quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

Análise do disco "Sobrevivendo no inferno" - Leitura Obrigatória para o vestibular da Unicamp 2019 (clique no link para ouvir o podcast)


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          O Brasil não existiu desde o descobrimento e se alguém disser pra você que Pedro Alvares Cabral descobriu um país gigante e continental estará fazendo uma leitura anacrônica da história, o que vale dizer que estará vendo o descobrimento de uma maneira equivocada.
Cabral não descobriu o Brasil, mas uma faixa de terra que pensou ser uma ilha, isto como extensão da expansão imperialista do Reino Português do período que seu professor de história costuma chamar de Mercantilismo.
                Cabral deu à terra descoberta o nome de Ilha de Vera Cruz. O caráter religioso da empreitada está claro, nunca ignorando todos os motivos que fizeram os portugueses aportarem por aqui.
A invenção do Brasil é uma pergunta complexa e temos que tomar muito cuidado com as respostas simples para as perguntas complexas. (É muito comum, por exemplo, nos referirmos aos primeiros brasileiros como colonos, índios (indígenas por conta do politicamente correto) e negros. Mas nenhuma dessas raças se reconhecia como tal. Os portugueses que nasciam por aqui se entendiam como portugueses, apenas no século XXI começaram a utilizar o termo populações indígenas e quanto aos negros, bem, quanto aos negros vamos desenvolver ao longo deste texto).
Dito isto posso afirmar que quando descobriram que o litoral daquela terra não tinha fim, e que era tudo muito mais vasto do que previam, trataram de mandar mais e mais gente pra cá. (Não ignoro a visita dos franceses, holandeses e espanhóis por estas paragens, mas não dá pra aprofundar por aqui, fica pra uma outra oportunidade) Os portugueses sempre aliados à Igreja Católica na figura dos padres jesuítas, que sempre foram meio padres meio guerreiros trataram de vir para a agora Terra de Santa Cruz fazer o que os posseiros fazem quando encontram uma terra sem uma cerca. (Isto e a catequização, obviamente)
                De lá pra cá os católicos portugueses e os também católicos jesuítas tiveram de se relacionar com os índios, com os estrangeiros que teimavam em aportar por estas paragens e com a mão de obra escrava que começou a ser trazida desde o primeiro século de colonização, num êxodo sem precedentes na história da humanidade a população africana foi levada como mão de obra escrava para todas as colônias portuguesas, incluindo o Brasil obviamente, mas também levados por outros povos, houve escravidão negra em diversas partes do mundo, no mundo inteiro. Os ingleses ficaram marcados na história como abolicionistas, mas competiam por cativos nos portos africanos junto a espanhóis e também holandeses.
Mas nunca se engane, a escravidão no nosso senso comum se refere à população da África, mas havia escravos na Grécia, Egito, Império Romano; o próprio termo em inglês “slave” se refere aos eslavos, povo que foi escravizado pelos bretões em certo período da história.  
                No que tange ao Brasil das três raças, como se dizia antigamente, os negros foram escravizados com a conivência e o suporte do governo português, Igreja e comunidades africanas da África (comunidades (tribos, reinos, governos, impérios) que em certa medida viam com naturalidade a venda de inimigos para o mercador de um país distante, comércio obviamente lucrativo devido ao longo período que ocupa em nossa história).
                Em países como os Estados Unidos não houve mistura significativa de raças, havia os brancos junto aos brancos e os negros com os negros, em países como o Haiti de população majoritariamente negra ocorreram eventos traumáticos, como a luta pela independência tornar-se um massacre étnico com o poder nas mãos dos afrodescendentes agora donos de um país independente.
De uma ou de outro a forma como o Brasil deve ser olhado é muito diferente, pois aqui não houve apenas a mistura, mas a construção de uma verdadeira sociedade calcada na escravidão. E este é o ponto nevrálgico do processo de formação cultural brasileiro.
                É comum falar que no Brasil houve a miscigenação, mas uma leitura mais aprofundada da história, História bem estudada, com H maiúsculo, leva a perceber o quão difícil foi para uma sociedade alicerçada nesse modelo se livrar de algo mais que vergonhoso para a sua formação.
                Aqui não houve apenas escravidão, houve uma sociedade escravista com todas as relações afetivas, humanas, econômicas, de trabalho, enfim, todas as relações sociais eram pedradas na concepção de que pessoas tinham a obrigação de trabalhar de forma compulsória para outras que não tinham a obrigação nenhuma de trabalhar para a conquista do próprio pão.
                A escravidão está no DNA do nosso tecido social, o que vale dizer que todos nós brasileiros somos, em certa medida, escravistas. Mesmo os negros, os que mais sofrem com as consequências da construção deste modelo social quiçá único no mundo.
                 Digo isso por conta do incrível número de pessoas trazidas compulsoriamente para as Américas e em específico para o Brasil. De todos os cativos sequestrados na África, segundo dados alfandegários da época, cerca de quarenta por cento desembarcaram no Brasil. Isso sem levar em conta o número de mortos durante a travessia; o Oceano Atlântico é um verdadeiro cemitério onde foram enterrados homens, mulheres (grávidas inclusive) e crianças.
                A literatura da época, a de melhor qualidade como o Manuel Antônio de Almeida narrando as aventuras de Leonardo Pataca e seu filho em “Memórias de um Sargento de Milícias. Notem como neste livro o trabalho é visto como algo relegado às classes inferiores, o sonho de todos ali é arranjar-se, se dar bem, deixar de trabalhar, o próprio título da obra se refere a isto, um sargento de milícias é alguém que recebe uma pensão vitalícia sem que para isso tenha que trabalhar, obviamente.
O Brás Cubas de Machado de Assis se orgulha de ao final da vida nunca ter precisado trabalhar, sua família esconde as origens humildes, como se o trabalho honesto tivesse manchado as origens aristocráticas de uma família que deveria se orgulhar do posto alcançado na escala social através de muito suor.
No Brasil o trabalho nunca enobreceu, somos um país de preguiçosos e é muito perigoso falar isto em voz alta. 
                Não à toa é tão difícil fazer a reforma da previdência social, todos aqui sonham com o dia de aposentar-se para enfim deixar de trabalhar, tornando-se assim um sargento de milícias, um Brás Cubas; se arranjando, se aristocratizando, como o João Romão de "O Cortiço" explorando até o fim sua escrava barra concubina  Bertolesa.
                Aposentar-se o quanto antes, se possível agora.
O que você faria se ganhasse na mega sena, 100 milhões de reais, você brasileiro, onde trabalharia?
Os negros legitimados como propriedades não se reconheciam em certa medida como seres autônomos. Não dá pra ensinar de uma hora pra outra que certas pessoas, todas elas, tinham e têm o mesmo direito, pois independentemente da cor da pele, da condição de nascimento somos todos seres humanos. (E isto é a coisa mais óbvia que você lerá hoje).
A sociedade brasileira se constituiu, na sua origem, de pessoas que trabalhavam e de outras que escravizavam os que trabalhavam. Mas o tecido social daqui era tão complexo que era a coisa mais comum ex-escravos possuírem escravos. Escravos comprarem escravos com dinheiro que conseguiam juntar em trabalhos extras que faziam não para seus senhores, mas para outras pessoas que se recusavam a realizar determinadas tarefas. Alguns negros juntavam dinheiro para comprar sua alforria, mas preferiam comprar um escravo para realizar tarefas para si.
Também muito comum a defesa da escravidão por muitos: fazendeiros, donos de escravos. Estes não viam lucro nenhum em ter de pagar por uma mão de obra que tinham gratuitamente. Desde que a mantivesse viva com algumas refeições e local de dormir. Havia muita gente pobre mantendo cativos como investimento, explorando o trabalho sem o menor escrúpulo, pois no Brasil isso era o natural, era a vida tal qual se concebia. 
Gente muito “ilustrada” defendeu a escravidão com o argumento de que a economia brasileira era baseada nela, ou a defesa da autonomia das decisões nacionais que não podiam se subjugar aos desmandos de Inglaterra, Estados Unidos ou Portugal.
Resultado de imagem para segregated schoolsO fim da escravidão aconteceu paulatinamente, ao longo de décadas, de forma conservadora e desorganizada no que tange aos direitos dos antigos escravos, agora seres humanos livres, mas muito longe de serem cidadãos de primeira classe. Após ela (a escravidão oficial) não houve nenhum processo de inclusão, apoio, suporte às populações de ex-cativos. Pelo contrário, varreu-se tudo o que foi relativo a isto para debaixo do tapete e ao longo de todo o século XX os descendentes dos escravos, ou qualquer afrodescendente teve de viver num país que se recusou a refletir sobre seus quase quatrocentos anos de escravidão de populações vindas da África. 
                É neste ponto que o disco“Sobrevivendo no inferno” entra nessa história.
                Nos anos 1960 houve nos Estados Unidos a luta pela igualdade de direitos civis, a independência norte americana e a guerra de secessão deixaram a questão racial muito mal resolvida, segregação que permitia que uma prefeitura construísse escolas para negros e para brancos separadas, e é claro que se sabe qual era a de pior qualidade.
                Universidades que proibiam o ingresso de negros, postos de trabalho vetados para esta população.
Lanchonetes com cartazes de “não servimos negros”, ônibus onde negros sentavam na parte de trás e deveriam levantar-se para nenhum branco ficar em pé enquanto estes estivessem sentados, na Segunda Guerra Mundial não havia um único oficial negro no exército. No Vietnã o questionamento de os negros serem enviados para morrer enquanto os brancos viviam o sonho americano.
Há um filme idolatrado por muito americano classe média chamado “O nascimento de uma nação”, nele o fundador da klu klux klan é o grande herói que apenas torna-se herói após criar a klã (que me recuso a escrever em letras maiúsculas). Este filme é uma verdadeira obra de arte em termos de apuro técnico, revolucionou o modo de fazer cinema no mundo, muito por conta da forma inovadora com que a edição se dá, porém seu conteúdo é altamente nocivo, o triunfo da cultura wasp em detrimento do esfacelamento de outro povo.
                Pois bem, após Luther King, Malcom-X, movimento Hip Hop e empoderamento da agenda pela luta pelos direitos civis (não se engane, os Estados Unidos continuam extremamente segregados: há bairros de negros, de brancos, casamentos inter-raciais são raros e é preciso tomar muito cuidado com a polícia de alguns estados, vira e mexe acontece algum protesto contra policiais que mataram jovens negros desarmados na frente de sua própria casa), e esta luta por direitos civis chegou ao Brasil vinte anos depois na esteira do Hip Hop; um movimento cultural artístico extenso que teve sua origem nos bairro negros segregados de Nova York: Bronx, Harlem, Queens.
Resultado de imagem para luther king jr                No Brasil as periferias das grandes cidades, em especial São Paulo foram as que receberam de forma mais prolífica as vozes de grupos como Run – D.M.C., Public Enemy, Sugarhill Gang, Beast Boys e muito mais.
O discurso confrontador da realidade alcançou o jovem Mano Brown, morador de um bairro paupérrimo da periferia paulistana. Neste ínterim a música dos Racionais MCs, banda de Mano Brown, serviu como válvula de escape para as vozes que não tinham, por vezes, a mínima noção da realidade pela qual passavam. Milhares, milhões de jovens brasileiros morreram sem saber que eram vítimas de uma construção social secular, que as levou a mergulhar cada vez mais fundo na miséria, no subdesenvolvimento e, não raro, na criminalidade.
                O disco “Sobrevivendo no Inferno” data de dezembro de 1997 e é das poucas unanimidades da música brasileira, é sem dúvida o disco mais importante do rap nacional. Uma obra prima.
                Faixa por faixa os problemas trazidos pelo tecido social racista brasileiro são desvelados.
Em pleno fim de milênio ainda não se resolveu no Brasil a questão racial.
Ao contrário dos Estados Unidos onde os negros são, de fato, minoria, no Brasil negros e afrodescendentes passam de 51% da população, mas são minoria em universidades ditas públicas, em profissões de maior prestígio social como medicina, direito e engenharia.
Afrodescendentes são maioria em presídios, favelas e periferias; também são maioria em escolas públicas apenas nos anos iniciais já que são forçados à evasão ao longo dos anos escolares devido às condições de vida geradas pelo abandono histórico de que são vítimas.
Na pirâmide social os negros são maioria na base e na base da base está a mulher negra, solteira com filhos.
Não à toa um discurso tão forte é necessário.
                A leitura e não apenas audição deste disco é fundamental.      
Nele se percebe o que quinhentos anos de mestiçagem fez ao brasileiro, uma população religiosa, pobre e segregada.
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                Em sua capa a imagem da cruz remete toda a obra ao cristianismo, mas o primeiro texto é uma canção de Jorge Ben Jor: Jorge Capadócia. Santo sagrado para as religiões católicas e candomblé. O disco pede proteção a Jorge e diz que “Eu estou vestido com as roupas e as armas de Jorge para que meus inimigos tenham pés e não me alcancem para que meus inimigos tenham mãos e não me toquem".
O que haverá ao longo da obra é este discurso pedrado no sincretismo religioso, palavra um tanto em desuso, mas que significa aqui, resumidamente, a mistura das religiões católica e candomblé.
A segunda é uma música instrumental chamada gênesis, novamente a relação com a cultura cristã. E a primeira música com texto inédito surge, não sem antes o antológico discurso:
"Sessenta por cento dos jovens de periferia sem antecedentes criminais
Já sofreram violência policial
A cada quatro pessoas mortas pela polícia, três são negras
Nas universidades brasileiras
Apenas dois por cento dos alunos são negros
A cada quatro horas, um jovem negro morre violentamente
Em São Paulo
Aqui quem fala é Primo Preto, mais um sobrevivente"
                Ninguém nunca pediu as fontes de tais afirmações, mas não está dizendo nenhuma novidade, ao menos para os moradores dos bairros mais pobres da cidade.
                A própria formação das periferias brasileiras, de norte a sul, se deve ao abandono que grande parte da população pobre brasileira sofreu ao longo de toda a sua constituição enquanto povo. Na periferia paulista negros, nordestinos e seus descendentes lutam para a conquista de um dia a dia ao menos digno.
Enquanto crescem o tráfico de drogas, o descaso, a violência e falta de tudo. Muito do protesto contido no discurso ao longo de todo o disco é a presença do poder público apenas na figura da polícia, tida como inimiga da população negra “não confio na polícia raça do caralho” (verso de uma canção de outro disco da mesma banda e presente como incidental aqui)
Resultado de imagem para harlem new york  1980                A primeira letra chama-se “Capítulo 4, versículo 3. Nela Mano Brown se apresenta e diz que suas intenções não são boas. Vale notar que o coloquialismo, a linguagem ao longo de todo o disco atinge um outro nível de regionalismo. Mano Brown mais de uma vez diz que não falava gírias, mas um dialeto. Talvez um pouco difícil para moradores de outros estados, outras classes sociais. Em certo momento desta canção alguém diz que não valeria a pena “dar ideia” em certos tipos, no que a voz principal de Brown responde que “quem era ele pra falar de quem cheira ou quem fuma, nunca teve porra nenhuma’.
A primeira canção pra valer do disco é uma pedrada das grandes e fala do próprio criar artístico e do poder que tem pra mobilizar de alguma forma a sociedade, não com essas palavras, é claro, mas nas de Brown:  “Quatro minutos se passaram e ninguém viu / O monstro que nasceu em algum lugar do Brasil” e termina com os icônicos e profundos versos “Eu sou apenas um rapaz latino americano /Apoiado por mais de cinquenta mil manos / Efeito colateral que o seu sistema fez / Racionais capítulo quatro versículo três".
“Tô ouvindo alguém me chamar” tem toda a característica de um conto, embora seja uma letra de rap, obviamente construída em versos, narra a história em primeira pessoa de um jovem que se aliou a um assaltante e ao longo da narrativa conta suas experiências, as infâncias pobres dos que se tornam assaltantes, as opções de vida que poderiam ter caso houvesse a possibilidade, o Guina (antagonista, que chama o narrador e ao final ordena sua execução) tinha liderança, poderia ter trabalhado numa multinacional.
O verso refrão “tô ouvindo alguém me chamar” pode ser traduzido aqui como o chamado da bandidagem, chamado sedutor para jovens que são obrigados a ir pra escola com roupas doadas, ditas de esmola pelo narrador. Que nunca são ninguém em momento algum, mas que se sentem poderosos com uma arma na mão. Alcançam o poder que a sociedade nega.  (Ao longo de todo o disco o termo utilizado é “sistema”).
O narrador é morto a mando do Guina, o mesmo que o chamou para a vida do crime, uma metáfora clara de qual seria e será o destino dos que se envolvem na criminalidade. Uma vida curta, um destino violento  numa vida violenta. A cena da camisa colando em seu corpo é narrada de forma arrebatadora e triste, sensibilidade poucas vezes percebida em altos textos literários:
“mas depois do quarto tiro eu não vi mais nada
Sinto a roupa grudada no corpo
Eu quero viver
não posso estar morto!
Mas se eu sair daqui eu vou mudar
Resultado de imagem para carandiruEu tô ouvindo alguém me chamar”        
                A canção “Rapaz comum” é quase que um tratado descritivo de um jovem negro morador da periferia, sua proximidade com as armas, seu destino também trágico, assim como em “Tô ouvindo alguém me chamar” a morte para os que se envolvem com o mundo do crime.
                Neste momento me ocorre que a capa do disco pode estar dizendo muito mais que uma cruz, pode ser a sepultura dos jovens negros mortos, subtraídos de suas vidas neste ambiente insalubre.
                O rapaz comum também ouviu alguém chamá-lo, a presença da mãe na sepultura do filho é uma das mais fortes ao longo do disco, e olha que há muitas mortes ao longo de toda a composição.
                Após um interlúdio que reforça o caráter temático do disco o que aparece é a canção de maior sucesso da obra e talvez de toda a carreira dos Racionais MCs: “Diário de um detento”
                Canção que tem como motivo o conhecido massacre da Casa de detenção do Carandiru ocorrido no dia 3 de outubro de 1992, em nenhum momento as palavras detenção, presídio ou Carandiru são mencionadas.
                O desejo de fugir (não é segredo pra ninguém o número de túneis cavados pelos presidiários ao longo dos anos) “de um a cem a minha chance é zero”.
                Um ambiente quase naturalista é pintado: o policial vigiando, a vida na coletividade, o metrô passando (o presídio era localizado na Estação Carandiru do metrô, a menos de meia hora do centro de São Paulo, nesta estação o metrô passa por sobre viadutos e era possível a quem passasse ver o interior do presídio), as calças bege, mais religião “Graças a Deus e à Virgem Maria./Faltam só um ano, três meses e uns dias.” O cheiro de Pinho sol, famoso desinfetante que deveria dar o tom acre do local, o destino dos estupradores, o futebol como distração.
                É a canção menos conotativa de todo o disco, de letra bem objetiva narra a entrada da polícia, a forma como se tornaram alvos, a índole dos que morreram e antes disso a relação dos presidiários com a família.
Resultado de imagem para oz                A canção começa localizando o leitor na narrativa em relação ao período histórico, 1º de outubro de 1992 e termina com os famosos versos: “Mas quem vai acreditar no meu depoimento?/Dia 3 de outubro, diário de um detento."
                Algumas cenas fortes são narradas, como ao citar o papel dos cães da polícia, ou ao comparar a ação que culminou com o massacre a de um Robocop: “O Robocop do governo é frio, não sente pena. / Só ódio e ri como a hiena.”
Mas nada perto de uma história que sabemos ser verídica. Neste dia morreram oficialmente 111 presos.
                Na sequência a canção “Periferia é periferia (em qualquer lugar)” a descrição do local onde a maioria das histórias narradas no disco acontecem. Um tema muito recorrente na obra dos racionais, mas que já havia sido trabalhada de forma genial em uma canção de outro disco “Fim de semana no parque” com a qual esta parece conversar, ao menos incidentalmente escuta-se: "Milhares de casas amontoadas" no ritmo da de “Fim de semana no parque”.
                “Em qual mentira vou acreditar” narra a história de um jovem saindo à noite para se divertir e os entreveros que têm de passar, como por exemplo a polícia que o para para uma revista alegando que racismo não existe: "Escuta aqui: o primo do cunhado do meu genro é mestiço/Racismo não existe, comigo não tem disso. É pra sua segurança".
                E a cada nova intromissão o refrão “Tem que saber curtir, tem que saber lidar/Em qual mentira vou acreditar?”
                A canção acaba por ser a mais alegre do disco, mesmo quando um falso evangélico aparece e pede drogas com um óbvio disfarce para algum projeto ilícito no futuro, nesse caso estou apenas especulando, mas “Tem que saber curtir, tem que saber lidar/Em qual mentira vou acreditar? ”
Resultado de imagem para oz                Na última canção “Mágico de Oz” os Racionais fazem um resumo de tudo o que foi dito, e após tanto falar de religião aponta para um mundo de fantasia, quem sabe o desespero, “queria que Deus ouvisse a minha voz/E transformasse aqui num Mundo Mágico de Oz".
                Não sei se a citação tinha este objetivo, mas o Mágico de Oz da história era um falso ídolo. Dorothy persegue o mágico ao longo de toda a história e a solução para a saída daquele lugar horrível que se encontrava eram seus próprios passos. Bater os sapatos e dizer “não há lugar melhor que o lar”.
                Uma esperança em meio a tanto sofrimento na vida dos que vivem na periferia?
                Como sair de um lugar assim?
“Tudo dentro de casa vira fumaça, é foda
Será que Deus deve estar aprovando minha raça?
Só desgraça gira em torno daqui”
O refrão lembra muito uma oração cristã, e não deixa de ser digno de nota esta oração pedir que transforme o local num mágico de Oz, um local com fadas, bruxas e magia, de um falso mágico, mas com esperança. Pois é o que menos existe na vida dos jovens negros moradores de periferia. A esperança, mesmo a tênue, mesmo aquela que se encontraria no final da estrada de tijolos amarelos.

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