Me disseram outro dia, com ares de triunfo, que uma peça de teatro foi cancelada porque “ofendia minorias”. O verbo usado foi esse mesmo: cancelada. Sem julgamento, sem debate, sem direito à defesa ou dúvida. Uma avalanche de posts indignados, meia dúzia de “influenciadores” em coro e pronto: fim do espetáculo. Achei que fosse exagero, fake news, dessas que circulam em grupos de WhatsApp com letras garrafais e emojis alarmistas. Fui verificar (coisa rara nesse mundo). Era verdade.
Não sei você, mas fui criado ouvindo que liberdade de expressão era um valor inegociável, desses que a gente defende mesmo quando discorda do que está sendo dito. Lembro de uma frase atribuída a Voltaire — ou a alguém que leu Voltaire e quis parecer culto — sobre defender até a morte o direito do outro dizer algo com o qual não se concorda. Hoje em dia, essa frase é motivo de cancelamento. Defender o direito de alguém falar já te torna cúmplice do que foi dito. E isso é assustador.
Lembro do velho compositor baiano me dizendo: “É
proibido proibir, é proibido!”
Mas não é disso que quero falar agora. O que me
interessa aqui é o novo teatro social em que somos obrigados a atuar. Uma
encenação diária, onde cada um deve repetir as falas certas, entoar os
discursos certos, usar os pronomes certos, preferencialmente na ordem certa —
e, claro, com a entonação correta. Do contrário, ofenderá alguém, e ofender é
hoje o pior dos pecados. Pior que mentir. Trair. Roubar. Matar. Jogar pedra em
avião. Encoxar a mãe no tanque.
É imperdoável porque é subjetivo.
Talvez estejamos vivendo uma releitura contemporânea
de 1984, mas numa versão com filtro colorido do Instagram. No lugar do
Grande Irmão, temos pequenos irmãos (medíocres irmãozinhos), milhares deles,
com seus celulares, suas timelines e seus dedos apontando. A diferença é que
agora somos nós mesmos que nos policiamos. Cada vez que vamos escrever um post,
gravar um vídeo, fazer um comentário no almoço da firma, pensamos: “Será que isso
vai pegar mal?”. E aí calamos. Não por respeito, mas por medo. E se não pensamos,
deveríamos. Ah sim, deveríamos...
Essa cultura, chamada por aí de “woke”, tem nome
bonito, promessa bonita. Fala de empatia, inclusão, respeito às diferenças. Mas
como tudo que se radicaliza, perdeu o ponto. Está menos interessada em justiça
e mais em controle. Menos em ouvir o outro e mais em silenciar. Mas calar os
outros não melhora o mundo — só o torna mais hipócrita.
Tenho saudade do tempo em que as pessoas podiam errar
em público e aprender com isso. Hoje, se você erra, está marcado. Não há espaço
para arrependimento. Não há caminho para o retorno. Quem tropeça uma vez é
empurrado para fora da arena. E o mais cruel: sob aplausos (virtuais, mas ainda
assim aplausos...)
Claro que há limites. Ninguém está defendendo discurso
de ódio, nem apologia ao crime. Há uma diferença brutal entre ofensa
intencional e discordância sincera. Entre preconceito e opinião. E se a gente
não souber mais a distinção, perderemos muito mais que debates acalorados.
Vamos perder a própria alma do convívio democrático.
Talvez por isso, outro dia, tive um momento de
estranha admiração por um velho amigo que falou uma barbaridade sem pestanejar.
Disse com convicção, sabendo que ia desagradar, mas disse. Não porque estivesse
certo — aliás, estava bem errado. Mas porque teve a coragem que falta a tantos:
a de ser sincero. Num mundo de verdades empacotadas, ser sincero é o novo tabu.
E talvez, se não fosse por essa minha mania de ver
literatura em tudo, eu não me lembrasse agora de Cordélia — aquela de Rei
Lear, lembra? A que falou a verdade e foi punida. A que preferiu ser
íntegra a ser conveniente. Acho que estamos precisando de mais Cordélias e
menos Lear. Ou, quem sabe, de plateias dispostas a ouvir Cordélias sem
apedrejá-las por não fazerem parte do coro.
Até a próxima crônica. Se não for cancelada antes.