segunda-feira, 25 de maio de 2015

Abujamra, Douglas Adams e Garcia Marques

                Lembro da primeira vez que entrei numa biblioteca: frustrante. Ficava no centro de Guarulhos a biblioteca Monteiro Lobato. Uma escada enorme preenchida por uma fila tomando todos os seus degraus, eu ficando durante duas horas nesta fila para fazer um trabalho sobre Bach que fora pedido pela minha professora de Educação Artística.
                No fim da fila um balcão e um monte de mulher feia recolhia uma ficha que preenchíamos com o título do trabalho e sozinhas adentravam o acervo, voltavam com um livro nas mãos, a página com a indicação do local que deveria ser copiado e a ordem de que isso penas poderia ser feito à lápis. Havia uma máquina de xerox e uma fila ainda maior para que a cópia fosse feita. Se você morou em Guarulhos nesta época e teve de fazer alguma pesquisa escolar sabe do que estou falando.
                A minha grande alegria ao entrar numa biblioteca aconteceu quando eu já havia largado a escola. Nesta mesma biblioteca numa seção que eu desconhecia: a de empréstimos. Ali eu me encontrei enquanto leitor. É claro que antes eu já lia muito, frequentei um armazém na minha antiga escola secundária onde os livros eram estocados sem nenhum critério, mas não naquele local. Na seção de empréstimos eu poderia folhear os livros, entrar em contato com as orelhas, as gravuras, o envelhecimento dos livros.
                Aprendia alguns macetes para descobrir se um livro era bom ou não. Numa época sem internet, sem a possibilidade de ler resenhas eu percebia quão bom o livro era pela velhice de suas páginas. Se um livro não tinha nenhuma orelha, estava novinho em folha, eu dificilmente o levaria pra casa.
                Outro macete era procurar o número de matrícula de alguém e perseguir as leituras feitas por aquela pessoa. Era fácil, uma ficha ficava localizada na contra capa do livro e tinha o número cadastral de todos os que o haviam pego emprestado. Folheando as fichas era fácil encontrar pessoas com interesses, indicações, arrependimentos, pessoas que desapareciam, números repetidos, pessoas que pegavam o mesmo livro várias e várias vezes.
                Assim eu fui me fazendo, me construindo, desconstruindo-me. Lendo e relendo. Nomes aparecendo na minha vida de pessoas que eu jamais conheci ou conheceria, pensamentos que nunca surgiriam na minha cabeça, livros e mais livros: Stendhal, Marx, Proust, Garcia Marques, Kafka, Veríssimo pai e Veríssimo filho, Machado de Assis, Cortázar, Manuel Bandeira, Drummond, Mário e Oswald de Andrade, Clarice Lispector, Rubem Fonseca, Shakespeare, Dante, Camões e muito muito mais.
                A biblioteca era para mim um templo sagrado. Lia muito e relia também. Houve um momento em minha vida em que fechava os olhos e via letras se cruzando, embaralhadas, vozes na minha cabeça. Eram os cadáveres insepultos de escritores mortes há cem, quinhentos anos e mais falando diretamente na minha cabeça.
                Nunca deixei este hábito, o de ler, houve momentos da minha vida em que li menos, mas sempre com um livro embaixo do braço. Ganhei fama de inteligente, fama que não mereço, prefiro o termo intelectual, o que não é melhor que a primeira definição, apenas diferente. Um intelectual seria uma pessoa que gosta de estudar, se dedica aos livros, gosto deles, sou um bibliófilo assumido. Seguro os livros com muito prazer e é isso.
                Mas escrevo no dia 25 de maio. Dia internacional da cultura geek. No dia 25 de maio de 1977 foi lançado o primeiro filme Guerra nas Estrelas e há algum tempo esta data foi escolhida para ser o dia da toalha. Uma associação nerd entre o filme dos jedis e o livro de Douglas Adams “O guia do mochileiro das galáxias”. O dia da toalha. Seria um dia em que todo nerd deve sair à rua com uma toalha no ombro. Os motivos são explicados no livro supra citado, se você não sabe do que estou falando procure melhores informações na internet. O fato é que no meu tempo (e já se passaram quase vinte anos) um intelectual frequentava bibliotecas, lia, relacionava, associava ideias, pensava, enfim, reconhecia que a vida era muito mais que se fantasiar de personagem e fingir que a vida é o que de fato nunca será: uma fantasia.
                Dentro deste pensamento eu admito que cada um é livre para fazer o que quiser, pensar como quiser, se fantasiar de Sailormoon ou Mario Bros, apenas indico como é temeroso o mergulho nas fantasias de um mundo irreal.
                Algumas semanas antes morreu Antonio Abujamra, um expert em teatro, filósofo, intelectual que deve ter feito mergulhos muito mais profundos em bibliotecas muito maiores que as que eu mergulhei e ele também vestia fantasia, também imaginava, também fingia ser quem não era. Mas depois de vestir-se de Hamlet, Tartufo ou Cyrano de Bergerac ele começou a inventar os próprios personagens e fazendo isso foi grande, foi gênio.
                Raul Seixas dizia que antes de ler o livro dado pelo guru é necessário escrever o próprio. Renato Russo também: “se você quiser se divertir escreva suas próprias canções”.
                Que tal então povo geek? O que vocês acham da minha ideia seu nerdizinho vestido de Harry Potter? Em vez de se esconder atrás de uma fantasia comprada na estação Liberdade ou costurada pela sua mãe, em vez de se vestir de zumbi no dia de finados, que tal em vez de fazer isso você encarar a realidade, inventar suas próprias fantasias e divulga-las ao mundo.
                Que tal escrever suas próprias histórias?
                Cantar sua própria canção?
                Aí podemos imaginar que pode haver vida em Marte, nos perder em garagens de hotel, retratos, viagens, alucinações, visões e num futuro viver intensa e eternamente nas cabeças, nas prateleiras das bibliotecas ao redor do mundo.