segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Quarto de despejo, Percy Jackson e Garotas Super Poderosas

     Estamos no ano do centenário da escritora Carolina Maria de Jesus, o que é uma boa coisa. Algumas pessoas falarão a respeito do livro "Quarto de despejo" e de sua importância para o cenário literário brasileiro, tão carente de inovações e talentos.
     Alguns dirão que era libertária, outros que seu livro tinha significados ocultos, blá blá blá.
    Nada contra. Era tudo isso e muito mais. Para quem não conhece Carolina Maria de Jesus um breve resumo sem precisar jogar no Wikipedia: retirante nordestina em São paulo nos anos 70, moradora da favela do Canindé, local onde hoje está o estádio da Portuguesa.
     Para sustentar os filhos sem a ajuda de marido recolhia sucata no lixão onde hoje é um local muito aprazível conhecido como Shopping Center Norte.
     Ficaria esquecida no meio do entulho social se não fosse por um jornalista ir até lá fazer uma reportagem sobre as suas condições de vida e descobrir que aquela senhora negra e pobre, quase morta, tinha o hábito de escrever diários relatando seu cotidiano. O jornalista se encantou com o inesperado de sua descoberta e com pouco esforço transformou os cadernos cheios de erros ortográficos e sintáticos da mãe solteira, negra, favela, catadora de papel em fenômeno editorial. 
     Com o dinheiro das vendas conseguiu comprar uma casa, ainda que humilde para si e seus filhos e morrer pouco mais tarde com um tanto mais de dignidade, não sem antes tentar lançar outras obras sem nem chegar perto do sucesso de "Quarto de despejo".
     Quanto ao seu principal livro o que encontramos é o esforço sincero de uma moradora de favela em narrar o seu cotidiano, desde o trabalho duro na escolha do papelão, latas e sucatas; para com a venda conseguir trazer comida para seus filhos, até retornar pra casa e, sem ter com quem deixar os filhos, vê-los vítimas de acusações e agressões por vizinhas faladeiras. O próprio termo - quarto de despejo - foi criado pela escritora para se referir à sua condição. A situação de abandono que eu chamei linhas acima de "entulho social" é denominado pela mesma, com muita propriedade, de "quarto de despejo".
     Pois bem, se estivesse viva a escritora incidental (ou acidental) completaria seu centenário. Mas é pedir demais para uma mulher que viveu suas condições chegar aos cem anos com vida, como o Niemeyer, ou os octogenários Jorge Amado, Ariano Suassuna, Rachel de Queiroz e outros velhinhos que quase chegaram lá.
     O problema da situação não é a escritora em si, mas o fato de esperar até o seu centenário para lembrarem, renderem graças, talvez um busto, um encontro especializado sobre a literatura coloquial da literata negra, elegias e elegias, Flips, Bienais etc. etc...
     Assim como aconteceu com os trinta anos de morte de Clarice Lispector, o centenário de Fernando Pessoa, Chiquinha Gonzaga, até o Chacrinha. 
     Somos uma nação acostumada ao fracasso, não encaramos nossos grandes talentos com o ardor que merecem, isso nos faz pequenos no presente e medíocres no futuro. Perto de países que relembram sua história em cada praça, com estátuas de soldados, escritores, pintores e artistas. Pessoas que levam a glória a ruas, bairros, cidades, estados. 
     O que me levou a escrever este ensaio foi o fato de uma professora do meu trabalho ter ido a um dos eventos de rememoração da escritora do bairro do Canindé e chegar até o meu círculo profissional com a grande descoberta. O livro espetacular "Quarto de despejo" e toda a história acima enriquecida de detalhes, detalhes assistidos numa palestra, não no livro comprado há dez anos, surrado, com páginas cheias de orelhas, perdido num sebo porque não encontra leitores e interesse. Esperando pelos cem anos de nascimento, depois os cinquenta de morte, ou os tantos de publicação. 
     Assim, esperamos pela data para saber o que teremos que ler agora, o que leremos depois. A motivação que nos faz pensar que é preciso alguém nos mostrar o que é bom, o que é ruim, o que faz aniversário e nos ofusca as vistas nos deixando opacos para novas descobertas, mesmo que seja um autor vivo, católico e branco. 
     Mesmo um judeu rico e americano.
     Mesmo um peruano direitista e prêmio nobel.
    Mesmo que nada nos faça abrir o livro, apenas o passar pela estante da biblioteca. Lembra dela? Ainda está lá no mesmo lugar, com autores maravilhosos que não fizeram aniversário de nada, não tem nenhum filme feito a respeito, não são objeto de documentários, não foram recomendados pelo professor descolado do cursinho, nem pelo intelectulóide da faculdade, não cairá no vestibular e poderá fazer a diferença entre ser especial ou igual a todas às demais pessoas. 
     Porque estamos virando uma geração de imbecis. Até os livros que lemos são os mesmos, ninguém viaja uma viagem estranha, desgarrada, sendo um misfit louco, buscando falar o que ninguém fala. Quando se está no centro são vampiros, zumbis, deuses gregos, bruxos. Tudo com tratamento pré-adolescente, que é o adequado para entreter as crianças e sonegar maturidade aos adultos.
     Quando se está fora do do caminho escolhe-se os mesmos livros e escritores de pensamento e literatura ultrapassado. Então temos marxismos, ideologismos, pensamentos da moda. Coisas novas que são tão velhas desde o lançamento da primeira bíblia por Gutemberg.
     Me surpreende a Bienal do livro de São Paulo, por exemplo, com seus milhares de títulos e as mesmas compras. 
     Pelo menos estão lendo, dirá como papagaio algum otimista. Mas até quando vamos ficar celebrando a mediocridade de um jovem lendo "Jogos Vorazes" e chamando de intelectual o menino que conhece os deuses gregos porque leu no Percy Jackson. 
     Sou de um tempo em que os cadernos tinham na capa Freud, Nietzsche, Einstein, Sagan. Hoje, até nas universidades, não apenas os cadernos, mas as tatuagens com desenhos do Pato Donald, Pateta, Meninas Super Poderosas, Harry Potter, Bela, Homem Aranha...
     E vejam bem, não estou reclamando de quem está lendo isso ou aquilo, ou acrescentando juízo de valores a determinado escritor. Falo é sobre falta de autonomia. 
     Repito: sou de um tempo que para se escolher o que se leria ia-se à biblioteca e se envolvia numa aventura que poderia acabar muito mal, porque seriam dias buscando num livro um título, uma capa, um nome de autor. Algo que seduzia: budas ditosos, vermelho e negro, cem anos de solidão, bram stocker, boby dick, insustentável leveza do ser, jangada de pedra, kama sutra, alquimista, stanislaw ponte preta, balzac, efeito urano e muito muito mais. Os não leitores jamais saberão do que estou falando. Os neo-leitores precisam descobrir que o prazer da leitura passa pela visita à biblioteca, pelo risco de odiar um livro e se apaixonar loucamente por outro, mesmo que ninguém  o conheça ou o recomende.
     Nessa geração em que a frustração não é permitida, até o gosto de ler Carolina Maria de Jesus é duvidoso.

o salto

alto
veto

o salto
perto

alvo
acerta

tato
a seta

palco
aperta

causo
a letra

certa