quarta-feira, 18 de agosto de 2021

Por que extinguiram o trem de Guarulhos?

             

        Lembro com saudade do professor Eugênio. Nunca fui seu aluno, nunca tivemos uma conversa a sós (além da que motivou esta crônica, obviamente), não o recebi em casa, nem fui visitá-lo quando soube de sua internação pelo câncer que já atingia seus ossos.

              Na última vez que o vi tinha um olhar sereno: “eu cheguei antes do câncer, tenho mais direito de estar aqui do que ele”, mas partiu. Já era um senhorzinho grisalho, simpático lorde de fala calma, daqueles homens raros inclusive nos velhos tempos, dos que não precisam pedir silêncio para falar, porque ao dizer, o que quer que fosse, todos dão atenção.

              Não sou de entrar em rodas de conversa iniciadas sem mim, tímido ao extremo, por vezes sofro pela minha falta de tato social, mas naquela roda estava o professor Eugênio e sempre gostei de sua conversa, verdadeiras aulas, aquela já havia se iniciado há algum tempo. Alguns minutos depois me vi sozinho com o professor e não sei quem havia iniciado o novo assunto, ou sei, foi eu... Desta forma: estava muito revoltado com alguns estudantes da Universidade Federal de São Paulo, na época eu fazia o curso de História da Arte e me relacionava (pessimamente) com os mestres e, ainda pior, com os meus colegas de curso.

              Contei ao professor da minha dificuldade em conversar com os alunos que, oriundos de outras cidades, sem entender nada da nossa realidade guarulhense, passavam todo o tempo falando mal do campus. De fato, a Unifesp ao se instalar em Guarulhos teve sérias privações, os estudantes, professores, funcionários etc. Todos passaram por dificuldades, porém o que me revoltava é que num campus com cursos, em sua maioria, da área de humanas, havia tão pouco da chamada consciência social nos envolvidos no processo de instalação da universidade na região periférica de uma cidade também periférica de São Paulo.

              Não sei por quanto tempo o professor Eugênio ficou me escutando falar do que ouvia antes, durante e após as aulas: “essa universidade posta aqui pra desprestigiar os cursos de humanas”, “bastava um trem, nada mais que um trem para este inferno de cidade, nem isso aqui”, “que gente feia essa”, “por que os pais levam as crianças para o mercado? Qual a graça disso?...

              E muito mais que não me atrevo a dizer, pois pareceria inventado ou preconceituoso, antes: estar falando mal da Universidade Federal de São Paulo, o que nunca farei.

              Foi esta a conversa com o professor, fiz parte do movimento pela implantação de uma universidade pública em Guarulhos, tê-la instalada na região mais carente e populosa da cidade um motivo de orgulho, principalmente por ser onde ainda habito.

Retrucando a um dos idiotas aleatórios sobre a precariedade do bairro: há poucos anos por aqui não havia mercado, posto de vacinação, hospital, linhas regulares de ônibus, ruas asfaltadas, segurança pública, saneamento básico, esgoto, coleta regular de lixo...

              Escutei-o dizer: “então não tinha nada...”

              Pois é... “Não tem pra você que cresceu com acesso precário a tudo, mas ainda algum acesso”.

Nós da região do Pimentas fomos inseridos pelas circunstâncias em um bairro que de tão pobre não possuía nada, verdadeiramente nada. Nem mesmo condições precárias de sobrevivência.  

              Tão precária a condição que um dos únicos momentos de lazer eram as compras no supermercado, daí as crianças serem levadas pelos pais, algo que obviamente irritava alguns dos novos frequentadores do bairro.

              O professor Eugênio escutou a tudo com uma placidez tão terna que por um momento me senti compreendido, o que realmente fui.

             Sua resposta a minha revolta foi uma pequena aula da história de Guarulhos: “sabe o trem das 11 da canção do Adoniran Barbosa? Sabe por que ele era o último e saía às 11? Porque era o trem que vinha pra Guarulhos. O trem da Cantareira.

              Ele saía do Pari e vinha pra cá, distante demais. Tão distante e precarizado, era uma linha às beiras do abandono. O fim deste ramal era a Base Aérea de São Paulo, mas todos desciam antes ou eram obrigados a desembarcar na região central da cidade. Um terminal triste e sem nenhum brilho. Quer dizer, Guarulhos era tão longe nos dizeres da canção que ficava mais longe que o Jaçanã.

         Sabe por que Guarulhos não tem linha de trem? Porque o prefeito da época se elegeu com a promessa de resolver os problemas do transporte público da cidade. Muitas pessoas morriam caindo dos trens que vinham lotados, com pessoas penduradas nas portas e em cima dos vagões. Era uma luta cotidiana contra a morte, todos os dias havia casos de gente perdendo braços, pernas, mãos, cabeça, a vida na linha que servia os bairros mais distantes da distante Nossa Senhora da Conceição.

              Havia a estação Leprosário (na verdade Gopouva), hoje hospital padre Bento, no caminho para o centro, agora o Anel Viário. É perceptível nas duas mãos de tráfego de automóveis que há realmente espaço para um trem na rua que vai para o centro e outro que voltaria para a estação da Luz. Várias pessoas morreram nesse caminho. Muitos decepados sem ajuda alguma, nenhuma assistência do poder público.

              Foi compreensível quando o prefeito teve o total apoio da população para que os trens fossem retirados e em seu lugar “modernos” ônibus coletivos na recém instalada rodovia presidente Dutra. Muito mais segura e rápida. Numa época de ufanismos e construção de Brasília, totalmente compreensível.

Na mente daquelas pobres almas o trem representava o passado, o ônibus, o automóvel, o futuro. Quem tenta entrar ou sair de Guarulhos sabe muito bem quais as consequências dessa escolha numa cidade cortada por três das principais rodovias do país, muitas transportadoras, um aeroporto, uma base aérea e muito pouca mobilidade urbana.

              Indo para Itanhaém pela rodovia padre Manuel da Nóbrega quase um retorno por quilômetro e mesmo assim vários pontos de congestionamento, em Guarulhos são três os retornos na principal rodovia, a Presidente Dutra, na rodovia Ayrton Senna apenas dois.  

              Se na cidade de São Paulo ocorreu um complexo desenvolvimento que gerou as desigualdades sociais que ora vemos na presença de favelas, enchentes, cracolândias, violência urbana, moradores em situação de rua; pense em Guarulhos que recebia levas de pessoas buscando morar em lugares menos caros, cada vez podendo pagar menos, esses lugares muito distantes das capitais, como é comum em qualquer lugar do Brasil.

              Agora imagine várias empresas se instalando às margens da rodovia Presidente Dutra e as pessoas, sem possibilidade de financiar, comprar ou alugar suas casas tendo que construir barracos de madeira para morarem com suas famílias ao lado do emprego porque os salários são tão baixos durante o período militar que não possibilitava a ninguém nada além do mínimo, de menos que o básico.

              Junte a isso mais pessoas chegando das diversas regiões do Brasil, em especial do Nordeste. Você sabia que as pessoas que moravam na região dos Pimentas, onde hoje está localizada a Universidade Federal de São Paulo não se consideravam moradores de Guarulhos? Tanto que ao se deslocarem para o Centro do município diziam estar indo para Guarulhos e isto só começou a mudar com a chegada da Unifesp? Sabia também que ao se dirigir a São Paulo diziam estar indo para “a cidade”? Ou seja, Guarulhos não era cidade, era considerada pelos seus moradores o interior, não como Campinas, Rio Preto ou São José dos Campos, por serem cidades do interior do estado, mas por ser atrasada como nos contos de Monteiro Lobato protagonizados pela personagem Jeca Tatu.

              Guarulhos era o “quarto de despejo” de São Paulo, para chegar lá era preciso cruzar o Rio Tietê, um lixão que ficava em Santana onde hoje é o shopping Center Norte, a favela do Canindé (a do livro da Carolina Maria de Jesus). O bairro dos Pimentas o “quarto de despejo” de Guarulhos.

              E voltando para o trem que deixou de existir. Sabe quem era o dono da empresa de ônibus que ocupou o lugar dos trens? Sim. O prefeito que retirou o transporte ferroviário.

Sabe qual foi o seu maior legado para cidade? Asfaltar as ruas. Claro! Para que seus ônibus trafegassem.

Mas passou encanamento de esgoto e levou água tratada? Não.

Por isso que para o paulistano menino acessar a universidade pública em Guarulhos ele precisa enfrentar ruas com o asfalto decadente, porque primeiro asfaltaram a cidade, depois cavaram o asfalto para passar encanamentos. Muito inteligente, não acha?

E o bairro do Pimentas, jogado num dos pontos mais distantes da cidade, tão distante que nem merecia receber o nome da cidade segundo seus próprios habitantes. Compreendo seu desgosto pelo modo como falam da sua cidade, mas recomendo que você converse com seus colegas de faculdade sobre o impacto que uma universidade pública causa na região que está localizada. Na forma como é uma conquista e não um favor e na responsabilidade que vocês, estudantes da Unifesp, têm para com o Brasil e mais objetivamente com a comunidade que os acolheu.

Outros problemas surgem, surgiram e surgirão e o que temos de fazer é conviver com as escolhas de nossos antepassados. Temos que lembrar delas. Lembrar dos motivos que nos levaram a tais escolhas. Consertar os equívocos, aprimorar os acertos e nunca deixar de procurar pelo bem comum. Porque o mínimo que podemos fazer é deixar o local que vivemos um pouco melhor que quando chegamos, passar pela vida das pessoas e deixar algo bom para ser lembrado.”

Disse isso e saiu pra tomar um café. Não nos despedimos naquele dia. Pouco tempo depois iniciou a luta contra o câncer que o matou.

Muito da memória que tenho daquela conversa e que trouxe a público nesta crônica não ocorreu da forma que narro. Mas foi a lembrança de uma explicação sobre o trem de Guarulhos, uma explicação tão apaixonada que me fez tolerar a ignorância dos meus colegas de faculdade e tentar mudar aos poucos a imagem que eu tenho em mim sobre a cidade que moro há quase quarenta anos. Aceitando meu amor pelo meu ponto de vista, a minha cidade, o meu ponto de vista em relação ao mundo, posso buscar melhorar a mim e o meu lugar.

Assim como o professor Eugênio, que deixou esta e outras excelentes lembranças. Toda vez ao passar pelo Anel Viário lembro da nossa conversa e de como Guarulhos é complicada, mas caminhando a passos lentos, já bem melhor do que foi nos anos 1960 com a extinção do trem da Cantareira.

Há inclusive um outro trem, em outro ponto, uma nova linha ligando o aeroporto ao extremo leste, um expresso até a Luz, Guarulhos se conectando novamente a São Paulo via trilhos. Quem sabe algum dia até o Pimentas.



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sexta-feira, 13 de agosto de 2021

Borba Gato permanece ereto

Eu acredito no poder transformador e revolucionário da educação. Ou simplesmente: eu acredito no poder da educação. Ou mais simples ainda: eu acredito na educação. Dito isso, posso começar a desenvolver o argumento sobre o tema que me traz à pena.

              Sim. À pena, e a duras penas venho escrever sobre a derrubada (na verdade a tentativa de derrubada) da estátua do bandeirante Borba Gato.

              Vamos à opinião: eu acredito na educação, em seu poder transformador e acredito que os professores são fundamentais para uma sociedade saudável, consciente e justa.

              Ou em busca de.

              Quem foi Borba Gato? Pouco importa. Verdade. Pouco importa ao debate. Mas como sempre fico me adiantando, me achando um Brás Cubas indo e vindo com meu texto. Vou do começo. Se for indicar esta leitura a um amigo, peça que inicie pelo próximo parágrafo, nada de interessante foi dito nos anteriores.

              No dia 24 de julho de 2021 um grupo decidiu incendiar uma estátua que fica em São Paulo na avenida Santo Amaro. A personagem retratada na figura é a do bandeirante Borba Gato. Esta é a notícia principal que completo com a informação que a escultura não veio abaixo, resistiu firme, com diversas avarias, é claro, e prejuízo aos cofres públicos que terão de arcar com o conserto causado pelo ataque.

              Conversei com muita gente sobre o ocorrido, muita pessoa inteligente, muito historiador, alguns livros, vídeos sobre a história dos bandeirantes.

Escrevo quase um mês após o ocorrido, a estátua ainda chamuscada e em pé, não caída como a dos Budas destruídos pelo Taliban, nem perdida como os livros incendiados da biblioteca de Alexandria.

              Deste modo: muitos já destruíram muita coisa em defesa de verdades e muitos também destruíram em defesa de mentiras, quem sou eu pra julgar? Falo de orelhada. Sou um simples professor de educação básica. Um simples amante de arte e a estátua nem era, como direi, assim tão artística. Sou um aficionado por história do Brasil e do mundo, Borba Gato nem é alguém tão relevante. Quem sou eu na fila da pamonha? Quem sou eu ao relacionar de algum modo um bandido (bandeirante) com elementos culturais reconhecidos como excepcionais mundo afora.

Lá vem ele comparar o assassino bandeirante com Rodin, Brecheret, o nariz da esfinge, o olhar da Gioconda...

              Isso mesmo. Vamos pôr fogo nas estatuas, vamos queimar e sem deixar traços para as próximas gerações não permitiremos que nossos netos, bisnetos e tataranetos compreendam o mundo que habitam com a devida perspectiva histórica.

              Esqueçam o Borba Gato, esqueçam de quem se trata.

Vamos começar por este parágrafo. Aqui começa a crônica. Deleta o que foi anteriormente escrito. Incendeie!

Estamos num Brasil que queima estátua em praça pública.

Por hora vou chamar de vândalo a quem incendeia o patrimônio histórico independentemente do juízo de valor que possa dele (o patrimônio histórico) independentemente do juízo de valor que possa dele ser feito.

              Nos últimos anos houve incêndios devastadores no Memorial da América Latina, Museu da Língua Portuguesa, Museu Nacional, depósito da Cinemateca Brasileira, esqueci algum? Ah é... A estátua do Borba Gato. Tudo devastado pela ação ou omissão de vândalos. Sem falar do alagamento que destruiu a cidade de São Luiz do Paraitinga no Vale do Paraíba, o deslizamento de rejeitos de mineração em Mariana, incêndio em igreja histórica em Ouro Preto... o Brasil não é para amadores.

              A partir do momento que é retirado das pessoas o acesso à perspectiva histórica só possível pela educação e contato com sua trajetória humana e pessoal, legamos às futuras gerações a eterna repetição de modelos fracassados de poder e sociedade.

Legamos fracasso e mais fracasso, uma sociedade sem memória, sem passado, sonegada da possibilidade de julgar os erros de seus antepassados e aprimorar, mudar. E como? Com educação. Sabe por quê? Porque eu acredito na educação. Eu acredito no poder transformador e revolucionário da educação e por isso sou contra a queima do nosso patrimônio histórico.

No livro “Terra sonâmbula” Mia Couto levanta o debate sobre uma sociedade sem passado, fruto de uma guerra civil que matou os pais e os avós, deixando as crianças soltas no mundo, vagando sem história, retirantes de lugar nenhum, sem saber de onde vieram, como saber para onde irão?

No caso de Moçambique a crítica é direta às consequências da guerra civil pós processo de independência. No Brasil há um processo outro. Um processo que nos leva a cada dia, a cada instante, a cada novo incêndio, alagamento, fechamento de museu, cortes em orçamento, vandalismo em prédios tombados pelo patrimônio, destruição de estátuas, elevação de ícones da cultura pop a intelectuais respeitadíssimos nas discussões acadêmicas, exclusão de clássicos das bibliotecas, aulas e debates.

Se fizerem uma fogueira e queimarem os livros, talvez um dos que exaltam a destruição das estátuas se erga contra os que assim agem. Mas não acredito, o mais provável é que festejem a destruição de todo e qualquer contraditório que percebem como inimigos e adversários e não como o que de fato são: diferentes.

Até onde me lembro, pensar diferente deixou de ser crime desde a Declaração dos direitos do homem e do cidadão em 1789.

Mas há pessoas que não leram nada a respeito. Não leram e nunca lerão. E o que é pior: se recusam a permitir que outros tenham acesso ao mundo diferente do que entendem como o ideal.

Eu sei no que isso transformou o mundo num passado não tão distante. E num distante também. É a história se repetindo ad infinitum como farsa após farsa. Incêndio após incêndio.


Por Mauro Marcel