terça-feira, 1 de julho de 2025

Goonies, Chinatown e uma lente embaçada.

 

Era uma vez um tempo em que a tela do cinema era uma janela aberta para o impossível — e nós, espectadores, nem sabíamos o quanto éramos felizes. O mundo dos anos 70, 80 e 90 vivia sob a luz difusa dos projetores, e as histórias que passavam por ali não eram apenas histórias. Eram mitologias modernas, evangelhos profanos, delírios de celuloide. A sala escura tinha algo de templo, o ingresso era um bilhete para o extraordinário, e os olhos fixos na tela eram orações mudas de quem acreditava na beleza do mundo.

Nos anos 70, o cinema sangrava com estilo. Taxi Driver nos apresentava Travis Bickle, o profeta do caos urbano, suado e paranoico, perguntando ao espelho se estávamos falando com ele. Estávamos. E seguimos falando com ele até hoje, mesmo que a cidade tenha trocado os becos escuros pelos shoppings iluminados. Apocalypse Now transformava a guerra em pesadelo lisérgico, com helicópteros ao som de Wagner e coronéis enlouquecidos sussurrando "o horror". O Poderoso Chefão ensinou ao mundo que até o crime podia ser orquestrado com a solenidade de uma ópera. E Chinatown, com seu noir ensolarado, nos lembrou que o mal nem sempre se esconde na sombra — às vezes ele brilha à luz do dia.

Nos 80, o cinema se entregou à infância da humanidade. Era um tempo em que o fantástico era possível, em que os alienígenas queriam voltar para casa e as crianças podiam salvá-los pedalando contra a lua. E.T. não era apenas um filme, era uma carta de amor à empatia. Os Goonies nos ensinavam que amizades verdadeiras cabiam em bicicletas, que havia mapas secretos e que adultos não entendiam nada. Os heróis eram improváveis — como Indiana Jones, um arqueólogo que tinha medo de cobras — ou invencíveis, como o Exterminador do Futuro, que voltava do amanhã com olhos vermelhos e uma promessa: "I’ll be back". E ele voltou. Várias vezes.

Mas os anos 80 também sabiam do escuro. Amadeus nos mostrou que o talento não precisa ser virtuoso — pode ser debochado, sujo e divino. O Iluminado levou o terror para dentro de um hotel vazio e nos deixou presos com Jack Nicholson e sua máquina de escrever repetindo obsessivamente que "todo trabalho e nenhuma diversão fazem de Jack um bobão". E Blade Runner, talvez o maior presságio de todos, perguntou se androides sonham com ovelhas elétricas — enquanto nós, humanos, parávamos tudo para ouvir um replicante morrer falando sobre lágrimas na chuva. E ninguém mais escreveu uma cena como aquela.

Aí vieram os 90, a década em que o cinema parecia se vingar da ingenuidade anterior. As histórias ficaram mais cínicas, mais autênticas, mais desafiadoras. Os vilões eram mais sedutores do que os mocinhos. O Silêncio dos Inocentes nos apresentou Hannibal Lecter, com sua polidez assustadora, sua voz suave e seus olhos devoradores. Pulp Fiction transformou o submundo em poesia pop, com danças desajeitadas, diálogos filosóficos sobre hambúrgueres e tiros no banco de trás. Clube da Luta quebrou o espelho e nos mostrou o que está por trás do rosto que mostramos ao mundo. E Matrix, com seu coquetel de filosofia, artes marciais e rebeldia digital, nos deu uma escolha: realidade ou ilusão?

Naquela época, o cinema não era só entretenimento. Era identidade, era linguagem, era catarse. A gente se via nos personagens — mesmo nos mais tortos. Eles nos mostravam o que éramos, o que escondíamos, o que queríamos ser. O herói não precisava salvar o mundo: bastava salvar a si mesmo. E, curiosamente, era isso que nos salvava também. Havia espaço para ambiguidade, para dúvida, para silêncio. As cenas demoravam mais. Os planos sabiam esperar. Os roteiros confiavam na inteligência de quem assistia.

Era o auge — e não nos demos conta. O cinema era arte antes de ser algoritmo. Era ousadia antes de ser estatística. As histórias não eram testadas por grupos de pesquisa, não eram escritas por comitês, não precisavam ter dez sequências. Um filme podia nascer, brilhar e morrer ali mesmo — e isso bastava. A falta de efeitos digitais era compensada com o excesso de alma. Os erros de continuidade eram poéticos. A lente embaçada, às vezes, dizia mais que mil diálogos.

Hoje, tudo é mais rápido, mais limpo, mais redondo. Mas também mais raso. Os filmes atuais têm a textura dos comerciais. São bonitos, eficientes, mas esquecíveis. O que falta é o excesso, o descontrole, a ousadia — aquilo que fazia do cinema um risco. A tela ainda existe, os atores ainda estão lá, mas algo se perdeu no caminho. Talvez a urgência. Talvez a inocência. Talvez nós mesmos.

Mas ainda há tempo. Ainda podemos voltar. Ainda é possível abrir o baú das fitas empoeiradas, dos DVDs riscados, das plataformas escondidas com “clássicos”. É possível revisitar Forrest Gump e entender que a vida, de fato, é uma caixa de chocolates. É possível ouvir Robin Williams em Gênio Indomável dizendo: “Você não é perfeito. E vou te poupar o suspense: a garota que conheceu também não é.” É possível rever Cinema Paradiso e lembrar que o cinema nunca foi sobre filmes — mas sobre sentimentos.

Voltem aos filmes. Ou visitem, se nunca os viram. Eles não são antigos. São eternos. Lá estão os grandes personagens, as grandes histórias, os grandes riscos. Lá está a verdade vestida de fantasia. A lágrima disfarçada de ação. O riso que vem depois do medo. O amor que brota em meio ao caos.

Porque houve um tempo em que a tela escura se iluminava e nos tornávamos maiores do que somos. Nós vivemos isso. Intensamente. E, mesmo sem saber, tocamos o sublime.