sexta-feira, 13 de agosto de 2021

Borba Gato permanece ereto

Eu acredito no poder transformador e revolucionário da educação. Ou simplesmente: eu acredito no poder da educação. Ou mais simples ainda: eu acredito na educação. Dito isso, posso começar a desenvolver o argumento sobre o tema que me traz à pena.

              Sim. À pena, e a duras penas venho escrever sobre a derrubada (na verdade a tentativa de derrubada) da estátua do bandeirante Borba Gato.

              Vamos à opinião: eu acredito na educação, em seu poder transformador e acredito que os professores são fundamentais para uma sociedade saudável, consciente e justa.

              Ou em busca de.

              Quem foi Borba Gato? Pouco importa. Verdade. Pouco importa ao debate. Mas como sempre fico me adiantando, me achando um Brás Cubas indo e vindo com meu texto. Vou do começo. Se for indicar esta leitura a um amigo, peça que inicie pelo próximo parágrafo, nada de interessante foi dito nos anteriores.

              No dia 24 de julho de 2021 um grupo decidiu incendiar uma estátua que fica em São Paulo na avenida Santo Amaro. A personagem retratada na figura é a do bandeirante Borba Gato. Esta é a notícia principal que completo com a informação que a escultura não veio abaixo, resistiu firme, com diversas avarias, é claro, e prejuízo aos cofres públicos que terão de arcar com o conserto causado pelo ataque.

              Conversei com muita gente sobre o ocorrido, muita pessoa inteligente, muito historiador, alguns livros, vídeos sobre a história dos bandeirantes.

Escrevo quase um mês após o ocorrido, a estátua ainda chamuscada e em pé, não caída como a dos Budas destruídos pelo Taliban, nem perdida como os livros incendiados da biblioteca de Alexandria.

              Deste modo: muitos já destruíram muita coisa em defesa de verdades e muitos também destruíram em defesa de mentiras, quem sou eu pra julgar? Falo de orelhada. Sou um simples professor de educação básica. Um simples amante de arte e a estátua nem era, como direi, assim tão artística. Sou um aficionado por história do Brasil e do mundo, Borba Gato nem é alguém tão relevante. Quem sou eu na fila da pamonha? Quem sou eu ao relacionar de algum modo um bandido (bandeirante) com elementos culturais reconhecidos como excepcionais mundo afora.

Lá vem ele comparar o assassino bandeirante com Rodin, Brecheret, o nariz da esfinge, o olhar da Gioconda...

              Isso mesmo. Vamos pôr fogo nas estatuas, vamos queimar e sem deixar traços para as próximas gerações não permitiremos que nossos netos, bisnetos e tataranetos compreendam o mundo que habitam com a devida perspectiva histórica.

              Esqueçam o Borba Gato, esqueçam de quem se trata.

Vamos começar por este parágrafo. Aqui começa a crônica. Deleta o que foi anteriormente escrito. Incendeie!

Estamos num Brasil que queima estátua em praça pública.

Por hora vou chamar de vândalo a quem incendeia o patrimônio histórico independentemente do juízo de valor que possa dele (o patrimônio histórico) independentemente do juízo de valor que possa dele ser feito.

              Nos últimos anos houve incêndios devastadores no Memorial da América Latina, Museu da Língua Portuguesa, Museu Nacional, depósito da Cinemateca Brasileira, esqueci algum? Ah é... A estátua do Borba Gato. Tudo devastado pela ação ou omissão de vândalos. Sem falar do alagamento que destruiu a cidade de São Luiz do Paraitinga no Vale do Paraíba, o deslizamento de rejeitos de mineração em Mariana, incêndio em igreja histórica em Ouro Preto... o Brasil não é para amadores.

              A partir do momento que é retirado das pessoas o acesso à perspectiva histórica só possível pela educação e contato com sua trajetória humana e pessoal, legamos às futuras gerações a eterna repetição de modelos fracassados de poder e sociedade.

Legamos fracasso e mais fracasso, uma sociedade sem memória, sem passado, sonegada da possibilidade de julgar os erros de seus antepassados e aprimorar, mudar. E como? Com educação. Sabe por quê? Porque eu acredito na educação. Eu acredito no poder transformador e revolucionário da educação e por isso sou contra a queima do nosso patrimônio histórico.

No livro “Terra sonâmbula” Mia Couto levanta o debate sobre uma sociedade sem passado, fruto de uma guerra civil que matou os pais e os avós, deixando as crianças soltas no mundo, vagando sem história, retirantes de lugar nenhum, sem saber de onde vieram, como saber para onde irão?

No caso de Moçambique a crítica é direta às consequências da guerra civil pós processo de independência. No Brasil há um processo outro. Um processo que nos leva a cada dia, a cada instante, a cada novo incêndio, alagamento, fechamento de museu, cortes em orçamento, vandalismo em prédios tombados pelo patrimônio, destruição de estátuas, elevação de ícones da cultura pop a intelectuais respeitadíssimos nas discussões acadêmicas, exclusão de clássicos das bibliotecas, aulas e debates.

Se fizerem uma fogueira e queimarem os livros, talvez um dos que exaltam a destruição das estátuas se erga contra os que assim agem. Mas não acredito, o mais provável é que festejem a destruição de todo e qualquer contraditório que percebem como inimigos e adversários e não como o que de fato são: diferentes.

Até onde me lembro, pensar diferente deixou de ser crime desde a Declaração dos direitos do homem e do cidadão em 1789.

Mas há pessoas que não leram nada a respeito. Não leram e nunca lerão. E o que é pior: se recusam a permitir que outros tenham acesso ao mundo diferente do que entendem como o ideal.

Eu sei no que isso transformou o mundo num passado não tão distante. E num distante também. É a história se repetindo ad infinitum como farsa após farsa. Incêndio após incêndio.


Por Mauro Marcel

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