

Neste imbróglio é importante pensar que a sociedade enfrenta desafios diferentes dos da mesma população de há quinze anos e enfrentará novos em cinco, dez, vinte; os problemas se renovam antes de serem resolvidos e se avolumam.

A escola de hoje precisa se comprometer com a formação do socioemocional muito mais do que a aquisição de meros conhecimentos enciclopédicos. Sempre haverá um aparelho eletrônico por perto para buscar a capital da Austrália que não é Sidney, a raiz quadrada de um número negativo que não existe ou o que for, a fórmula de bhaskara, a lista de verbos irregulares. E se não houver um aparelho por perto para buscar a informação? Faça o mesmo de quando quer escrever e não encontra a caneta. Admirável mundo novo, muito a aprender, muito a ensinar.

O homeschooling, termo em inglês que significa em tradução livre “ensino doméstico”, deve ser uma opção não apenas para o período escolar, mas para toda a vida. A internet nos aproxima do conhecimento. Ponto. Não há o que discutir. Mas também nos aproxima das maiores bizarrices e imbecilidades inventadas pelo homem.



              Aprender na escola significa, agora em plena década de vinte do vigésimo primeiro século, se relacionar com outros indivíduos e superar desafios de maneira saudável e equilibrada e isto não se aprende longe das pessoas. O ser humano se faz humano no convívio e convivência se aprende e se pratica. De frente para o computador? Um tanto. Porém muito mais no olhar, compartilhando espaços e rotinas com pessoas de diferentes faixas etárias e culturas. A internet otimiza isso, mas nunca substituirá a prática: conviver com as frustrações, por exemplo, se abrir para o novo. São habilidades que a escola tem que desenvolver nos estudantes desde crianças até a adolescência, para que o adulto acrescente vida à própria vida, qualidade aos próprios sonhos, realizações para seus ideais e autonomia aos próprios passos.

                                                                    Mauro Marcel


Link para consulta: BNCC - Base Nacional Comum Curricular


segunda-feira, 7 de junho de 2021

Não é bolha, é labirinto

 

A deusa Atena permitiu que o filho de Cnossos fosse morto e uma guerra irrompeu provocada pelo desejo de vingança. A cidade estado de Atenas protegida pela deusa da sabedoria foi derrotada, Creta, liderada pelo rei Minos exigiu que os atenienses enviassem anualmente quatorze jovens, sete casais como tributos.

Estes eram postos num labirinto e ao perder-se entre suas curvas e caminhos, sem saída, não conseguiam retornar e morriam devorados pelo minotauro que aguardava, entediado e faminto, sua refeição anual.

Era impossível a fuga até surgir o jovem Teseu e, como herói mitológico, servir de modelo até hoje escapando de forma engenhosa e simples do labirinto que, na certa, o mataria.

Borges no maravilhoso poema “Labirinto” diz que a vida é este lugar onde “nunca há porta”, pois “já estamos dentro”.

Somos postos no labirinto dando voltas, dando voltas, sem escape como castigo à deusa da sabedoria e inteligência. Presos no labirinto como castigo à Atena. À deusa da sabedoria, inteligência e do senso de justiça.

Genial o Borges ao dizer que não há portas, sem perceber já estamos dentro e genial o mito, que como bom mito encerra sabedoria, inteligência e senso de justiça.  

Pois bem, fiz a introdução e se o leitor quiser reler em algum momento esta crônica, dispense os primeiros parágrafos e comece pelo próximo, é legítimo de minha parte crer que nem todos conheçam a história do minotauro e menos ainda o espetacular poema de Borges. Próxima linha, por favor...

Muitos apontam como motivo da superficialidade de nossa época o excesso de internet aliado à escassez de livros. Alegam que nunca se leu tão pouco, nunca os debates foram tão superficiais e nunca “antes na história deste país” as pessoas se entregaram a tantas paixões vazias: sexo, drogas e sei lá que música completa a frase hoje ou no dia que você tiver contato com este texto. Prefiro o clássico: sexo, drogas e rock’n roll.

Me chama a atenção no mito o fato de serem jovens os entregues em holocausto, fico pensando, interpretando, confabulando aqui com os meus botões e imaginando que tudo não passa de uma grande lição para os púberes: ao atingir determinada idade, cuidado ao entrar no labirinto, você se perderá e em algum momento encontrará o monstro.

Borges diz que o labirinto é a vida em si, podemos e vamos nos perder e virar ração de minotauro.

Mas quando surge o Teseu o mito se transfigura, ganha um porém (lembrando que tudo dito antes do porém não tem muita importância, tudo antes do porém é apenas introdução, prefácio, preâmbulo), porque Teseu é o herói e como tal nos serve de modelo.

Há a possibilidade de escapar, há um jeito de obter a eternidade, a vida pode ter sentido, não precisamos ser os jovens que nem nome possuem, são apenas os jovens que são jogados para morrer no labirinto, diferentemente do filho de Egeu, o grande Teseu que tem, além da história do labirinto, uma outra que envolve um navio que vale a pena contar em outra crônica. Anotem e me lembrem mais tarde, quem sabe eu não fale algo a respeito, ou isso ou vocês podem assistir àquele seriado horroroso da Disney, o Wandavision. (Desculpe: seriado maravilhoso e cheio de conteúdo e significado que não quer apenas que você mantenha o olho pregado na tela à espera do próximo outro próximo episódio).

E voltando ao que dizia (escrevia), Teseu escapou do labirinto, mas antes matou o minotauro. E como realizou tal façanha?

Ao chegar em Cnossos, caiu de amores por Ariadne, a filha de Minos, e ela por ele. A moça ensinou-o como escapar, dando ao seu grande amor um novelo lã que deveria desenovelar mostrando por onde passou, assim conseguindo a fuga. Alerta de metáforas com muita sabedoria dos gregos à vista: aprender a olhar os próprios passos, ver a sua própria história e perceber que sem se dar conta dos próprios caminhos, tomar conhecimento dos lugares por onde se caminha dificilmente conseguirá escapar do labirinto (precisamos desenovelar o novelo para saber por onde caminhamos) e não é tudo.

De nada adianta fugir e ter um monstro assombrando a sua cidade, enfim, a sua vida. Teseu entrou no labirinto armado com um novelo de lã e uma espada e matou o minotauro.

Estando no labirinto que é a própria vida, onde somos lançados sem que ninguém peça a nossa opinião é fácil cair na velha conversa de que somos vítimas das situações, jogados como os sete casais da história. Mas não vou encerrar por aqui a metáfora, vou pular para o universo que dá título a este texto: a superficialidade de nosso mundo contemporâneo não é fruto de uma bolha construída pelas redes sociais, isso porque não há bolhas nas redes sociais, não há bolhas ideológicas, não há e repito com todas as letras que me permitem escrever: não há bolhas nas redes sociais. Meu estilo é pleonástico, vou repetir: não há bolhas nas redes sociais! Agora com um ponto de exclamação pra mostrar que estou sendo enfático.

Comparo as redes sociais ao labirinto construído com o objetivo de entreter, divertir, esvaziar o discurso dos jovens transformando-os em simples mercado consumidor, ou seja, uma vingança contra Atena a deusa da sabedoria, inteligência, do senso de justiça e das artes...

Há nesse labirinto o encontro com a morte, mas não se formos como Teseu e entrarmos armados com a lã e a espada.

Ao adentrar no universo virtual podemos muito bem continuar a mortificar a nós mesmos e assassinar o juízo de valores dos mais jovens, mas também podemos ser os Teseus e com um pouco de orientação, caminhar olhando para o que aprendeu com as próprias experiências e ter a coragem de enfrentar a fera. Matá-la. Voltar para o seu grande amor e dizer que a internet não é feita de bolhas, mas de labirintos e podemos sair dela muito maiores que quando entramos.

Tratar a internet como um universo de bolhas é ignorar que por ela navegamos, como Bartolomeu Dias jogado contra os rochedos do Cabo das Tormentas, assim como o navegador atacado por tempestades e temendo pela vida temos, mesmo sem saber, possibilidades de escapar (sim, possibilidades com s, no plural). Assim como o navegante português encontrou a saída, Teseu matou o minotauro e você não explode como uma bolha de ar ou de sabão, daquelas sopradas por um palhaço de praça à espera de algum trocado.

Podemos retornar como Teseus e sermos as Ariadnes de alguém, assim como Bartolomeu Dias retornou e ensinou o caminho da passagem pelo sul da África aos portugueses. Não só podemos como faz parte de nossa obrigação, não como o cara que saiu da caverna porque a internet não é caverna, é possível aprender muita coisa com ela, assim como no labirinto do minotauro e no oceano Atlântico do século XV.

É possível retornar vitoriosos como Teseus ao fim de cada mergulho no labirinto virtual e sim, é mais que possível ser a Ariadne de muita gente.

                                                                     Mauro Marcel

quarta-feira, 2 de junho de 2021

Revolution 9, Scorsese e Guernica

Eu gosto da experiência cinematográfica em todos os seus aspectos: leio críticas antes e após assistir aos filmes, vejo filmes cabeça, de ação, terror trash, gore, comédias besteiróis, cinema cult europeu, cinema bollywoodiano, coisa nova, coisa velha, indicados ao Óscar, injustiçados pela Academia e por aí vou. Desde muito jovem, sempre em grande quantidade.

                Uma vez houve que assisti a três filmes em sequência no cinema, pasmem, não recomendo nenhum dos três. Talvez escreva sobre esta experiência em outra crônica. Por hoje me atenho ao que me trouxe à pena, saindo da introdução dos dois primeiros parágrafos em que deixo muito claro que sou um conhecedor do que vou falar e que não aceito réplicas, pois quero minha crônica um tanto quanto axiomática. Apenas um pouquinho evidente me bastando por mim, humildemente é o que desejo.

                Pois bem, amo os filmes ruins. Adoro-os.

Os excelentes, os grandes clássicos são fáceis, são evidentes assim como meus axiomas.

Sempre entro pelos clássicos de Scorsese sabendo que terei das experiências cinematográficas o que há de melhor. E tome Taxi driver, Os bons companheiros, Casino, Touro indomável, Irlandês e o oscarizado Os infiltrados. Mas quero ver degustar com o mesmo apetite um New York New York de um toxicômano Scorsese e um desengonçado e ridículo de Niro.

                Vamos de Hitchcock, Coppola, Spielberg, Truffaut, Antonioni, etc. etc. etc. Com alguns deslizes dos gênios. (Quem nunca fez aquela cagada? Com a melhor das intenções, mas uma bela e grandiosa cagada.)

                Assim é a arte, assim a arte é. Nem toda pintura de Picasso é Guernica, nem apenas de Chega de saudade é feito João Gilberto. Quem dera toda banda fosse Beatles e tudo em Beatles fosse Álbum Branco e que no Álbum Branco não houvesse a horrorosa, odienta e salafrária Revolution 9. (Pra ser sincero em Beatles eu gosto de tudo até da revolução número 9, mas quis deixar claro meu ponto, portanto, mantenho: Revolution 9 sucks...)

                Vamos falar então do direito que todos têm de falar mal do que é ruim a partir do seu ponto de vista.

                Óbvio, não? Nenhum pouco.

                Experimenta falar algumas verdades sobre determinadas obras de arte, filme, música, gênero musical, artistas... chato. Chaaaaato...

Assim com o aaaaaaa esticado ao infinito. Seguido de reticências que é pra ser bem emblemático.

Quer dizer que eu não posso falar que não gostei de Bacurau? Sim. Este é o motivo desta crônica. Reivindicar o meu direito constitucional, humano, cinefilico, sim, o meu direito de cinéfilo de falar mal de um filme que achei um monte de baboseira em cima de um monte de baboseira. Para dizer pouco. Para não aprofundar, porque “em minha singela, humilde e axiomática opinião” o filme não vale o aprofundamento.  

                Veja só, não tenho nada contra o longa. O que me deixa um tanto quanto agressivo das ideias não é o filme em si, mas a rede de proteção ao redor da película impedindo qualquer um de criticá-la por razões políticas, ideológicas, sei lá, o inferno.

E já que falei vou esticar o que disse do Bacurau a Parasita, Pantera negra, toda a saga Star Wars a partir do terceiro e horroroso filme chamado O retorno de Jedi.

                Uau. Deu até uma desopilada no fígado.

                Repetindo incorrendo no perigo de ser repetitivo: não vejo grandes problemas nesses filmes, mas me cansa gente defendendo filme “porque sim”.

                Meninos. Meninas. Todo mundo tem direito de gostar e desgostar da obra de arte que quiser e criticar sem entender é tão errado quanto elogiar sem ter achado mérito algum para tal, apenas porque determinado grupo, crítico, famosinho de nicho (chamo assim, me recuso a escrever influencer). Apenas porque um famosinho de nicho disse que é bom, que é ruim. Que é isso. Aquilo. Outras coisas mais.

                Conheci tanta gente que só diz gostar de algo para estar perto das pessoas, eu fui assim com o heavy metal por muito tempo, tanto que acabei por gostar legitimamente. Gosto até hoje e muito mais que na adolescência. Mas sei de pessoas que não suportam cerveja amarga, cinema europeu, filme de arte, Ted talks, literatura alemã, verdadeira filosofia... mas quer parecer cult, cool, legalzinho descolado. Escrevi sobre isso há alguns anos: o hipster babaca.

                É difícil estar sozinho e às vezes posicionar-se a favor de algo que um grupo defende é uma forma legítima que as pessoas encontram para fazer amigos. Mas há um momento na vida de todo mundo em que se faz necessário crescer, viver cercado por menos pessoas e mais próximo de si mesmo: os próprios valores, construídos ao longo de uma vida de aprendizado, acertos e erros. Gostos peculiares ou não.

Reconhecendo a história que cada um construiu e que permite a si o direito de gostar ou não do que for. Empatia enfim. Empatia consigo próprio.

Nada demais. Não uma ideia muito nova: o Moço que morreu na cruz já dizia isso, mas vamos chamar de empatia então, mesmo consigo mesmo, a empatia inversa. Há aquela em que você se põe no lugar do outro e uma que também não é nova, a que você se põe no lugar de você mesmo, ouvindo suas próprias dores, valores, desejos e se permitindo falar o que pensa, o que sente, o que sabe, o que não sabe sobre arte, filme, música, a rebimboca da parafuseta e até sobre a ideologia política do amiguinho.

Momento de parar de mentir para si mesmo e dizer o que você realmente achou de Bacurau.

                                                                Mauro Marcel

terça-feira, 1 de junho de 2021

Redação nota 1000

            


              Há muitos anos trabalho com estudantes da Rede Estadual de São Paulo, quase sempre com alunos do Ensino Médio e quando os vejo se aproximando do fim deste ciclo, em muitos percebo a preocupação com os resultados que obterão no Exame Nacional do Ensino Médio – o ENEM.

Como sou professor de língua portuguesa, a redação se torna constante tema de aulas e conversas e muito escuto sobre a tal nota mil que “alguém conseguiu, foi um amigo do amigo de um amigo”, ou mesmo “um canal que vi na internet e dá dicas muito boas, você precisa conhecer, professor”.

            Sempre estar aberto a todas as fontes de informação já é uma dica, inclusive de quem passou pela experiência do ENEM e conseguiu a nota máxima, mas como opinião pessoal, ao me debruçar sobre os números, os constantes resultados do exame, ano após ano devo alertar ao vestibulando que é muito mais fácil escorregar e tirar zero que conseguir a nota máxima.

Portanto, mais do que buscar a perfeição, e ela tem que ser buscada, o estudante deve exercitar a leitura, a reescrita e a busca por repertório cultural.

Alunos da Rede Estadual Paulista conquistaram notas superiores a 950, mesmo em meio à pandemia. Estão de parabéns. Conquistar estas notas não são fruto do acaso, mas do resultado de um trabalho contínuo, fruto de muito esforço e dedicação.

Eis algumas dicas que ajudarão a melhorar a sua nota na redação do ENEM:

 

·         O ENEM pede o texto dissertativo argumentativo. É importante aprender a estrutura: tese, argumentos, proposta de intervenção;

·         Leia redações dos anos anteriores que conseguiram a nota máxima. Reescreva-as, percebendo o tamanho do texto em uma folha de caderno. O mais importante não é o tamanho, mas o conteúdo, é importante entender que a redação deverá ser um texto de fôlego e com certa profundidade, isto não se dá em meia dúzia de linhas;

·         Ao ler a proposta, busque compreender objetivamente o que se pede. Muita atenção: a proposta não é apenas o seu título, mas todos os textos motivadores preparados para o seu desenvolvimento;

·         Se posicione claramente frente ao tema, não fuja do assunto;

·         Use conectivos entre os períodos e interconectando os parágrafos (porém, contudo, desta forma, deste modo, assim, entretanto, no entanto, são alguns exemplos);

·         Os argumentos têm que sustentar a sua opinião (a sua tese), portanto devem servir de suporte para convencer o leitor de que a sua opinião é válida. Exemplos da vida pessoal nunca são uma boa ideia, dê preferência a pesquisas, escritores, autoridades ligadas ao assunto, exemplos de causa e consequência;

·         Muita leitura é importante neste ponto. Ter um repertório cultural que ajude a argumentar independentemente do tema é muito mais válido que decorar citações e tentar encaixá-las transformando seu texto numa espécie de colcha de retalhos. Funcionou com alguém uma vez? Pode ser. Funciona na maioria das vezes, não mesmo;

·         Um dos critérios de avaliação da redação do ENEM é a proposta de intervenção. Evite ser vago, busque objetividade na proposta, assim como em todo o texto, mas neste ponto procure explicar como, quem, o quê, de que forma a sua intervenção se desenvolveria se aplicada ao problema levantado no exame;

·         Ler bastante e bons livros ajuda não apenas a adquirir repertório, mas também a evitar escrever as palavras incorretamente. Os erros ortográficos retiram muitos pontos. Ler os clássicos da literatura também colaboram com isso.

·         Escrever não é um ato puramente intelectual, é quase uma atividade braçal, você precisa escrever, escrever, escrever e escrever. Estudar muito e ir além. Ofereça seus textos para que outras pessoas leiam: seu professor, família, colegas de turma, num blog, por exemplo. Perceba que a preocupação com o ponto de vista dos leitores o auxiliarão a buscar melhorias. Crie uma rede de leitores, lendo você também as redações dos seus amigos, debatam os temas e os pontos de vista uns dos outros. Escrevendo tanto, no momento da prova oficial o seu texto será apenas mais um dos tantos que já escreveu. Será muito mais tranquilo, não totalmente simples, porém você saberá no fundo do coração que fez o bom trabalho e que sua nota será o resultado de um processo que começou com leitura, apropriação do gênero, escritas, reescrita, além é claro, muito aprendizado.

                                                                          Mauro Marcel