Rei Lear. Este é o
motivo. Acabei de relê-lo e ao fim da leitura me deparei com um livro que não
havia encontrado na adolescência. Lia sem critério, apenas devorando, engolindo
sem saborear. Dessa vez pude fazer associações, relacioná-lo com a vida real,
com o mundo que me cerca e que o cerca também, você que agora lê esta crônica e
é leitor de Shakespeare, você que nem sabe do que estou falando.
Lear é um rei idoso
que decide dividir seu reino em partes iguais entre as três filhas. Para tal
organiza uma cerimônia em que pede para cada uma dizer o quanto o ama. A filha
mais velha diz que o ama mais que a tudo no mundo, seguida pela do meio que diz
amá-lo ainda mais que a mais velha. A mais jovem, Cordélia, diz que o ama
apenas como pai, com o dever de filha, nem mais nem menos. Quando questionada
duramente pelo rei sobre a dureza de suas palavras a moça diz que ainda não se
casou e que ao se casar teria de dividir o amor que sente pelo pai com seu
marido, não era como as irmãs que já eram casadas e diziam amar o pai acima de
tudo, inclusive de seus próprios maridos, talvez filhos. O rei, pai de
Cordélia, faz o que se espera de um rei, ou de um pai, ou de um ser humano
qualquer ao ouvir tanta verdade: expulsa a filha de sua vida.
Este é o motivo da tragédia
shakespeariana, apenas a primeira cena e me deterei nisso nesta crônica.
Muitas outras
interpretações podem ser feitas da obra, deste início de obra e acreditem,
muitas interpretações foram feitas. Muitas ainda serão. Contribuo com a minha,
que nem deve ser original:
Rei Lear representa
qualquer um de nós, todos nós. Cordélia também nos representa. Todos somos Lear
e Cordélia e explico de forma muito objetiva utilizando exemplos da nossa
sociedade, como sei que o mesmo se aplicava à época de Shakespeare, daí sua
grandiosidade.
Lear conhece o
poder, sabe da ambição que desperta em todos. Não está, portanto, interessado
em verdades. Está interessado em lisonja, em bajulação. Organiza para tal uma
celebração em que todos vestem máscaras, todos têm de atuar segundo suas
regras. Quando digo suas, digo “as regras do rei”.
Você quer o benefício do estado? Precisa dizer o que
eu quero ouvir. Quer ser cuidado por mim? Me agrade. Pareça uma pessoa boa. (Para
mim – que tenho poder sobre você).
Não importam suas atitudes, o que importa é o que
você diz, como você finge iludir as pessoas que o cerca.
Qual o erro de Cordélia? Romper com o teatrinho
social organizado por Lear. Por isso Lear somos nós, impossíveis de ouvir as
verdades, acreditando mais nas palavras que nas ações das pessoas. Difícil
encontrar uma Cordélia no mundo e quando a encontramos a defenestramos de
imediato. Me diz, por que eu quereria alguém ao meu lado dizendo verdades atrás
de verdades, mesmo que tivesse dela o mais puro amor que alguém poderia ter por
mim?
Na esfera social percebo muita gente defendendo
minorias, camadas sociais desfavorecidas, pessoas em situação de insegurança
alimentar etc., falando o que é certo porque é o que é certo falar. Não falam
com o coração porque na primeira oportunidade que tiverem de mostrar ao mundo o
que habita seus corações, acredite: mostrarão.
Nesse sentido também somos Cordélias. Minto, na
verdade o nosso desejo é o de ser Cordélia, mas estamos todos muito mais para
Goneri e Regan, as filhas mais velhas do rei.
Cada vez que agimos como Cordélias afastamos mais e
mais pessoas. Aprendemos isso na primeira infância e repetimos a lição vida
afora. Construindo ao nosso redor o que a cientista política Elisabeth
Noelle-Neumann chama de “espiral do silêncio”. Mas não apenas isso.
É emblemático ver Rei Lear dividindo seu reino entre
as filhas, me faz pensar no Estado, esse com “E” maiúsculo, financiando eventos
culturais, projetos acadêmicos, contratando empresas. Penso também no que
precisamos falar para receber nosso pedacinho deste reino e no que acontece com
quem “cordeleia”. (O editor de texto grifou a palavra, acho que inventei o
termo, mais provável que não).
Também penso nas pessoas com os discursos prontos,
discursos preparados para parecer um cidadão probo, defensor dos fracos e
oprimidos e pensando nisso penso no que habita o coração de todos que assim
agem, ou seja, todas as pessoas do mundo, e como ser mais íntegro de fato.
Sendo honesto comigo e com todos e conseguindo conviver em uma sociedade
acostumada a isso.
Talvez a resposta seja continuar a peça até que o
pano caia, ou, e isso precisa mesmo de maturidade, conhecer as pessoas certas e
os lugares adequados em que podemos ser nós mesmos, sem máscaras, sem medo de
dizer o quanto amamos e odiamos tudo nesse mundo lindo, feio, lúcido e louco.
Sem medo de parecer estúpido ou horrível. Sem medo de ser estúpido e horrível. Porque
a verdade, quando acompanhada de gente leal e verdadeira não nos enfeia, nos
revela.
Talvez se alguém tivesse conversado comigo sobre Rei
Lear e Shakespeare e tal eu fosse um ser humano melhor. Talvez por isso
obriguem os jovens a lerem os clássicos.
Esqueçam o primeiro parágrafo. Vou lutar por uma lei
que obrigue a todos em qualquer parte a lerem tudo o que é bom segundo os meus
critérios. É isso.
Até a próxima crônica!
Por Mauro Marcel
mauromarcel@gmail.com
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