Lembro com saudade do professor Eugênio. Nunca fui seu aluno, nunca tivemos uma conversa a sós (além da que motivou esta crônica, obviamente), não o recebi em casa, nem fui visitá-lo quando soube de sua internação pelo câncer que já atingia seus ossos.
Na
última vez que o vi tinha um olhar sereno: “eu cheguei antes do câncer, tenho
mais direito de estar aqui do que ele”, mas partiu. Já era um senhorzinho
grisalho, simpático lorde de fala calma, daqueles homens raros inclusive nos
velhos tempos, dos que não precisam pedir silêncio para falar, porque ao dizer,
o que quer que fosse, todos dão atenção.
Não
sou de entrar em rodas de conversa iniciadas sem mim, tímido ao extremo, por
vezes sofro pela minha falta de tato social, mas naquela roda estava o
professor Eugênio e sempre gostei de sua conversa, verdadeiras aulas, aquela já
havia se iniciado há algum tempo. Alguns minutos depois me vi sozinho com o
professor e não sei quem havia iniciado o novo assunto, ou sei, foi eu... Desta
forma: estava muito revoltado com alguns estudantes da Universidade Federal de
São Paulo, na época eu fazia o curso de História da Arte e me relacionava
(pessimamente) com os mestres e, ainda pior, com os meus colegas de curso.
Contei
ao professor da minha dificuldade em conversar com os alunos que, oriundos de
outras cidades, sem entender nada da nossa realidade guarulhense, passavam todo
o tempo falando mal do campus. De fato, a Unifesp ao se instalar em Guarulhos teve
sérias privações, os estudantes, professores, funcionários etc. Todos passaram
por dificuldades, porém o que me revoltava é que num campus com cursos, em sua
maioria, da área de humanas, havia tão pouco da chamada consciência social nos
envolvidos no processo de instalação da universidade na região periférica de
uma cidade também periférica de São Paulo.
Não sei por quanto tempo o professor Eugênio ficou me escutando falar do que ouvia antes, durante e após as aulas: “essa universidade posta aqui pra desprestigiar os cursos de humanas”, “bastava um trem, nada mais que um trem para este inferno de cidade, nem isso aqui”, “que gente feia essa”, “por que os pais levam as crianças para o mercado? Qual a graça disso?...
E
muito mais que não me atrevo a dizer, pois pareceria inventado ou preconceituoso,
antes: estar falando mal da Universidade Federal de São Paulo, o que nunca
farei.
Foi
esta a conversa com o professor, fiz parte do movimento pela implantação de uma
universidade pública em Guarulhos, tê-la instalada na região mais carente e
populosa da cidade um motivo de orgulho, principalmente por ser onde ainda habito.
Retrucando a
um dos idiotas aleatórios sobre a precariedade do bairro: há poucos anos por
aqui não havia mercado, posto de vacinação, hospital, linhas regulares de
ônibus, ruas asfaltadas, segurança pública, saneamento básico, esgoto, coleta
regular de lixo...
Escutei-o
dizer: “então não tinha nada...”
Pois
é... “Não tem pra você que cresceu com acesso precário a tudo, mas ainda algum
acesso”.
Nós da região
do Pimentas fomos inseridos pelas circunstâncias em um bairro que de tão pobre
não possuía nada, verdadeiramente nada. Nem mesmo condições precárias de sobrevivência.
Tão precária a condição que um dos únicos momentos de lazer eram as compras no supermercado, daí as crianças serem levadas pelos pais, algo que obviamente irritava alguns dos novos frequentadores do bairro.
O
professor Eugênio escutou a tudo com uma placidez tão terna que por um momento
me senti compreendido, o que realmente fui.
Sua resposta a minha revolta foi uma pequena aula da história de Guarulhos: “sabe o trem das 11 da canção do Adoniran Barbosa? Sabe por que ele era o último e saía às 11? Porque era o trem que vinha pra Guarulhos. O trem da Cantareira.
Ele saía do Pari e vinha pra cá, distante demais. Tão distante e precarizado, era uma linha às beiras do abandono. O fim deste ramal era a Base Aérea de São Paulo, mas todos desciam antes ou eram obrigados a desembarcar na região central da cidade. Um terminal triste e sem nenhum brilho. Quer dizer, Guarulhos era tão longe nos dizeres da canção que ficava mais longe que o Jaçanã.
Havia
a estação Leprosário (na verdade Gopouva), hoje hospital padre Bento, no caminho para o centro, agora
o Anel Viário. É perceptível nas duas mãos de tráfego de automóveis que há
realmente espaço para um trem na rua que vai para o centro e outro que voltaria
para a estação da Luz. Várias pessoas morreram nesse caminho. Muitos decepados
sem ajuda alguma, nenhuma assistência do poder público.
Foi compreensível quando o prefeito teve o total apoio da população para que os trens fossem retirados e em seu lugar “modernos” ônibus coletivos na recém instalada rodovia presidente Dutra. Muito mais segura e rápida. Numa época de ufanismos e construção de Brasília, totalmente compreensível.
Na mente
daquelas pobres almas o trem representava o passado, o ônibus, o automóvel, o
futuro. Quem tenta entrar ou sair de Guarulhos sabe muito bem quais as
consequências dessa escolha numa cidade cortada por três das principais
rodovias do país, muitas transportadoras, um aeroporto, uma base aérea e muito
pouca mobilidade urbana.
Indo
para Itanhaém pela rodovia padre Manuel da Nóbrega quase um retorno por
quilômetro e mesmo assim vários pontos de congestionamento, em Guarulhos são
três os retornos na principal rodovia, a Presidente Dutra, na rodovia Ayrton
Senna apenas dois.
Se
na cidade de São Paulo ocorreu um complexo desenvolvimento que gerou as
desigualdades sociais que ora vemos na presença de favelas, enchentes,
cracolândias, violência urbana, moradores em situação de rua; pense em
Guarulhos que recebia levas de pessoas buscando morar em lugares menos caros,
cada vez podendo pagar menos, esses lugares muito distantes das capitais, como
é comum em qualquer lugar do Brasil.
Agora
imagine várias empresas se instalando às margens da rodovia Presidente Dutra e
as pessoas, sem possibilidade de financiar, comprar ou alugar suas casas tendo
que construir barracos de madeira para morarem com suas famílias ao lado do
emprego porque os salários são tão baixos durante o período militar que não
possibilitava a ninguém nada além do mínimo, de menos que o básico.
Junte a isso mais pessoas chegando das diversas regiões do Brasil, em especial do Nordeste. Você sabia que as pessoas que moravam na região dos Pimentas, onde hoje está localizada a Universidade Federal de São Paulo não se consideravam moradores de Guarulhos? Tanto que ao se deslocarem para o Centro do município diziam estar indo para Guarulhos e isto só começou a mudar com a chegada da Unifesp? Sabia também que ao se dirigir a São Paulo diziam estar indo para “a cidade”? Ou seja, Guarulhos não era cidade, era considerada pelos seus moradores o interior, não como Campinas, Rio Preto ou São José dos Campos, por serem cidades do interior do estado, mas por ser atrasada como nos contos de Monteiro Lobato protagonizados pela personagem Jeca Tatu.
Guarulhos
era o “quarto de despejo” de São Paulo, para chegar lá era preciso cruzar o Rio
Tietê, um lixão que ficava em Santana onde hoje é o shopping Center Norte, a
favela do Canindé (a do livro da Carolina Maria de Jesus). O bairro dos
Pimentas o “quarto de despejo” de Guarulhos.
E
voltando para o trem que deixou de existir. Sabe quem era o dono da empresa de
ônibus que ocupou o lugar dos trens? Sim. O prefeito que retirou o transporte
ferroviário.
Sabe qual foi
o seu maior legado para cidade? Asfaltar as ruas. Claro! Para que seus ônibus
trafegassem.
Mas passou
encanamento de esgoto e levou água tratada? Não.
Por isso que para
o paulistano menino acessar a universidade pública em Guarulhos ele precisa
enfrentar ruas com o asfalto decadente, porque primeiro asfaltaram a cidade,
depois cavaram o asfalto para passar encanamentos. Muito inteligente, não acha?
E o bairro do
Pimentas, jogado num dos pontos mais distantes da cidade, tão distante que nem
merecia receber o nome da cidade segundo seus próprios habitantes. Compreendo
seu desgosto pelo modo como falam da sua cidade, mas recomendo que você
converse com seus colegas de faculdade sobre o impacto que uma universidade
pública causa na região que está localizada. Na forma como é uma conquista e
não um favor e na responsabilidade que vocês, estudantes da Unifesp, têm para
com o Brasil e mais objetivamente com a comunidade que os acolheu.
Outros
problemas surgem, surgiram e surgirão e o que temos de fazer é conviver com as
escolhas de nossos antepassados. Temos que lembrar delas. Lembrar dos motivos
que nos levaram a tais escolhas. Consertar os equívocos, aprimorar os acertos e
nunca deixar de procurar pelo bem comum. Porque o mínimo que podemos fazer é deixar
o local que vivemos um pouco melhor que quando chegamos, passar pela vida das
pessoas e deixar algo bom para ser lembrado.”
Disse isso e
saiu pra tomar um café. Não nos despedimos naquele dia. Pouco tempo depois
iniciou a luta contra o câncer que o matou.
Muito da
memória que tenho daquela conversa e que trouxe a público nesta crônica não
ocorreu da forma que narro. Mas foi a lembrança de uma explicação sobre o trem
de Guarulhos, uma explicação tão apaixonada que me fez tolerar a ignorância dos
meus colegas de faculdade e tentar mudar aos poucos a imagem que eu tenho em
mim sobre a cidade que moro há quase quarenta anos. Aceitando meu amor pelo meu
ponto de vista, a minha cidade, o meu ponto de vista em relação ao mundo, posso
buscar melhorar a mim e o meu lugar.
Assim como o
professor Eugênio, que deixou esta e outras excelentes lembranças. Toda vez ao
passar pelo Anel Viário lembro da nossa conversa e de como Guarulhos é
complicada, mas caminhando a passos lentos, já bem melhor do que foi nos anos
1960 com a extinção do trem da Cantareira.
Há inclusive
um outro trem, em outro ponto, uma nova linha ligando o aeroporto ao extremo
leste, um expresso até a Luz, Guarulhos se conectando novamente a São Paulo via
trilhos. Quem sabe algum dia até o Pimentas.
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