O
Brasil não existiu desde o descobrimento e se alguém disser pra você que Pedro
Alvares Cabral descobriu um país gigante e continental estará fazendo uma
leitura anacrônica da história, o que vale dizer que estará vendo o
descobrimento de uma maneira equivocada.
Cabral não
descobriu o Brasil, mas uma faixa de terra que pensou ser uma ilha, isto como
extensão da expansão imperialista do Reino Português do período que seu
professor de história costuma chamar de Mercantilismo.
Cabral
deu à terra descoberta o nome de Ilha de Vera Cruz. O caráter religioso da
empreitada está claro, nunca ignorando todos os motivos que fizeram os portugueses
aportarem por aqui.
A invenção do
Brasil é uma pergunta complexa e temos que tomar muito cuidado com as respostas
simples para as perguntas complexas. (É muito comum, por exemplo, nos
referirmos aos primeiros brasileiros como colonos, índios (indígenas por conta
do politicamente correto) e negros. Mas nenhuma dessas raças se reconhecia como
tal. Os portugueses que nasciam por aqui se entendiam como portugueses, apenas
no século XXI começaram a utilizar o termo populações indígenas e quanto aos
negros, bem, quanto aos negros vamos desenvolver ao longo deste texto).
Dito isto
posso afirmar que quando descobriram que o litoral daquela terra não tinha fim, e
que era tudo muito mais vasto do que previam, trataram de mandar mais e mais
gente pra cá. (Não ignoro a visita dos franceses, holandeses e espanhóis por
estas paragens, mas não dá pra aprofundar por aqui, fica pra uma outra
oportunidade) Os portugueses sempre aliados à Igreja Católica na figura dos
padres jesuítas, que sempre foram meio padres meio guerreiros trataram de vir
para a agora Terra de Santa Cruz fazer o que os posseiros fazem quando
encontram uma terra sem uma cerca. (Isto e a catequização, obviamente)
De
lá pra cá os católicos portugueses e os também católicos jesuítas tiveram de se relacionar com os
índios, com os estrangeiros que teimavam em aportar por estas paragens e com a
mão de obra escrava que começou a ser trazida desde o primeiro século de
colonização, num êxodo sem precedentes na história da humanidade a população
africana foi levada como mão de obra escrava para todas as colônias
portuguesas, incluindo o Brasil obviamente, mas também levados por outros
povos, houve escravidão negra em diversas partes do mundo, no mundo inteiro. Os ingleses ficaram marcados na história como abolicionistas, mas competiam por cativos nos portos africanos junto a espanhóis e também holandeses.
Mas nunca se
engane, a escravidão no nosso senso comum se refere à população da África, mas
havia escravos na Grécia, Egito, Império Romano; o próprio termo em inglês
“slave” se refere aos eslavos, povo que foi escravizado pelos bretões em certo
período da história.
No
que tange ao Brasil das três raças, como se dizia antigamente, os negros foram
escravizados com a conivência e o suporte do governo português, Igreja e
comunidades africanas da África (comunidades (tribos, reinos, governos, impérios) que em certa medida viam
com naturalidade a venda de inimigos para o mercador de um país distante,
comércio obviamente lucrativo devido ao longo período que ocupa em nossa
história).
Em
países como os Estados Unidos não houve mistura significativa de raças, havia
os brancos junto aos brancos e os negros com os negros, em países como o Haiti
de população majoritariamente negra ocorreram eventos traumáticos, como a luta pela independência tornar-se um massacre étnico com o poder nas mãos dos afrodescendentes agora donos de um país independente.
De uma ou
de outro a forma como o Brasil deve ser olhado é muito diferente, pois aqui não
houve apenas a mistura, mas a construção de uma verdadeira sociedade calcada na
escravidão. E este é o ponto nevrálgico do processo de formação cultural
brasileiro.
É
comum falar que no Brasil houve a miscigenação, mas uma leitura mais aprofundada
da história, História bem estudada, com H maiúsculo, leva a perceber o quão
difícil foi para uma sociedade alicerçada nesse modelo se livrar de algo mais
que vergonhoso para a sua formação.
Aqui
não houve apenas escravidão, houve uma sociedade escravista com todas as
relações afetivas, humanas, econômicas, de trabalho, enfim, todas as relações
sociais eram pedradas na concepção de que pessoas tinham a obrigação de
trabalhar de forma compulsória para outras que não tinham a obrigação nenhuma
de trabalhar para a conquista do próprio pão.
A
escravidão está no DNA do nosso tecido social, o que vale dizer que todos nós
brasileiros somos, em certa medida, escravistas. Mesmo os negros, os que mais
sofrem com as consequências da construção deste modelo social quiçá único no mundo.
Digo isso por conta do incrível número de pessoas trazidas compulsoriamente para as Américas e em específico para o Brasil. De todos os cativos sequestrados na África, segundo dados alfandegários da época, cerca de quarenta por cento desembarcaram no Brasil. Isso sem levar em conta o número de mortos durante a travessia; o Oceano Atlântico é um verdadeiro cemitério onde foram enterrados homens, mulheres (grávidas inclusive) e crianças.
Digo isso por conta do incrível número de pessoas trazidas compulsoriamente para as Américas e em específico para o Brasil. De todos os cativos sequestrados na África, segundo dados alfandegários da época, cerca de quarenta por cento desembarcaram no Brasil. Isso sem levar em conta o número de mortos durante a travessia; o Oceano Atlântico é um verdadeiro cemitério onde foram enterrados homens, mulheres (grávidas inclusive) e crianças.
A
literatura da época, a de melhor qualidade como o Manuel Antônio de Almeida
narrando as aventuras de Leonardo Pataca e seu filho em “Memórias de um
Sargento de Milícias. Notem como neste livro o trabalho é visto como algo relegado
às classes inferiores, o sonho de todos ali é arranjar-se, se dar bem, deixar
de trabalhar, o próprio título da obra se refere a isto, um sargento de
milícias é alguém que recebe uma pensão vitalícia sem que para isso tenha que trabalhar, obviamente.
O Brás Cubas
de Machado de Assis se orgulha de ao final da vida nunca ter precisado
trabalhar, sua família esconde as origens humildes, como se o trabalho
honesto tivesse manchado as origens aristocráticas de uma família que deveria
se orgulhar do posto alcançado na escala social através de muito suor.
No Brasil o
trabalho nunca enobreceu, somos um país de preguiçosos e é muito perigoso falar
isto em voz alta.
Não
à toa é tão difícil fazer a reforma da previdência social, todos aqui sonham com
o dia de aposentar-se para enfim deixar de trabalhar, tornando-se assim um
sargento de milícias, um Brás Cubas; se arranjando, se aristocratizando, como o João Romão de "O Cortiço" explorando até o fim sua escrava barra concubina Bertolesa.
Aposentar-se o quanto antes, se possível agora.
Aposentar-se o quanto antes, se possível agora.
O que você
faria se ganhasse na mega sena, 100 milhões de reais, você brasileiro, onde
trabalharia?
Os negros
legitimados como propriedades não se reconheciam em certa medida como seres
autônomos. Não dá pra ensinar de uma hora pra outra que certas pessoas, todas
elas, tinham e têm o mesmo direito, pois independentemente da cor da pele, da
condição de nascimento somos todos seres humanos. (E isto é a coisa mais óbvia
que você lerá hoje).
A sociedade
brasileira se constituiu, na sua origem, de pessoas que trabalhavam e de outras
que escravizavam os que trabalhavam. Mas o tecido social daqui era tão complexo
que era a coisa mais comum ex-escravos possuírem escravos. Escravos comprarem
escravos com dinheiro que conseguiam juntar em trabalhos extras que faziam não
para seus senhores, mas para outras pessoas que se recusavam a realizar
determinadas tarefas. Alguns negros juntavam dinheiro para comprar sua
alforria, mas preferiam comprar um escravo para realizar tarefas para si.
Também muito
comum a defesa da escravidão por muitos: fazendeiros, donos de escravos. Estes
não viam lucro nenhum em ter de pagar por uma mão de obra que tinham
gratuitamente. Desde que a mantivesse viva com algumas refeições e local de
dormir. Havia muita gente pobre mantendo cativos como investimento, explorando o trabalho sem o menor escrúpulo, pois no Brasil isso era o natural, era a vida tal qual se concebia.
Gente muito
“ilustrada” defendeu a escravidão com o argumento de que a economia brasileira
era baseada nela, ou a defesa da autonomia das decisões nacionais que não
podiam se subjugar aos desmandos de Inglaterra, Estados Unidos ou Portugal.
O fim da
escravidão aconteceu paulatinamente, ao longo de décadas, de forma conservadora e desorganizada no que tange aos direitos dos antigos escravos, agora seres humanos livres, mas muito longe de serem cidadãos de primeira classe. Após ela (a escravidão oficial) não houve
nenhum processo de inclusão, apoio, suporte às populações de ex-cativos. Pelo
contrário, varreu-se tudo o que foi relativo a isto para debaixo do tapete e ao
longo de todo o século XX os descendentes dos escravos, ou qualquer
afrodescendente teve de viver num país que se recusou a refletir sobre seus
quase quatrocentos anos de escravidão de populações vindas da África.
É
neste ponto que o disco“Sobrevivendo no inferno” entra nessa história.
Nos
anos 1960 houve nos Estados Unidos a luta pela igualdade de direitos civis, a
independência norte americana e a guerra de secessão deixaram a questão racial
muito mal resolvida, segregação que permitia que uma prefeitura construísse
escolas para negros e para brancos separadas, e é claro que se sabe qual era a
de pior qualidade.
Universidades
que proibiam o ingresso de negros, postos de trabalho vetados para esta
população.
Lanchonetes
com cartazes de “não servimos negros”, ônibus onde negros sentavam na parte de
trás e deveriam levantar-se para nenhum branco ficar em pé enquanto estes
estivessem sentados, na Segunda Guerra Mundial não havia um único oficial negro
no exército. No Vietnã o questionamento de os negros serem enviados para morrer
enquanto os brancos viviam o sonho americano.
Há um filme
idolatrado por muito americano classe média chamado “O nascimento de uma
nação”, nele o fundador da klu klux klan é o grande herói que apenas torna-se
herói após criar a klã (que me recuso a escrever em letras maiúsculas). Este
filme é uma verdadeira obra de arte em termos de apuro técnico, revolucionou o
modo de fazer cinema no mundo, muito por conta da forma inovadora com que a
edição se dá, porém seu conteúdo é altamente nocivo, o triunfo da cultura wasp em detrimento do esfacelamento de
outro povo.
Pois
bem, após Luther King, Malcom-X, movimento Hip Hop e empoderamento da agenda
pela luta pelos direitos civis (não se engane, os Estados Unidos continuam extremamente
segregados: há bairros de negros, de brancos, casamentos inter-raciais são
raros e é preciso tomar muito cuidado com a polícia de alguns estados, vira e
mexe acontece algum protesto contra policiais que mataram jovens negros desarmados
na frente de sua própria casa), e esta luta por direitos civis chegou ao Brasil
vinte anos depois na esteira do Hip Hop; um movimento cultural artístico
extenso que teve sua origem nos bairro negros segregados de Nova York: Bronx,
Harlem, Queens.
No
Brasil as periferias das grandes cidades, em especial São Paulo foram as que
receberam de forma mais prolífica as vozes de grupos como Run – D.M.C., Public
Enemy, Sugarhill Gang, Beast Boys e muito mais.
O discurso
confrontador da realidade alcançou o jovem Mano Brown, morador de um bairro
paupérrimo da periferia paulistana. Neste ínterim a música dos Racionais MCs,
banda de Mano Brown, serviu como válvula de escape para as vozes que não
tinham, por vezes, a mínima noção da realidade pela qual passavam. Milhares,
milhões de jovens brasileiros morreram sem saber que eram vítimas de uma
construção social secular, que as levou a mergulhar cada vez mais fundo na
miséria, no subdesenvolvimento e, não raro, na criminalidade.
O
disco “Sobrevivendo no Inferno” data de dezembro de 1997 e é das poucas
unanimidades da música brasileira, é sem dúvida o disco mais importante do rap
nacional. Uma obra prima.
Faixa
por faixa os problemas trazidos pelo tecido social racista brasileiro são desvelados.
Em pleno fim
de milênio ainda não se resolveu no Brasil a questão racial.
Ao contrário
dos Estados Unidos onde os negros são, de fato, minoria, no Brasil negros e
afrodescendentes passam de 51% da população, mas são minoria em universidades
ditas públicas, em profissões de maior prestígio social como medicina, direito
e engenharia.
Afrodescendentes
são maioria em presídios, favelas e periferias; também são maioria em escolas
públicas apenas nos anos iniciais já que são forçados à evasão ao longo dos
anos escolares devido às condições de vida geradas pelo abandono histórico de
que são vítimas.
Na pirâmide
social os negros são maioria na base e na base da base está a mulher negra,
solteira com filhos.
Não à toa um
discurso tão forte é necessário.
A
leitura e não apenas audição deste disco é fundamental.
Nele se
percebe o que quinhentos anos de mestiçagem fez ao brasileiro, uma população
religiosa, pobre e segregada.
Em
sua capa a imagem da cruz remete toda a obra ao cristianismo, mas o primeiro
texto é uma canção de Jorge Ben Jor: Jorge Capadócia. Santo sagrado para as
religiões católicas e candomblé. O disco pede proteção a Jorge e diz que “Eu
estou vestido com as roupas e as armas de Jorge para que meus inimigos tenham
pés e não me alcancem para que meus inimigos tenham mãos e não me toquem".
O que haverá
ao longo da obra é este discurso pedrado no sincretismo religioso, palavra um
tanto em desuso, mas que significa aqui, resumidamente, a mistura das religiões
católica e candomblé.
A segunda é
uma música instrumental chamada gênesis, novamente a relação com a cultura
cristã. E a primeira música com texto inédito surge, não sem antes o antológico
discurso:
"Sessenta por
cento dos jovens de periferia sem antecedentes criminais
Já sofreram
violência policial
A cada quatro
pessoas mortas pela polícia, três são negras
Nas
universidades brasileiras
Apenas dois por
cento dos alunos são negros
A cada quatro
horas, um jovem negro morre violentamente
Em São Paulo
Aqui quem fala
é Primo Preto, mais um sobrevivente"
Ninguém
nunca pediu as fontes de tais afirmações, mas não está dizendo nenhuma
novidade, ao menos para os moradores dos bairros mais pobres da cidade.
A
própria formação das periferias brasileiras, de norte a sul, se deve ao
abandono que grande parte da população pobre brasileira sofreu ao longo de toda
a sua constituição enquanto povo. Na periferia paulista negros, nordestinos e
seus descendentes lutam para a conquista de um dia a dia ao menos digno.
Enquanto crescem
o tráfico de drogas, o descaso, a violência e falta de tudo. Muito do protesto
contido no discurso ao longo de todo o disco é a presença do poder público
apenas na figura da polícia, tida como inimiga da população negra “não confio
na polícia raça do caralho” (verso de uma canção de outro disco da mesma banda
e presente como incidental aqui)
A
primeira letra chama-se “Capítulo 4, versículo 3. Nela Mano Brown se apresenta
e diz que suas intenções não são boas. Vale notar que o coloquialismo, a
linguagem ao longo de todo o disco atinge um outro nível de regionalismo. Mano
Brown mais de uma vez diz que não falava gírias, mas um dialeto. Talvez um
pouco difícil para moradores de outros estados, outras classes sociais. Em certo
momento desta canção alguém diz que não valeria a pena “dar ideia” em certos
tipos, no que a voz principal de Brown responde que “quem era ele pra falar de
quem cheira ou quem fuma, nunca teve porra nenhuma’.
A primeira
canção pra valer do disco é uma pedrada das grandes e fala do próprio criar
artístico e do poder que tem pra mobilizar de alguma forma a sociedade, não com
essas palavras, é claro, mas nas de Brown: “Quatro minutos se passaram e ninguém viu / O
monstro que nasceu em algum lugar do Brasil” e termina com os icônicos e
profundos versos “Eu sou apenas um rapaz latino americano /Apoiado por mais de
cinquenta mil manos / Efeito colateral que o seu sistema fez / Racionais
capítulo quatro versículo três".
“Tô ouvindo
alguém me chamar” tem toda a característica de um conto, embora seja uma letra
de rap, obviamente construída em versos, narra a história em primeira pessoa de
um jovem que se aliou a um assaltante e ao longo da narrativa conta suas
experiências, as infâncias pobres dos que se tornam assaltantes, as opções de
vida que poderiam ter caso houvesse a possibilidade, o Guina (antagonista, que
chama o narrador e ao final ordena sua execução) tinha liderança, poderia ter
trabalhado numa multinacional.
O verso refrão
“tô ouvindo alguém me chamar” pode ser traduzido aqui como o chamado da
bandidagem, chamado sedutor para jovens que são obrigados a ir pra escola com
roupas doadas, ditas de esmola pelo narrador. Que nunca são ninguém em momento
algum, mas que se sentem poderosos com uma arma na mão. Alcançam o poder que a
sociedade nega. (Ao longo de todo o
disco o termo utilizado é “sistema”).
O narrador é
morto a mando do Guina, o mesmo que o chamou para a vida do crime, uma metáfora
clara de qual seria e será o destino dos que se envolvem na criminalidade. Uma
vida curta, um destino violento numa
vida violenta. A cena da camisa colando em seu corpo é narrada de forma
arrebatadora e triste, sensibilidade poucas vezes percebida em altos textos
literários:
“mas depois do
quarto tiro eu não vi mais nada
Sinto a roupa
grudada no corpo
Eu quero viver
não posso
estar morto!
Mas se eu sair
daqui eu vou mudar
A
canção “Rapaz comum” é quase que um tratado descritivo de um jovem negro
morador da periferia, sua proximidade com as armas, seu destino também trágico,
assim como em “Tô ouvindo alguém me chamar” a morte para os que se envolvem com
o mundo do crime.
Neste
momento me ocorre que a capa do disco pode estar dizendo muito mais que uma
cruz, pode ser a sepultura dos jovens negros mortos, subtraídos de suas vidas
neste ambiente insalubre.
O
rapaz comum também ouviu alguém chamá-lo, a presença da mãe na sepultura do
filho é uma das mais fortes ao longo do disco, e olha que há muitas mortes ao
longo de toda a composição.
Após
um interlúdio que reforça o caráter temático do disco o que aparece é a canção
de maior sucesso da obra e talvez de toda a carreira dos Racionais MCs: “Diário
de um detento”
Canção
que tem como motivo o conhecido massacre da Casa de detenção do Carandiru
ocorrido no dia 3 de
outubro de 1992, em nenhum momento as palavras detenção, presídio ou
Carandiru são mencionadas.
O
desejo de fugir (não é segredo pra ninguém o número de túneis cavados pelos
presidiários ao longo dos anos) “de um a cem a minha chance é zero”.
Um
ambiente quase naturalista é pintado: o policial vigiando, a vida na
coletividade, o metrô passando (o presídio era localizado na Estação Carandiru
do metrô, a menos de meia hora do centro de São Paulo, nesta estação o metrô
passa por sobre viadutos e era possível a quem passasse ver o interior do
presídio), as calças bege, mais religião “Graças a Deus e à Virgem
Maria./Faltam só um ano, três meses e uns dias.” O cheiro de Pinho sol, famoso
desinfetante que deveria dar o tom acre do local, o destino dos estupradores, o
futebol como distração.
É
a canção menos conotativa de todo o disco, de letra bem objetiva narra a
entrada da polícia, a forma como se tornaram alvos, a índole dos que morreram e
antes disso a relação dos presidiários com a família.
A
canção começa localizando o leitor na narrativa em relação ao período
histórico, 1º de outubro de 1992 e termina com os famosos versos: “Mas quem vai
acreditar no meu depoimento?/Dia 3 de outubro, diário de um detento."
Algumas
cenas fortes são narradas, como ao citar o papel dos cães da polícia, ou ao
comparar a ação que culminou com o massacre a de um Robocop: “O Robocop do
governo é frio, não sente pena. / Só ódio e ri como a hiena.”
Mas nada perto
de uma história que sabemos ser verídica. Neste dia morreram oficialmente 111
presos.
Na
sequência a canção “Periferia é periferia (em qualquer lugar)” a descrição do
local onde a maioria das histórias narradas no disco acontecem. Um tema muito
recorrente na obra dos racionais, mas que já havia sido trabalhada de forma
genial em uma canção de outro disco “Fim de semana no parque” com a qual esta
parece conversar, ao menos incidentalmente escuta-se: "Milhares de casas
amontoadas" no ritmo da de “Fim de semana no parque”.
“Em
qual mentira vou acreditar” narra a história de um jovem saindo à noite para se
divertir e os entreveros que têm de passar, como por exemplo a polícia que o
para para uma revista alegando que racismo não existe: "Escuta aqui: o
primo do cunhado do meu genro é mestiço/Racismo não existe, comigo não tem
disso. É pra sua segurança".
E
a cada nova intromissão o refrão “Tem que saber curtir, tem que saber lidar/Em
qual mentira vou acreditar?”
A
canção acaba por ser a mais alegre do disco, mesmo quando um falso evangélico
aparece e pede drogas com um óbvio disfarce para algum projeto ilícito no
futuro, nesse caso estou apenas especulando, mas “Tem que saber curtir, tem que
saber lidar/Em qual mentira vou acreditar? ”
Na
última canção “Mágico de Oz” os Racionais fazem um resumo de tudo o que foi
dito, e após tanto falar de religião aponta para um mundo de fantasia, quem
sabe o desespero, “queria que Deus ouvisse a minha voz/E transformasse aqui num
Mundo Mágico de Oz".
Não
sei se a citação tinha este objetivo, mas o Mágico de Oz da história era um
falso ídolo. Dorothy persegue o mágico ao longo de toda a história e a solução
para a saída daquele lugar horrível que se encontrava eram seus próprios
passos. Bater os sapatos e dizer “não há lugar melhor que o lar”.
Uma
esperança em meio a tanto sofrimento na vida dos que vivem na periferia?
Como
sair de um lugar assim?
“Tudo dentro
de casa vira fumaça, é foda
Será que Deus
deve estar aprovando minha raça?
O refrão
lembra muito uma oração cristã, e não deixa de ser digno de nota esta oração
pedir que transforme o local num mágico de Oz, um local com fadas, bruxas e
magia, de um falso mágico, mas com esperança. Pois é o que menos existe na vida
dos jovens negros moradores de periferia. A esperança, mesmo a tênue, mesmo
aquela que se encontraria no final da estrada de tijolos amarelos.