quarta-feira, 30 de abril de 2025

Woke, Cordélia e um antigo compositor baiano

Me disseram outro dia, com ares de triunfo, que uma peça de teatro foi cancelada porque “ofendia minorias”. O verbo usado foi esse mesmo: cancelada. Sem julgamento, sem debate, sem direito à defesa ou dúvida. Uma avalanche de posts indignados, meia dúzia de “influenciadores” em coro e pronto: fim do espetáculo. Achei que fosse exagero, fake news, dessas que circulam em grupos de WhatsApp com letras garrafais e emojis alarmistas. Fui verificar (coisa rara nesse mundo). Era verdade.

Não sei você, mas fui criado ouvindo que liberdade de expressão era um valor inegociável, desses que a gente defende mesmo quando discorda do que está sendo dito. Lembro de uma frase atribuída a Voltaire — ou a alguém que leu Voltaire e quis parecer culto — sobre defender até a morte o direito do outro dizer algo com o qual não se concorda. Hoje em dia, essa frase é motivo de cancelamento. Defender o direito de alguém falar já te torna cúmplice do que foi dito. E isso é assustador.

Lembro do velho compositor baiano me dizendo: “É proibido proibir, é proibido!”

Mas não é disso que quero falar agora. O que me interessa aqui é o novo teatro social em que somos obrigados a atuar. Uma encenação diária, onde cada um deve repetir as falas certas, entoar os discursos certos, usar os pronomes certos, preferencialmente na ordem certa — e, claro, com a entonação correta. Do contrário, ofenderá alguém, e ofender é hoje o pior dos pecados. Pior que mentir. Trair. Roubar. Matar. Jogar pedra em avião. Encoxar a mãe no tanque.

É imperdoável porque é subjetivo.

Talvez estejamos vivendo uma releitura contemporânea de 1984, mas numa versão com filtro colorido do Instagram. No lugar do Grande Irmão, temos pequenos irmãos (medíocres irmãozinhos), milhares deles, com seus celulares, suas timelines e seus dedos apontando. A diferença é que agora somos nós mesmos que nos policiamos. Cada vez que vamos escrever um post, gravar um vídeo, fazer um comentário no almoço da firma, pensamos: “Será que isso vai pegar mal?”. E aí calamos. Não por respeito, mas por medo. E se não pensamos, deveríamos. Ah sim, deveríamos...

Essa cultura, chamada por aí de “woke”, tem nome bonito, promessa bonita. Fala de empatia, inclusão, respeito às diferenças. Mas como tudo que se radicaliza, perdeu o ponto. Está menos interessada em justiça e mais em controle. Menos em ouvir o outro e mais em silenciar. Mas calar os outros não melhora o mundo — só o torna mais hipócrita.

Tenho saudade do tempo em que as pessoas podiam errar em público e aprender com isso. Hoje, se você erra, está marcado. Não há espaço para arrependimento. Não há caminho para o retorno. Quem tropeça uma vez é empurrado para fora da arena. E o mais cruel: sob aplausos (virtuais, mas ainda assim aplausos...)

Claro que há limites. Ninguém está defendendo discurso de ódio, nem apologia ao crime. Há uma diferença brutal entre ofensa intencional e discordância sincera. Entre preconceito e opinião. E se a gente não souber mais a distinção, perderemos muito mais que debates acalorados. Vamos perder a própria alma do convívio democrático.

Talvez por isso, outro dia, tive um momento de estranha admiração por um velho amigo que falou uma barbaridade sem pestanejar. Disse com convicção, sabendo que ia desagradar, mas disse. Não porque estivesse certo — aliás, estava bem errado. Mas porque teve a coragem que falta a tantos: a de ser sincero. Num mundo de verdades empacotadas, ser sincero é o novo tabu.

E talvez, se não fosse por essa minha mania de ver literatura em tudo, eu não me lembrasse agora de Cordélia — aquela de Rei Lear, lembra? A que falou a verdade e foi punida. A que preferiu ser íntegra a ser conveniente. Acho que estamos precisando de mais Cordélias e menos Lear. Ou, quem sabe, de plateias dispostas a ouvir Cordélias sem apedrejá-las por não fazerem parte do coro.

Até a próxima crônica. Se não for cancelada antes.

terça-feira, 29 de abril de 2025

Inteligência Artificial, burrice natural e outras contradições

Sou apaixonado por tecnologia – fascinado com os avanços, entusiasmado com as possibilidades – mas morro de medo da inteligência artificial. 

E, assim sendo, trago em mim uma bela bagunça ideológica, um samba do criador e da criatura, uma crise existencial digna de qualquer episódio de Black Mirror.

 Escrevo, portanto, como forma de colocar alguma ordem nesse colapso mental pós-moderno em que todos estamos metidos até o pescoço, com um celular na mão e uma alma perdida em algum algoritmo.

 Porque, vamos falar a verdade: há algo de grandioso e assustador acontecendo ao mesmo tempo. De um lado, robôs que escrevem, pintam, diagnosticam câncer, operam com precisão milimétrica, dirigem carros e corrigem erros que humanos não enxergam. 

Do outro, multidões viciadas em TikTok, acreditando que a Terra é plana, que vacina transmite chip e que o ChatGPT vai roubar seu emprego de frentista. 

É um paradoxo bonito de se ver: a era mais inteligente da história convivendo com o auge da ignorância produzida em escala industrial. 

E mais bonito ainda é o surto coletivo: há os evangelistas da IA, que veem no avanço tecnológico a salvação da humanidade, e há os apocalípticos, que já estão construindo bunkers no interior de Goiás com medo da Skynet. Nenhum dos dois lados entendeu nada. 

Porque, ao contrário do que dizem os gurus da inovação, a IA não é neutra, nem pura, nem imparcial. Ela é treinada com dados humanos. E humanos são preconceituosos, contraditórios, falhos, egoístas, geniais, idiotas — tudo junto e misturado. 

Alimentamos as máquinas com nossas escolhas, nossos vícios, nossos históricos de pesquisa no Google, nossas fotos com filtro e nossos preconceitos mais bem disfarçados. Ou seja: a inteligência artificial nada mais é do que a burrice natural organizada em código binário. 

E o que me assusta nem é ela. É a gente. Porque a IA não odeia. Mas pode replicar ódio. Não ama. Mas pode manipular desejos. Não acredita em Deus. Mas pode distribuir doutrina religiosa personalizada com base no seu CEP. Não sente inveja. Mas pode enganar com a maestria de um político em véspera de eleição. 

E o que fazemos com tudo isso? Damos poder. Delegamos decisões, terceirizamos pensamentos, pedimos que ela diga o que vestir, o que escrever, o que comer, quem amar. 

E, aos poucos, vamos perdendo a capacidade mais essencial do ser humano: a dúvida. Duvidar é revolucionário. 

E a IA não duvida de si. Ela afirma. Baseada em dados, padrões, estatísticas. O problema é que a vida não se resume a padrões. Ela é cheia de exceções. 

E é nessas exceções que moram a arte, o amor, o erro, o perdão, a graça da existência. Por isso, me declaro aqui em conflito: amo a IA. Uso, estudo, implemento, me deslumbro. 

Mas, ao mesmo tempo, desconfio, questiono, me afasto e temo pelo dia em que ela substituirá não os trabalhos braçais, mas os humanos sensíveis. 

Porque, sim, é possível que um robô opere meu coração com mais precisão do que qualquer cirurgião. Mas será que ele saberá o que fazer quando, no meio do procedimento, eu chorar por medo de morrer? 

A inteligência artificial pode processar bilhões de informações por segundo. Mas não sabe lidar com o silêncio de um luto, com o olhar perdido de uma criança abandonada, com o peso da saudade. Portanto, convivo muito bem com essa contradição dentro de mim: sou entusiasta da IA, mas também seu crítico mais ferrenho. Paradoxal? Sim. Como tudo em mim, em ti, em nós. 

E fico triste com essas tentativas de moldar a discussão em termos simplistas: “quem não abraça a IA é ultrapassado”, “quem alerta para os riscos é tecnofóbico”. Não. O debate é muito mais profundo. Exige nuance, exige ética, exige humildade diante do que ainda não compreendemos. 

O Brasil, como sempre, chega atrasado ao debate. Com escolas sem internet, professores mal pagos e um ensino que ainda ensina o que decorar, não o que pensar. E nesse vácuo educacional, a IA vira messias ou demônio. Nunca ferramenta. A solução? 

A de sempre. Educação. Porque, no fim das contas, mais perigosa do que qualquer inteligência artificial é a burrice natural institucionalizada e premiada com cargo público.

Se ensinarmos as pessoas a pensar, talvez a IA sirva para nos libertar — e não para nos vigiar. 

Talvez o futuro seja promissor. Talvez apocalíptico. 

Mas enquanto houver gente disposta a pensar com a própria cabeça, ainda há esperança.